quinta-feira, 13 de março de 2014

O racismo brasileiro segundo... Gilberto Freyre


       Entre as construções ideológicas do conservadorismo brasileiro, a noção de democracia racial é a mais exaustivamente desmistificada.  Um pesquisador que se dispusesse a relacionar os títulos de todos os trabalhos acadêmicos destinados a comprovar o caráter estrutural do racismo em nossa sociedade seria obrigado, sem dúvida, a distribuir tal trabalho por vários volumes. Nenhum profissional das Ciências Humanas, mesmo no campo teórico liberal, contesta frontalmente a persistência dos preconceitos étnicos no país; no máximo, alega-se que as diferenças socioeconômicas têm peso superior ao "fator raça".
       Todavia, o mito mantém a antiga força no imaginário de expressivos segmentos da população, nisto incluídos os de elevada escolaridade.  Podemos localizar com facilidade as variantes de um discurso segundo o qual um sábio multidisciplinar, Gilberto Freyre, atestou há mais de oitenta anos a ausência de racismo no Brasil e uma perfeita harmonia nas relações entre brancos, negros e índios, traduzida na miscigenação generalizada que se verificou desde o período colonial. Pouco importa, a este respeito, que o próprio Freyre tenha manifestado opiniões ambíguas a respeito da validade do conceito de democracia racial e que suas obras estejam repletas de exemplos categóricos de que sempre houve, desde os primórdios da América Portuguesa, uma nítida hierarquia étnica.                   
         Examinemos dois casos.  Apologista de Gilberto Freyre, o advogado Antônio Campos, em texto que foi reproduzido em diversos sites, expõe sua fervorosa crença, sem ressalvas, no mito da democracia racial.  

http://www.mimo.art.br/noticia-154-o-classico-casa-grande-senzala-de-gilberto-freyre-completa-80-anos#.Ux80Q_ldUUY

Publicado em 1933, no mesmo ano em que Hitler assume a liderança do Partido Nazista e o mundo é tomado pela ótica da eugenia, o livro configura uma reflexão muito pertinente sobre a miscigenação e sobre uma convivência cordial entre os povos de todas as raças e crenças, existentes no território brasileiro, exemplo também sem igual nas outras Nações.

                                                                (...)


E mais, esse pernambucano do Recife viu o Oriente no Brasil, e o nosso país como o grande paradigma da atualidade, pela lição que dá ao mundo de uma tolerância racial inigualável




      O administrador do blog Acarajé Conservador, outro crente na natureza adocicada da colonização e das relações interétnicas no Brasil, se vale de citações de Freyre para situar o Catolicismo como um dos alicerces da presumida "confraternização cultural".  

http://acarajeconservador.blogspot.com.br/2012/12/e-o-brasil-fosse-protestante.html


Se "o catolicismo foi realmente o cimento da nossa unidade", como diz Freyre, a ligação da Igreja Católica com a identidade nacional é de caráter essencial. Os portugueses que atravessaram o Atlântico, que já carregavam fortes traços de miscigenação entre os povos que invadiram a península ibérica, estavam unidos na guerra de cristãos contra infiéis. Afirma o autor de "Casa-Grande e Senzala" que as "guerras contra os índios nunca foram guerras de branco contra peles-vermelhas, mas de cristãos contra bugres." A heresia, portanto, é o grande inimigo da colônia, não o estrangeiro: franceses, holandeses e ingleses convertidos serão tratados com a mesma doçura que um lusitano legítimo. O Brasil nasceu, assim, sob a urgência da ortodoxia – ainda que aparente. Destarte, na Terra de Santa Cruz o crivo se tornou o batismo católico e não a gota de sangue, como ocorrera nos EUA. Diz o pensador pernambucano que “a religião tornou-se o ponto de encontro e de confraternização entre as duas culturas, a do senhor e a do negro; e nunca uma intransponível ou dura barreira”. 


         Considero um equívoco ignorar os lugares comuns pela falta de sofisticação intelectual de seus propagadores.  Inversamente, julgo que todo grupo ou indivíduo capaz de formar opinião política deve ser submetido à crítica.  Assim, recorro ao livro Ordem e Progresso, de Gilberto Freyre, para fazer passar pelo crivo da razão o que dizem os freyrianos leigos.  Tenho em mãos a 3a edição da obra, datada de 1974 (Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL), sendo o original de 1959.  Estamos, portanto, frente ao ensaísta pernambucano em sua fase madura, na qual oscilou significativamente para a direita. 

