quarta-feira, 24 de julho de 2013

O tráfico enobrecido



Nossa realeza foi uma pobre filha do acaso e do medo dum poltrão que fugiu aos franceses e veio rolando... rolando até aqui... Nossa aristocracia nunca existiu e, quanto muito, numa parte, essa suposta nobreza seria oriunda de traficantes negreiros, de reinóis, de lapidadores, de antigos empregados pouco escrupulosos da metrópole, e, noutra parte, feita outro dia à mão pelos dois imperadores...
(Silvio Romero.  Realidades e ilusões no Brasil: Parlamentarismo e presidencialismo e outros ensaios; seleção e coordenação de Hildon Rocha.  Petrópolis: Vozes; Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1979, p. 297-298)

    Pode-se discordar, e muito, das teses de Silvio Romero (1851-1914), um polemista que frequentemente assumiu posições autoritárias e racistas.  O trecho que abre esta postagem, entretanto, deve ser saboroso para quem, como eu, rejeita por inteiro os sistemas baseados na hereditariedade do poder e a noção de que as massas precisam ser dirigidas pela gente bem nascida. Ressalto nele um aspecto em particular: não escapou a Romero, homem formado intelectualmente durante o Segundo Reinado, a evidência de que muitos traficantes de escravos desfrutaram de elevado status e de privilégios estatais e paraestatais no regime monárquico.  A leitura do parágrafo transcrito, cuja existência ignorava há poucas horas, me remeteu de pronto à lista, elaborada por Manolo Florentino, dos "mercadores de almas" em atividade na praça do Rio de Janeiro entre 1811 e 1830.       

                  

                              Ver Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro.  São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 254 a 256.

         Embora muitos destes nomes sejam bastante familiares, circunstâncias de tempo me impedem de efetuar um levantamento completo sobre as posições que ocuparam na sociedade imperial, tarefa que bem executada tenderia a resultar em excelente (e gigantesco) livro.  Uma breve pesquisa, todavia, é suficiente para ratificar a opinião de Silvio Romero. Mesmo deixando de lado aqueles que, como Elias Antônio Lopes, doador da Quinta da Boa Vista ao regente D. João, morreram antes da Independência do Brasil, percebemos facilmente a ascensão social de notórios traficantes. Entre eles, houve vários barões.  
  
[José] Fernando Carneiro Leão- Barão de Vila Nova de São José em 14 de outubro de 1825.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bar%C3%A3o_de_Vila_Nova_de_S%C3%A3o_Jos%C3%A9

Amaro Velho da Silva- Barão de Macaé em 12 de outubro de 1826.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bar%C3%A3o_de_Maca%C3%A9

João Rodrigues Pereira de Almeida- Barão de Ubá em 12 de outubro de 1828.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bar%C3%A3o_de_Ub%C3%A1 

Antônio Clemente Pinto- Barão de Nova Friburgo em 28 de março de 1854.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bar%C3%A3o_de_Nova_Friburgo

Ver Lista de baronatos do Império do Brasil:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_baronatos_do_Imp%C3%A9rio_do_Brasil


         D. Pedro I, tal como seu pai, concedeu a comenda da Ordem de Cristo, da dinastia reinante, a muitos negociantes de escravos.  Pelo Diário do Rio de Janeiro de 8 de abril de 1823 vemos José Luiz da Motta e o já citado Fernando Carneiro Leão ostentando este título.



       O traficante Diogo Gomes Barroso foi provedor da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro entre 1826 e 1827.  Identificamos também que seus parentes Antônio e João estiveram na mesma posição durante o período joanino.
http://www.santacasarj.org.br/h_provedores.htm


        Através da consulta a um trabalho de sólida fundamentação bibliográfica, achamos dois integrantes da lista de Florentino, Lourenço Antônio do Rego e Francisco Pereira de Mesquita, recebendo sesmarias na região fluminense de Valença.  O primeiro também detinha a patente de coronel, provavelmente das Milícias.
http://www.institutocidadeviva.org.br/inventarios/sistema/wp-content/uploads/2009/11/5_santa-barbara.pdf


        Mais um traficante, Guilherme Midosi, participou, escolhido pelo governo, da comissão que redigiu o primeiro Código Comercial brasileiro.
http://www.ebah.com.br/content/ABAAAfoE8AI/curso-direito-comercial-volume-i-rubens-requiao?part=2
A Real Junta de Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação desde logo resolvera encarregar Silva Lisboa de organizar o Código de Comércio. A iniciativa recrudesceu em 1832, quando a Regência nomeou uma comissão de comerciantes, como era de bom-tom, composta por Antônio Paulino Limpo de Abreu, José Antonio Lisboa, Inácio Ratton, Guilherme Midosi e Lourenço Westin, este cônsul da Suécia, para elaborar um projeto de Código Comercial. Essa comissão, presidida por Limpo de Abreu e depois por José Clemente Pereira, desincumbiu-se do encargo, tendo sido o projeto enviado à Câmara em 1834.

     Volto ao Diário do Rio de Janeiro, edição de 4 de outubro de 1836.  O traficante Antônio Tavares Guerra é votado por 805 pessoas, tornando-se eleitor de segundo grau da freguesia de Santa Rita, da Corte, apto a escolher deputados e senadores.




          Um "colega de profissão", José Ignácio Vaz Vieira, chegou ao posto de vice-presidente da província do Rio de Janeiro, que administrou de fato no ano de 1837.
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u816/000001.html
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u816/000063.html


         José Bernardino de Sá, feito Barão de Vila Nova do Minho em Portugal, no Rio de Janeiro foi  secretário graduado e irmão definidor da Ordem de São Francisco de Paula, conforme seu registro de falecimento em 1855: 
http://www.cbg.org.br/baixar/cemiterio_catumbi_4.pdf

         Estas informações, que com mais alguns dias de buscas certamente se multiplicariam, ferem mitos caros aos conservadores: o da supremacia moral das elites, o do Império como Idade do Ouro e o da inatacável honestidade dos "antigos".  Temos, portanto, bons motivos para difundi-las.    






2 comentários:

  1. Parabéns pela boa publicação. Elucidativa e documentada ! ! !

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  2. muito bom parabens!!!!
    convido vc a vir conhecer minha pagina no facebook..."Acontecimentos Historicos do Brasil"

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