terça-feira, 14 de outubro de 2014

Para não dizer que não falei de eleições

       

        Trabalhei por dez anos, precisamente entre agosto de 1989 e outubro de 1999, no antigo banco estatal do Rio de Janeiro, o BANERJ.  Calouro do último concurso público realizado para o preenchimento de vagas na instituição, tive lotação na agência Tijuca, situada na Praça Saenz Peña, onde fui escriturário do setor de compensação e, a partir de meados de 1991, caixa. Depois, passei pelas agências Visconde do Uruguai, em Niterói, e Maricá; estava emprestado à agência Itaboraí, sujeita a uma escassez transitória de pessoal, quando recebi um mais do que previsível bilhete azul.  Ganhava na ocasião mais do dobro do salário inicial de um garoto treinado para função idêntica na iniciativa privada.  
          Embora gostasse do que fazia, não entediarei o leitor com detalhes da rotina bancária.  O que pretendo recordar, objetivamente, é minha condição de testemunha e cobaia do processo que terminou, em setembro de 1997, com a venda do banco ao grupo Itaú, fruto de um leilão tão transparente que, no começo daquele ano, os jornais cariocas já anunciavam a presença de executivos ligados aos futuros gestores dentro da sede do BANERJ.
         Não me fixarei nos detalhes da privataria, expostos aos interessados em dezenas de links da Internet.  Quero destacar, mesmo que me acusem de usar um clichê surrado, que estamos diante do típico caso em que a vítima elege o próprio algoz.  Durante o período eleitoral de 1994 ouvi, com uma mistura de espanto e irritação, muitos colegas declararem seus votos para governador no tucano Marcello Alencar.  Gente em média bem mais velha do que eu, escaldada pelos ainda recentes ataques do governo Collor ao funcionalismo, mas crédula e sobretudo sensível ao movimento midiático que, após o rompimento de Alencar com Leonel Brizola, construiu para o primeiro a imagem de um administrador competente e responsável. Apesar da orientação de esquerda que predominava na representação sindical da categoria, não escasseavam entre os bancários os inevitáveis deslumbrados que se orientavam mais pelo orgulho de pertencer a uma presumida pequena burguesia do que pelas necessidades palpáveis de preservar poder aquisitivo e empregos.
          Tomado o Rio de Janeiro pela família Alencar, logo brotou em muitos banerjianos um arrependimento inútil.  Como braço direito de Marcello, despontava o sinistro almofadinha Sérgio Cabral, que dava mostras de extremo cinismo no comando da Assembleia Legislativa, enquanto preparava o terreno para sucessivas vitórias do poder econômico, entre elas a supressão do artigo da Constituição fluminense que estabelecia a obrigatoriedade da manutenção de um banco oficial. 
         Não me posicionarei como vítima.  Antes mesmo da demissão, comecei a trabalhar como professor da rede estadual de ensino, em matrícula no turno da noite.  Nos anos seguintes, consegui outros empregos e fiz o mestrado em História.  Sob diversos aspectos, minha vida melhorou, apesar do detestável embranquecimento da barba. Penso que o jornalista venezuelano de direita Carlos Rangel, se fosse vivo e de alguma forma pudesse ler esta crônica, diria que enfrentei um "estímulo traumático", expressão que empregava ao se referir às sociedades indígenas destroçadas pela colonização, porém contempladas (os sobreviventes, é óbvio) pelo privilégio de poderem se atirar de pernas e braços abertos no mundo dos vencedores. 
         O certo, porém, é que não faltaram vítimas, inclusive fatais, entre os banerjianos forçados a atravessar o quadriênio de Alencar e Cabral.  Quase diariamente corriam notícias sobre mais um bancário  internado com enfarte ou AVC.  Um colega de agência, que eu definiria como subchefe, sofreu uma isquemia em plena jornada de trabalho; por sorte, o sangue do coágulo jorrou inteiro pelo nariz, fazendo com que não tivesse sequelas aparentes.  Uma semana depois, ele estava de volta ao serviço, comendo torresmo no horário de almoço.  Lembro-me até hoje de suas palavras: -O banco comeu meu filé mignon, e agora terá que roer meus ossos! 
        Faltam-me, naturalmente, estatísticas sobre o tema, mas a experiência cotidiana nos deixava a impressão de que os mais atingidos pelos problemas cardiovasculares eram justamente os comissionados incumbidos das demissões, transferências e enquadramentos disciplinares.  Vi mais de um reacionário empedernido passar de uma situação de saúde invejável para a quase invalidez em curto espaço de tempo.    Uma coisa é fazer a apologia do chicote no plano retórico; outra é ser obrigado a empregá-lo sem intermediários contra seus companheiros de torcida, igreja, chope ou carteado. Enquanto tantos tombavam, de diversas maneiras, decidi vestir uma carapaça emocional e seguir resistindo, antes e depois da privatização, até encontrar uma alternativa eficaz de sustento. Embora com o espírito endurecido, admito que sentia muita raiva, talvez suficiente, se transformada em fluido e jogada no mar,  para interditar toda a orla da Barra da Tijuca. 
       Pelo menos uma vez, tentei afrontar a conjuntura desfavorável com ações concretas. Várias agências da cidade de Niterói haviam sido desativadas ou esvaziadas, e seus funcionários remanejados para a agência Visconde do Uruguai, na qual terminaram por se concentrar, se não me falha a memória, cento e vinte banerjianos.  O local era amplo, funcionava como uma grande pagadoria de empregados públicos, terceirizados e aposentados, além de captar um imenso volume de taxas e impostos, mas mesmo com a tecnologia da época não precisaria de mais de sessenta.  
         Vazara a informação, de uma forma que ignoro, de que ao final de determinada tarde 24 pessoas receberiam dispensa.  Embora adotasse uma atitude de distância das "cúpulas", eu julgava que pelo meu perfil avesso a intrigas e rixas domésticas ficaria a salvo.  Meus 28 ou 29 anos também ajudavam a manter frequência quase integral e uma excelente média de autenticações.  Sempre fui, ao longo da carreira, um caixa que os chefes de serviço apreciavam ter em suas equipes.  Mas, tendo em vista a situação dos demitidos (cujos nomes podíamos prever, com mínima margem de erro), me aproveitei de momentos estratégicos de esvaziamento da agência no horário de almoço para dar sumiço em todas as folhas de ponto.  A ideia era inviabilizar as demissões pela ausência de documentação. Não podendo fechar o ponto às cinco horas, os colegas tidos como integrantes da lista sairiam das dependências da Visconde, sem escalas, para o sindicato ou para consultórios médicos, dos quais retornariam todos, em passe de mágica, hipertensos ou surtados, sendo encaminhados para consecutivas licenças com vencimentos. Salvando 24 cabeças, ainda atrairia, sem dúvida, a fúria dos banqueiros contra seus "feitores" relapsos.   
         O plano individual e meio desastrado não funcionou: em menos de uma hora, a gerência deu por falta das folhas e interrompeu as tarefas de vários escriturários, que foram obrigados a datilografar segundas vias sob uma orquestra de impropérios.  Também tiveram início investigações para localizar "quem roubou as folhas de ponto".  A maioria dos encarregados da "repressão" especulava sobre quem, entre os notórios "condenados", seria o "terrorista", com exceção da mais inteligente, que me olhava fixamente e chegou a me pressionar no sentido de arrancar uma confissão.  Neguei tudo, é lógico, simulando susto e indignação.  Para minha surpresa real,  por volta das sete da noite, quando vagava pelo centro de Niterói ainda empregado e com incontáveis doses de cerveja no organismo, minha quase carrasca surgiu do nada e ao me cumprimentar beijou meus lábios, se afastando em seguida com expressão de criança travessa. Não precisamos resgatar os longínquos tempos da Conjuração Mineira para constatar que até os aparentemente mais convictos defensores da ordem podem ter seus instantes de rebeldia.
          Percorrendo os caminhos do Facebook, noto que várias figuras massacradas naquele tempo, submetidas ao desemprego ou obrigadas a se aposentar às pressas, em péssimas condições, curtem a revista Veja e fazem campanha para Aécio Neves.  Não me proponho a convencê-las de nada, até por senso de realidade, e nem as tratarei mal pessoalmente ou no mundo virtual.  Talvez hoje só lhes reste, para esconjurar a proximidade do proletariado tão temido, a recordação de que um dia estiveram na pequena burguesia.  Entretanto, também com base no citado senso de realidade, volto a indicar para todos os leitores, e em particular para os que vivem de salários, aposentadorias ou pensões, que