       Entusiasta, ao longo de toda a vida, do "mundo que o português criou", Freyre não deixa de apontar, em Ordem e Progresso (tomo I, p. 312), a evidente conjuntura de desigualdade "racial" que testemunhou na juventude, explicitada na distribuição do poder político: 

Branco, oficialmente, por ter se tornado líder prestigioso da República, era agora o mestiço Francisco Glycerio; era o mestiço Nilo Peçanha- que chegaria à Presidência da República; e embora se murmurasse de outros líderes novos, como Campos Sales, não serem de todo caucásicos, mas tocados de algum sangue negro-africano, sua situação de brancos de fato estava confirmada ou assegurada pela sua posição de triunfadores políticos.  O domínio político na República continuava a ser quase tão de brancos puros ou de fato, como fora no Império.  Quem atentar nas fotografias dos membros da Constituinte republicana de 91, não conclui, da análise dos característicos étnicos dos homens públicos que ela reuniu, terem eles representado a tomada do poder político no País por uma camada social etnicamente diversa da que dominara politicamente o Império, com uma ou outra fisionomia negroide- Jequitinhonha, por exemplo- no meio das muitas fisionomias caucásicas ou arianas.  Viria a acentuar-se, sob a República, a ascensão de brasileiros negroides aos altos comandos políticos: mas aos poucos e através de um processo de seleção que importou em alguma discriminação contra quem fosse ostensivamente africano na cor e nos traços.  

           Apesar da clareza desta passagem, outras partes de Ordem e Progresso se mostram mais interessantes para nossa investigação.  Freyre, ao longo da década de 1940, sugeriu a mais de mil brasileiros nascidos entre 1850 e 1900 o preenchimento de um questionário autobiográfico que, entre diversas questões, convidava os entrevistados a estabelecerem posições a respeito do fim da escravidão e de hipotéticos casamentos de seus parentes próximos com "pessoas de cor".  Muitos se esquivaram  da proposta, como o presidente Getúlio Vargas, que teria declarado que "Eu não sou homem que se descubra, mas que deve ser descoberto" (O. & P., tomo I, p. XLI).  Mesmo assim, o autor reuniu "quase trezentas respostas escritas e conseguidas durante anos de paciente colheita" (O. & P., tomo I, p. XXVII).  Uma parcela deste material foi transcrita em termos mais ou menos literais ao longo de alguns capítulos do livro.
          Vários dos entrevistados negaram alimentar preconceito em qualquer grau.  Entre eles, José de Paiva Castro, paulista nascido em 1899, para quem "o coração não tem cor" (O. & P., tomo II, p. 358), o piauiense Francisco Antônio de Lima, de 1875, segundo o qual "cor não é indignidade" (O. & P., tomo II, p. 368), e a também paulista Analice Ribeiro Corbelli, que incluiu em seu texto a sentença "Não deve haver preconceito de cor no casamento, tudo dependendo das circunstâncias e da afeição dos nubentes" (O. & P., tomo II, p. 362).  João Barreto de Meneses, filho do filósofo Tobias Barreto, não apenas disse que aceitaria "sem menor relutância nem pesar nenhum" a união de filhos ou irmãos com pessoas "de cor mais escura", como também se orgulhava de ter nas veias "uma porção de glóbulos da raça que santificou com seu martírio nos troncos o soerguimento de nossa grandeza econômica" (O. & P., tomo II, p. 355).  O baiano Manuel Silvino da Silveira, vigário de Livramento, receberia "o casamento de parente próximo com pessoa de cor mais escura com respeito e acatamento, a todos considerando irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo" (O. & P., tomo II, p. 363).  Astrojildo Pereira, um dos fundadores do PCB, se definiu como "sem preconceito de cor" e anexou a informação de que "só na madureza a questão me preocupou do ponto de vista político marxista" (O. & P., tomo II, p. 368).     
        Todavia, predominaram por larga margem respostas que revelam níveis variados de racismo. Muitos dos depoentes admitiram sem subterfúgios, e até de forma rancorosa, o preconceito racial, em certos casos demonstrando simpatia por uma eventual segregação étnica.       
                      
