terça-feira, 16 de setembro de 2014

História do Brasil a poucos cliques de distância


Dança do búzio dos Pankararu


       Há cerca de três anos, coube a mim atender, no Museu Nacional, um pesquisador vindo de Pernambuco, Lafaete José da Silva. Ele se apresentou, trazendo uma carta impressa, como "liderança do Povo Pankararu", etnia indígena que habita a parte pernambucana do sertão do São Francisco.  Sua missão, determinada pelo cacique, de cujo nome não me recordo, era levantar a maior quantidade possível de informações que existissem sobre os Pankararu no Rio de Janeiro.  Consultamos, então, trabalhos acerca dos índios do Nordeste que são custodiados pela Seção de Memória e Arquivo do Museu.  A busca não foi de todo infrutífera: cheguei a localizar uma monografia produzida a partir das expedições de antropólogos que visitaram diversas reservas pernambucanas nas décadas finais do século XX.  Lafaete identificou naquelas páginas vários amigos, reconheceu um dos colaboradores como seu primo, mas infelizmente nada havia de específico a respeito dos Pankararu, salvo uma ou outra nota isolada.
     Não me dei por vencido; decidi lançar mão, como habitualmente faço quando o acervo da Instituição é insuficiente para suprir as demandas dos usuários, de recursos externos.  Mostrei a Lafaete como poderia ler, na Internet, os antigos relatórios da presidência da província de Pernambuco.  Neles, enfim achamos a pista dos Pankararu, na época conhecidos como Pankaru, que já ocupavam a localidade denominada Brejo dos Padres, como vemos neste documento redigido pelo conde de Baependi, que governava a referida província em 1869:

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/684/000036.html




Jovens e crianças da aldeia de Brejo dos Padres 


       Enquanto viajávamos pelo século XIX, meu interlocutor descrevia as dificuldades enfrentadas pelos Pankararu na luta pela preservação de suas terras e de sua identidade. Inteiramente familiarizado com as múltiplas facetas da violência contra os índios na contemporaneidade, Lafaete soube que no distante ano de 1872 o conselheiro João José de Oliveira Junqueira, presidente de Pernambuco, orientava a política local no sentido da supressão dos aldeamentos, únicos locais em que, apesar da subalternidade que lhes era imposta, os povos indígenas tinham assegurados certos direitos reais.

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/687/000040.html
           

            
          Através do relatório de 1875, de autoria do desembargador Henrique Pereira de Lucena, descobrimos que o projeto de Oliveira Junqueira prosperava.  O Brejo dos Padres continuava a figurar como terra indígena, mas recomendava-se a sua extinção, junto com as aldeias restantes.  A argumentação empregada era semelhante à que levou, por exemplo, ao fim do aldeamento fluminense de São Lourenço, absorvido pela municipalidade de Niterói: se os índios não conservavam mais os costumes pré-cabralinos (como se fosse possível para qualquer sociedade viver da mesma forma durante quatrocentos anos!) ou tinham deixado de ser "de sangue puro", suas comunidades deveriam perder o status diferenciado previsto pela legislação.    


http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/690/000146.html


      


    
         Compreensivelmente, a esta altura Lafaete já manifestava fúria diante do cinismo da "civilização imperial"; esmurrou a mesa em frente à tela do computador e não conteve os palavrões que lhe vieram à mente.  Afinal, Brejo dos Padres estava longe de ser São Lourenço, e ele me revelou algo bastante previsível:
-Naquele tempo, nossa gente ainda andava pelada!!!
         Por fim, passados os minutos de cólera, Lafaete foi embora, mas satisfeito, pelo menos conforme a minha avaliação, com a incorporação de novas fontes de pesquisa, sob fáceis condições de acesso.
         Resgato o episódio para colocar em destaque um aspecto da descrição deste blog.  Quando defino o História & Política como veículo de informação a serviço das classes populares, não estou fazendo poesia ou jogo retórico, e sim exercitando, dentro de inevitáveis limites, o que considero um soberbo privilégio ao alcance dos historiadores, o de expor ao "homem comum" os segredos do Estado e das classes dominantes. 
         Percebo, entretanto, que preciso ir além do papel, acusado por alguns leitores, de uma espécie de "iniciado" que percorre misteriosos canais de um passado recente ou remoto para desnudar as intenções dos "de cima".  Isto ficou mais nítido para mim no começo deste ano, quando, em situação hilariante para quem observava de fora, um militante monarquista ensandecido me acusou de ter falsificado, em debate no Facebook, páginas de relatórios do Ministério da Marinha que demonstravam as severas deficiências da Armada imperial, que para ele talvez fosse capaz de afugentar do Atlântico Sul até as belonaves de Sua Majestade Britânica. Por estas e muitas outras, devo salientar que, com ou sem o auxílio dos "iniciados", o "homem comum", ainda que pouco instruído, pode vasculhar rápida e gratuitamente grande parte da documentação oficial acerca de assuntos que lhe dizem respeito ou despertam seu interesse.  
         Sendo impossível, no curto espaço de uma postagem, apontar todos os atalhos que fui aprendendo a duras penas, em centenas de horas de embate com a falecida (e nada saudosa) Internet discada, indico a princípio o programa de digitalização de documentos brasileiros da Universidade de Chicago.  Nele estão incluídos milhões de páginas microfilmadas nas dependências do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e exibidas a partir do link http://www.crl.edu/brazil.
           Os relatórios das administrações regionais do Império, sucedidos pelos republicanos até 1930, estão disponíveis em http://www.crl.edu/brazil/provincial.  Os pesquisadores, após a escolha inicial de um estado ou província, vislumbram uma sequência cronológica; escolhendo também o ano, na maioria dos casos contam com um índice que os levará, em segundos, ao tema investigado.  
          As mensagens dos presidentes da República, de Deodoro da Fonseca a Itamar Franco, podem ser lidas desde o link http://www.crl.edu/brazil/presidential, e os relatórios ministeriais a partir de http://www.crl.edu/brazil/ministerial.  Finalmente, os usuários  mais interessados no Rio de Janeiro localizarão em http://www.crl.edu/brazil/almanak as edições do Almanak Laemmert de 1844 a 1889.  A publicação, que foi impressa até os primeiros anos da Era Vargas, traz em suas páginas dados tão diversificados quanto as relações, por setor, de quase todos os estabelecimentos comerciais da antiga Corte, os nomes dos detentores dos cargos públicos (dos ministros aos serventes dos ministérios), o obituário dos "notáveis", as listagens dos homens aptos ao exercício da Medicina e do Direito, dos deputados gerais e provinciais, senadores e vereadores das vilas fluminenses.  Para orientar a busca neste "oceano", quase todas as edições possuem índice alfabético por assunto e guia onomástico. 
             Com o perdão da má paródia, informem-se, isto é glorioso!
                    
             
                                            

  

2 comentários:

  1. Você recomendaria Keila Grinberg para uma compreensão melhor do período imperial brasileiro? Obrigado

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    1. O livro dela sobre Antônio Pereira Rebouças, "O fiador dos brasileiros", é muito bom. A Keila também tem organizado obras interessantes, com artigos de autores diversos. Entenda, portanto, com um sim.

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