1-Os governos do PSDB, na era FHC, virtualmente congelaram os salários do funcionalismo.

2-A equipe econômica de Aécio Neves já deu indícios bastante consistentes de que pretende frear os aumentos reais do salário mínimo. As duas condições reunidas fatalmente pressionarão a massa salarial para baixo e o Índice de Gini para cima, quem sabe nos devolvendo aos tempos em que o Brasil disputava com Honduras, Serra Leoa e Botswana o troféu da pior distribuição de renda do planeta.

3-Apesar de Aécio prometer no horário eleitoral que corrigirá a tabela do Imposto de Renda pela inflação, vale recordar que o antigo secretário da Receita do tucanato, Everardo Maciel, constantemente se posicionava contra a correção e defendia a taxação de todos os proventos acima do salário médio, então irrisório.

4-Com a direita no comando do Planalto, governadores, prefeitos e empresários se sentiriam com as mãos mais livres para utilizar todo o aparato repressivo a seu dispor contra os trabalhadores, cujas margens de negociação, já ruins, seriam reduzidas a pó (com ou sem trocadilho, conforme o gosto de quem me honrou com a visita até aqui).


        Portanto, o que está em questão não é gostar ou não de Dilma Rousseff ou do petismo; eu mesmo só fui filiado ao PT durante dezoito meses, de 1994 a 1996, e me desliguei por não concordar com as atitudes personalistas de certas lideranças.  Estamos defronte da possibilidade de perder direitos básicos, sociais e trabalhistas, amargando também graves prejuízos financeiros.  Além disto, da indesejada combinação de Aécio na Presidência com um Congresso conservador e fisiológico, ambos beneficiados pela blindagem da mídia controlada pelas poucas famílias de sempre, derivaria um projeto de poder vigoroso, talvez mais difícil de desalojar do que a própria ditadura civil-militar iniciada em 1964.
         Salvem-se.  Votem 13.        

   
            
      
                     
             
            
           
           

                     
           
           
           
                             
               

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