."Sempre fui contrário à aproximação de negros e mulatos para com os brancos", informa José Rodrigues Monteiro, nascido em 1887 no Ceará.  De modo que "receberia de mau grado" casamento de filho ou filha, irmão ou irmã, com pessoa de cor mais escura.
(O. & P., tomo II, p. 353) 


.Dona Isabel Henriqueta de Sousa e Oliveira, nascida na Bahia em 1853, mas educada na Capital do Império, confessa ter sido sempre "antipática ao abolicionismo".  Considerando "o negro uma raça inferior", qualquer mistura "legal ou ilegal" que tenha havido de brancos com pretos no Brasil, lhe parecia, na época na época de sua resposta ao questionário que serve de lastro a parte deste ensaio, merecer censura. 
(O. & P., tomo II, p. 354)


.Para Durval Guimarães Espínola, baiano de origem rural nascido em 1883, a abolição dos escravos, no Brasil foi "boa": "boa" a ideia da Princesa Isabel "mas isto depois que ela indenizasse os Senhores que aliás naquela época tiveram muito prejuízo".  Lamentável lhe parecia- seu depoimento escrito é datado de 1942- que a raça se mostrasse entre nós "degenerada", pois "eu muito aprecio a cor branca e não desejava que se casasse um preto com um branco, coisa muito comum entre nós, o que eu muito combato e eis a razão da nossa mistura de raça que eu muito condeno".
(O. & P., tomo II, p. 356)

.João Batista de Lima Figueiredo, nascido em São Paulo em 1878, informa ter tido, quando menino e jovem, atitude de "certa pena" para com os negros.  Quanto a casamento de parente próximo com pessoa de cor, "receberia com tristeza e revolta".
(O. & P., tomo II, p. 358)


.Júlio de Mesquita, nascido em São Paulo em 1892, expande-se sobre o problema sociológico das relações de brancos com pretos e mulatos,
                                                                           (...)
"Outra prova do que afirmamos: os terríveis recalques que fazem da maioria dos mulatos indisfarçáveis seres desgraçados e, de quase todo preto, um marginal em choque permanente com o meio: Isto pelo menos em São Paulo e nos Estados do Sul, onde tendem a viver em grupo e em oposição aos brancos".  E acrescenta: "Por todas essas razões, é óbvio que eu não aceitaria jamais, voluntariamente, o casamento de qualquer membro de minha família com gente indisfarçavelmente de cor.  Além do mais, porque me recusaria sempre a que viessem ao mundo infelizes.  E o preto e o mulato, devido às condições sociais, cada vez mais predominantes no Brasil, de toda evidência, são uns infelizes". 
(O. & P., tomo II, p. 358-359)


."Condeno totalmente o casamento de gente de cor com filhos ou filhas de branco", diz em seu depoimento o Padre Leopoldo Fernandes Pinheiro, nascido no Ceará em 1880"
(O. & P., tomo II, p. 363)


.Ainda mais intransigente neste particular, revela-se, em seu depoimento escrito, datado de 1940, José Magalhães Carneiro, nascido em Sergipe em 1880 e formado na Faculdade de Medicina em 1901, depois de ter feito estudos de Humanidades no Rio de Janeiro, "sob a orientação de Sylvio Romero, de quem foi discípulo 11 anos":
                                                                            (...)
Quanto ao casamento de filho ou filha, irmão ou irmã, com pessoa de cor, Magalhães o receberia "do pior humor".  Isto por ter sempre considerado a mestiçagem de negro "uma irremediável desgraça.  Ao conflito de sangue corresponde um desequilíbrio no metabolismo dos três domínios.  Quem já viu um mulato criador? Ninguém me venha dizer que Tobias Barreto e outros que tais foram gênios..."
(O. & P., tomo II, p. 363)


.De ainda outro pernambucano, Adolfo Ferreira da Costa, nascido em 1879, é a confissão: "Sou contra a igualdade das raças, embora todos sejam humanos. Deveria haver seleção pois os tais tomam muita liberdade.  Sobre o casamento [de filho com pessoa de cor] ficaria indignado.  Acho que [cada qual] deveria procurar um da sua igualha". Sua expressão "os tais" refere-se a mulatos ou indivíduos de cor.
(O. & P., tomo II, p. 367)


        Um número maior de pessoas, exibindo as facetas daquilo que ficaria conhecido como "racismo velado", procurou mesclar suas prevenções com declarações de tolerância e generosidade, recordando velhas inclinações abolicionistas ou aceitando a igualdade racial como princípio em tese justo, embora talvez repugnante.    


.Outro brasileiro do Rio Grande do Sul, Afonso Côrtes Taborda, nascido em Santo Ângelo em 1857, recorda ter sido "desde tenra idade [...] contra a escravidão".  Seus pais tinham muitos escravos e Afonso conseguiu "com eles que lhes dessem liberdade a uns quantos..." Entretanto receberia mal o casamento de filho ou filha, irmão ou irmã, com pessoa de cor.
(O. & P., tomo II, p. 354)  


.Nunca pensou assim Dona Carlinda Custódia Nunes, nascida em 1874, em Botafogo, no Rio de Janeiro, que moça, teve "pena dos negros e mulatos" e "gostou muito da abolição", achando, porém, que "se deve apurar [no Brasil] a raça branca.  Receberia mal o casamento de qualquer parente com pessoa de cor.
(O. & P., tomo II, p. 355)


.Outro paulista, de origem aristocrática, Luís de Toledo Piza Sobrinho, nascido em 1888, assim se exprime sobre o assunto, em seu longo depoimento: "Jamais se aninhou em mim qualquer preconceito de raça.  Cresci, e me fiz homem, amando os meus semelhantes, tratando com especial deferência e carinho os pretos e mulatos, os mais humildes.  Pensava, assim, resgatar a injustiça da escravidão a que estiveram submetidos.  Como já disse antes, minha família foi entusiasta da Abolição". E quanto ao aspecto concreto e pessoal da questão: "Poderá parecer que minha resposta a este item, contradiz a dada ao anterior.  Mas não há tal: fui sincero, como serei ao responder ao último.  Falo a um sociólogo, a um fino psicólogo e, estou certo, ele me compreenderá.  Não veria com agrado, confesso, o casamento de um filho ou filha, irmão ou irmã, com pessoa de cor.  Há em mim, forças ancestrais invencíveis, que justificam essa atitude.  São elas, percebo, mais instintivas do que racionais, como, em geral, soem ser aquelas forças, sedimentadas, há séculos, no subconsciente de sucessivas gerações".
(O. & P., tomo II, p. 359-360)


.Não assim o cearense nascido em 1880, Luís Gonzaga de Melo, para quem "a Abolição foi um ato de franca humanidade", devendo-se, entretanto, com relação a casamentos mistos, seguir o preceito "cada macaco no seu galho".
(O. & P., tomo II, p. 363)


.José Bezerra de Brito, nascido no Ceará em 1878, lembra-se de que tendo seus avós possuído escravos, estes eram tratados com tanta humanidade que, depois da Abolição, "ficaram em casa e só foram saindo à medida que iam se casando ou encontrando colocações convenientes". Acrescenta sobre o assunto: "Os negros [escravos e descendentes de escravos] da nossa família tinham regalias especiais e eu vi muitas vezes minha avó, santa velhinha, a cuidar dos escravinhos, a banhá-los, a alimentá-los".  Em matéria de casamento, porém, José Bezerra de Brito não se deixava dominar pelo sentimentalismo: era adepto da sentença "se não queres casar mal, casa com igual".
(O. & P., tomo II, p. 364)


.De outro cearense, nascido em 1882 no sertão, é o depoimento de ter tido "a ventura" de assistir ao "maior e mais honroso acontecimento nacional, o 13 de Maio de 1888": "Fui testemunha do desfile de escravos que deixavam as senzalas com a carta de alforria na mão, radiantes de felicidade".  Mas quanto a casamento misto, "para nós, sertanejos, o casamento de branco com negro é muito reprovado.  Quando se dá, há bastante censura e contrariedade da família [branca]".
(O. & P., tomo II, p. 364)

.O pernambucano Artur de Siqueira Cavalcanti, nascido em Palmares, em 1877, no Engenho Primoroso, declara ter sido simpático à Abolição.  Mas "o casamento de filho meu com negra ou mulata, receberia sempre com o coração envolvido pela faixa negra da mágoa".
(O. & P., tomo II, p. 366)


.O paraibano Horácio Gomes da Silva, nascido em 1862, depois de se dizer adepto da "igualdade das raças na sua origem e no seu fim" e "ardente abolicionista", diz quanto aos casamentos mistos que envolvessem parente seu muito próximo: "Radicalmente contrário a tais casamentos".  Em outras palavras: igualitário, em teoria; arianista, na prática.
(O. & P., tomo II, p. 367)

."Não faço distinção de cor, para mim o que vale são as qualidades intrínsecas ao homem, o seu caráter", generaliza Sebastião de Oliveira, nascido em 1878 no Rio Grande do Sul.  Mas quanto a casamento de filho ou irmão com pessoa de cor, "receberia com prevenção".
(O. & P., tomo II, p. 368) 


.Otávio Tarquínio de Sousa (Amaranto), nascido em 1893 no Rio de Janeiro, depõe: "Sempre fui muito tolerante com relação a negros e mulatos.  Entre negros e mulatos conheci algumas das criaturas mais perfeitas que já tenho encontrado".  Quanto a casamento de filho ou irmão com pessoa de cor: "Respondendo a frio, raciocinadamente, não faria objeção [...] mas estou certo de que acharia pelo menos estranho que isso acontecesse: teria um choque".
(O. & P., tomo II, p. 368)


.Amílcar Armando Botelho de Magalhães, nascido em 1880 no interior do Rio de Janeiro, declara quase nas mesmas palavras de Max Fleiuss sempre ter sido abolicionista.  Abolicionista "desde a mais tenra idade!" 
                                                                             (...)
"Julgo que não há propriamente um problema de raças no Brasil mas que a tendência natural para a seleção individual, conforme leis biológicas e sociológicas, preparam o amálgama dum tipo de estabilidade crescente.  O que parece necessário é facultar os cruzamentos e evitar, por medidas adequadas, a perpetuação dos tipos elementares, quer índios, quer negros, incrementando a fusão dessas duas [raças] separadamente com tipos da raça branca.  Mas isto só é possível e viável nas camadas inferiores desta raça, como os poilus, os jecas, os homens do campo de toda parte, de instrução elementar". Daí sua atitude com relação a casamentos de filho ou irmão com pessoa de "raça elementar pura ou quase pura": Repudiaria [...] e tudo faria para os evitar, como altamente prejudiciais, no ponto de miscigenação a que atingiu minha família.  Particularmente tive oportunidade de assim agir num caso concreto".
(O. & P., tomo II, p. 369)

.Alfredo Bartolomeu da Rosa Borges, nascido em Pernambuco em 1864, depois de recordar sua qualidade de abolicionista e de republicano, adepto de Martins Júnior, confessa lealmente ter sido sempre dominado por esse "instinto de branquidade" na sua forma absoluta: "Tenho um arraigado preconceito de cor.  Seria contrariadíssimo que receberia, em minha família, um casamento com pessoa de cor".
(O. & P., tomo II, p. 371)

.Atitude semelhante é a revelada por João Cupertino Dantas, nascido em 1854 no Engenho Unha de Gato, em Sergipe: "Como o meu pai foi sempre humanitário em tratar os escravos, não sofreu grande abalo com a Abolição, continuando quase todos eles na propriedade sob o regímen de assalariados.  O casamento com pessoa de cor em minha família seria um grande desapontamento [...] pois não se dissipa facilmente em nosso espírito a hereditariedade de antiga prevenção. 
(O. & P., tomo II, p. 371)  


."Não obstante minha boa vontade para com os homens de cor, não toleraria o casamento de uma filha ou de uma irmã com um deles, fosse embora um Patrocínio, um Luís Gama ou um Rebouças", confessa João Franklin de Alencar Nogueira, nascido no Ceará em 1867.
(O. & P., tomo II, p. 371)


.Paulo Inglês de Sousa, nascido em São Paulo em 1888, pensa da Abolição que "veio tarde demais".  Quanto à sua atitude para com negros e mulatos, em depoimento de 1940, afirma ter sido sempre de cordialidade, evitando, porém, a intimidade.  Não gostaria de ver filha ou irmã casada com homem de cor evidente.
(O. & P., tomo II, p. 372)

.Aureliano Leite, nascido em Minas Gerais em 1887, mas crescido e educado em São Paulo, lembra em seu depoimento não ter sido "do tempo da Abolição"; quanto à sua atitude para com negros e mulatos, caracteriza-a como "de tolerância, sem grandes preconceitos, certo de que o Brasil é um País de mestiços".  Nada, porém, de casamento de filha ou irmã sua com pessoa de sangue africano: "Opor-me-ei quanto possa".
(O. & P., tomo II, p. 375)


.Daí, talvez, Rogério Gordilho de Faria, nascido em Sergipe em 1889 mas crescido e educado na Bahia, depois de reconhecer que "o pigmento não deveria constituir barreira para os acessos", "a raça", entre nós, devendo ser "depurada no sentido mais psicológico do que pigmentar", confessar: "Se sob o ponto de vista mental penso assim, o casamento de filho, filha ou irmã, brancos, com um preto, ainda me choca o instinto, pela sedimentação do costume".
(O. & P., tomo II, p. 375)


      Pelo menos um dos entrevistados ostentou adesão consciente à chamada "ideologia do branqueamento":         

.Roberto Christiani Naegeli, brasileiro filho de europeus, nascido no Rio de Janeiro em 1881 e educado na Suíça, depõe sobre o assunto: "Lembro-me, entretanto, do meu tempo de menino na Suíça, acontecer, às vezes quando éramos apresentados em sociedade a pessoas desconhecidas, que estas exclamavam com muito espanto e pouca delicadeza: 'Brasileiros brancos?!' o que, regularmente, era motivo para que minha Mãe se encolerizasse bastante".  E quanto à miscigenação brasileira, opina "que o sistema adotado pelo Brasil para a solução da questão da cor e que consiste na absorção paulatina das raças de cor pela raça branca, está dando esplêndidos resultados.
                                                                             (...)
"Estimo que, com mais 75 anos, o elemento de cor tenha completamente desaparecido da população brasileira.  Contudo, não poderia ver com bons olhos um casamento de membro da minha família com uma pessoa de cor".
(O. & P., tomo II, p. 360-361)


       Outra parte dos depoentes assumiu um discurso de tolerância para com os mestiços, negando-a aos negros tidos como "puros", ou admitiu a convivência com estes, no plano familiar, somente sob determinadas condições:


.Waldemar (Martins) Ferreira, nascido também em São Paulo, em 1885, escreve no seu depoimento: "Não receberia (quando moço) com agrado o casamento de filho ou filha, irmã ou de irmão, com homem de cor.  Com o preto, enfim.  Não com o mestiço, o que é diferente; e mestiços há em toda parte.
(O. & P., tomo II, p. 357)

.Enquanto o cearense Francisco Lopes Filho, nascido em 1880, e casado com mulher de cor, informa da sua atitude para com os negros e mulatos ser regulada, como sua atitude para com os brancos, pelo procedimento dos mesmos.  Veria entretanto "com repugnância o casamento de filha com homem de cor mais escura".
(O. & P., tomo II, p. 368)


.Alfredo Rosas, nascido na Paraíba em 1887, depois de tachar de "audaciosa" a pergunta que lhe foi feita em questionário que concordara em responder por escrito, sobre como receberia o casamento de filho ou irmão com pessoa de cor, escreveu em depoimento datado de 1940, não sem ter antes generalizado sobre o assunto, que considerava o Brasil "um povo modelar" no tocante às relações entre as raças: "Se pode existir no casamento de um branco com uma negra ou mulata, a afinidade eletiva, de que nos fala Max Nordau, não me oporia a uma dessas uniões na família. Estou convencido, porém, de que essa afinidade não poderia existir [...].  Como não existiria numa aliança de branco com uma maori neozelandesa".
(O. & P., tomo II, p. 371)

.Já outra branca pobre, Maria Teodora dos Santos, nascida em Pernambuco em 1878, informa ter-se casado aos dezesseis anos com homem que deu para beber.  De pretos, diz, no seu depoimento, não gostar como iguais de gente branca: "nasceram para servir os brancos".  Ela própria teve a seu serviço "uma preta chamada Constância que vendia os seus trabalhos de labirinto".  Se filha sua "se casasse com preto, sentiria, a não ser que ele tivesse dignidade e caráter e cuidasse bem dela".
(O. & P., tomo II, p. 377) 

         
          Já Heitor Modesto de Almeida, mineiro nascido em 1881, expressou a tendência inversa:

.(...)depois de ter recebido, "em menino, com grande simpatia, a abolição dos escravos", pois os escravos eram "um anexo da família", alguns tendo ficado com os Modesto "o resto da vida, depois de libertos", confessa sempre ter gostado "mais do negro que do mulato", considerando o mulato "o inimigo natural do branco". 
(O. & P., tomo II, p. 352)       


         Por fim, um conterrâneo do autor (e portador do mesmo sobrenome), negando enfaticamente seu preconceito pessoal, imputou a discriminação ao conjunto da sociedade, à qual conviria se curvar.

.Do também pernambucano José Maria da Silva Freyre, ou Freire, nascido em 1887, é o depoimento de ter sido mais feliz em sua "amigação com negra" - no que seguiu o exemplo do seu tio Manuel da Rocha Wanderley, "homem louro como um estrangeiro, olhos azuis, alvíssimo de pele, para quem mulher branca não era mulher"- do que no seu casamento com branca.  Daí sua predileção por mulher de cor ter se tornado total, tendo deixado de casar com negra pelo receio de "ofender a família e ficar mal visto pela sociedade".
(O. & P., tomo II, p. 383)

       
           Esta longa exposição não tem como finalidade trazer para execração pública os nomes de algumas dezenas de presumidos monstros.  As declarações dos homens e mulheres que foram entrevistados por Gilberto Freyre denunciam, obviamente, mazelas de sua socialização nas décadas finais do escravismo brasileiro ou no pós-Abolição.  Sem poder escapar ao velho chavão, afirmo que todos constituíam produtos do meio em que viveram, absorvendo em maior ou menor escala os padrões predominantes de discriminação racial e socioeconômica; estes, não raro, combinados entre si de uma maneira que torna problemática a quantificação de cada um.
            Porém, devo salientar que não estamos diante das falas de senhores de engenho da época do estabelecimento das Capitanias Hereditárias ou revisitando os fundadores do Império do Brasil.  Ainda que todos os colaboradores de Ordem e Progresso já tenham morrido, eles foram bisavós, avós ou pais das pessoas que integram a geração dos meus pais (nascidos em 1941 e 1945).  Em outras palavras, participaram ativamente da formação das ideias e dos sentimentos de gente que ainda está viva e exercendo influência em todos os setores.             
           Concluo então, mais uma vez, pela falta de seriedade dos que ainda saúdam a inexistência, ou quase, de racismo no Brasil.  Não entendam que sou pessimista quanto à questão abordada; a julgar pelo conjunto de muitas experiências pessoais, eu diria que a discriminação étnica diminuiu no Brasil das últimas décadas, embora meu foco de observação contenha uma deficiência básica: nunca residi fora do estado do Rio de Janeiro.  Este avanço resulta diretamente das lutas pela igualdade, individuais e coletivas, e jamais do negacionismo desmoralizado e caduco.           
             


          













  
   





  




    





   











5 comentários:

  1. As ideias freyreanas acerca das relações raciais no Brasil são um antigo "wishful thinking", daí que despertem discussões apaixonadas até hoje. Longe de mim desmerecer a vasta e original obra sociológica de Gilberto Freyre, que teve a coragem de ir contra a corrente de seu tempo, e valorizava sobremaneira aspectos da vida privada como chave para a explicação de fenômenos sociais, método que era desprezado pela sociologia da época, mas que teria o devido reconhecimento no futuro. Justamente por respeitar Freyre, eu lamento que sua obra seja reduzida a um apanhado de lugares-comuns em prol da mestiçagem e conceitos bobos como a tal de democracia racial, termo que, aliás, jamais foi escrito por Freyre.

    A tese de Freyre foi que a miscigenação anula o racismo. Isso é uma meia verdade. A miscigenação torna o racismo difuso, uma vez que o racismo, tal como toda dicotomia Nós X Eles, só existe enquanto Nós formos perfeitamente distinguíveis d'Eles. Já os detratores de Freyre criaram uma mistificação ainda mais tola: de que a miscigenação brasileira é produto da violência, como se todos os brasileiros de pele escura fossem descendentes de escravas estupradas nas senzalas. Estupros ocorreram sem dúvida, mas é um primarismo atroz achar que todo um grupo étnico possa ter nascido de sucessivos estupros. Jamais vi um historiador francês defender a tese de que seu povo descende de mulheres gaulesas estupradas por legionários romanos, nem um historiador escocês afirmar que seu povo nasceu de mulheres celtas estupradas por vikings, mas muitos idiotas por aqui afirmam com toda a seriedade que os brasileiros são o produto de índias e africanas estupradas por portugueses...

    A miscigenação brasileira foi mero fruto da necessidade: quando aportaram aqui os primeiros colonos portugueses, vinham apenas homens e nenhuma mulher. Esses colonos tinham que ter filhos - qualquer um que se estabelece em uma terra desconhecida, despovoada e sem produção regular de alimentos, sente logo a necessidade imperiosa de produzir descendentes na maior quantidade e o mais rapidamente possível, pois sem eles não terá sequer como sustentar-se quando lhe faltar forças para o trabalho. Os colonos tiveram que desposar índias, e tinham, sim, relações estáveis com elas, pois apenas relações estáveis podem produzir a grande quantidade de rebentos de que eles necessitavam, e quanto à poligamia, esta era aceita conforme os costumes dos índios. Mais tarde, essa massa de cabocos viria a se miscigenar com os africanos recém-libertos da escravidão, que tinham uma condição social similar à deles, dando origem aos mulatos. Foi isso o que aconteceu.

    (continua)

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    1. Alguns reparos:
      .Eu não diria que a miscigenação torna obrigatoriamente o racismo difuso. A colonização da região do Cabo da Boa Esperança gerou uma população essencialmente mestiça, com a contribuição de holandeses, alemães e franceses protestantes, hotentotes, bantos, indonésios, malaios, malgaxes, indianos, árabes. Entretanto, ali pôde ser estabelecido um forte sistema de segregação. Com relação aos Estados Unidos e sua discriminação institucional, poderíamos lembrar que o próprio Gilberto Freyre afirmou, em Casa Grande & Senzala, que para nós brasileiros 80% dos negros americanos seriam mulatos.
      .Sem dúvida a posição de tomar cada brasileiro como resultado de uma sucessão de estupros tem algo de caricato. Porém, não é aceitável ignorar que ao longo de três séculos e meio os senhores de escravos da América Portuguesa dispuseram da propriedade de milhões de mulheres cativas que pouco ou nada poderiam fazer contra suas investidas sexuais. Assim, não há engano em dizer que uma parte significativa da população colonial e imperial era formada pelos frutos de uma violência explícita ou velada. Mesmo quanto às agregadas livres e libertas das fazendas, entre outros segmentos, a hipótese da consensualidade nas relações com os poderosos é bastante discutível.
      .A taxa de natalidade entre os colonos da América Portuguesa era indiscutivelmente alta, mas isto não derivou da expectativa de ter filhos para dar-lhes enxadas. Basta pensar na concepção que aqueles homens traziam da Europa sobre o trabalho manual, e também na relativa facilidade em conseguir escravos, exceto entre os muito pobres.
      .A historiografia mostra que o casamento de portugueses com índias foi mais exceção do que regra. Além dos concubinatos mais ou menos estáveis, e até da poligamia, um bom número dos então chamados mamelucos foi produto de relações ocasionais, e também não se deve desconsiderar os estupros em massa certamente comuns, por exemplo, nas bandeiras de apresamento de índios e nas expedições punitivas contra "tribos rebeldes".

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  2. (continuação)

    Mas isso conforme foi colocado no parágrafo acima soa muito prosaico. O senso comum prefere a ideia, "wishful thinking", de que os povos tropicais são dados à sensualidade e pouco inclinados à violência e ao racismo, já que preferem comer, beber, dançar e fazer amor ao invés da guerra. Então, os portugueses, povo sulista dado à libertinagem (daí que já fossem meio miscigenados com os mouros) vieram para o Brasil e misturaram-se com índios e africanos, povos ainda mais tropicais, e por este motivo ainda mais dados à libertinagem, resultando daí uma enorme orgia de sexo grupal que formou o povo brasileiro. Desta maneira foi produzida a caricatura do Brasil como uma imensa senzala povoada de mulatas assanhadas e portugueses lúbricos, coisa que é acreditada, principalmente, por estrangeiros, uma vez que essa imagem satisfaz suas concepções acerca de povos tropicais libidinosos em contraposição a povos nórdicos puritanos e circunspectos. A suposta ausência do racismo absolveria o pecado da luxúria.

    Com certeza o próprio Freyre compartilhava dessas fantasias. Uma obra pouco conhecida que ele escreveu no fim da vida, um livro de memórias intitulado De Menino a Homem, dedica-se a narrar numerosas experiências sexuais bizarras de sua juventude, e deixa claro o quanto ele era obcecado por sexo inter-racial. Acrescente-se que Freyre, filho de um médico, nasceu na cidade e jamais conheceu pessoalmente o universo de casa-grande e senzala que ele descreveu com tanta intimidade aparente.

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    1. "O senso comum prefere a ideia, "wishful thinking", de que os povos tropicais são dados à sensualidade e pouco inclinados à violência e ao racismo, já que preferem comer, beber, dançar e fazer amor ao invés da guerra."

      Exato. Mas para que serviriam os profissionais das Ciências Humanas se abrissem mão de contestar o senso comum?

      Obs: Seu primeiro comentário desapareceu, embora conste como publicado nas estatísticas do blog.

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  3. Me parece incorreto continuar afirmando que Gilberto Freyre não escreveu sobre democracia racial. Ele como sua perspicácia intelectual sabia que qualquer afirmação com tendência para o absoluto nasceria fragilizada no âmbito do entendimento das questões humanas. Gustavo Moreira demonstra saber disso ao referir-se a ambiguidade com que Freyre tratou a questão. Freyre tomava o cuidado em não afirmar a existência em absoluto da democracia racial, mas sim como uma projeção, uma inclinação, um ideal que nos distinguia, por exemplo, do EUA, devido, sobretudo, pela herança portuguesa das relações raciais em sua plasticidade e abertura para o outro. A defesa cuidadosa da democracia racial ou étnica está por exemplo no discurso proferido na Câmara dos Deputados em 1950: "Contra o preconceito de raça no Brasil"; e em ensaio escrito por solicitação da ONU em 1966: "Mistura de raças e interpenetração cultural: o exemplo brasileiro". Inclusive neste ensaio Freyre expõe uma informação pessoal que vai de encontro ao interesse sobre os casamentos inter-raciais que foi publicado nesta postagem. Freyre relata ter recebido carta de uma jovem negra estadunidense que admirada com seus escritos sobre os negros insinua que ele deveria casar com uma moça como ela, o que não seria possível pela tradição familiar do "mestre de apicucos":
    "Posso acrescentar que ainda por cima era bonita, a julgar pela fotografia que acompanhava a carta. No entanto, por tradição endógamo, eu não teria desposado uma moça negra dos Estados Unidos, da África ou mesmo do Brasil, e isto pela mesma razão por que eu não casaria com uma escandinava nem, no Brasil, com brasileira com nível de educação social muito diferente do meu."

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