quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Desagravo a João Ubaldo Ribeiro


       

       Ainda garoto, no final da adolescência, aprendi a gostar da obra literária de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014).  Para ser bem preciso, comecei a admirar o autor mesmo antes de lê-lo. Certa vez, ouvi minha mãe, que havia comprado o livro Viva o Povo Brasileiro, contar para pessoas conhecidas alguns trechos da trama, iniciada numa Bahia que acabava de repelir a invasão holandesa de 1624. Nada comentei, mas fiquei fascinado com os cacos da narrativa e decidi me atirar àquela leitura de imediato.  Ideia das melhores: mergulhei durante semanas no universo ficcional de um extraordinário construtor de diálogos e de imagens de época.  Foi uma experiência tão marcante que logo ao sair da casa paterna, em 1990, adquiri outro exemplar, para não precisar pedir emprestado quando quisesse repetir a "viagem".  Tenho-o em mãos agora, amarelado nas bordas e com o estado da encadernação exigindo cuidado no manuseio.
         Resgato estes episódios do século passado porque no final da tarde de ontem, prolongada artificialmente pelo horário de verão, me deparei com uma das piores deturpações de discurso que já pude atestar.  Os leitores assíduos não se surpreenderão ao constatar que a coisa partiu do editor de mais uma das comunidades racistas do Facebook, até então ignorada por mim, cuja denúncia agora recomendo com fervor:                



           
        As sentenças exibidas na rede social foram copiadas com exatidão do livro: na edição que utilizo para conferir,  impressa pela Nova Fronteira em 1984, figuram nas páginas 244 e 245.  O fabricante da farsa, entretanto, esconde maliciosamente o fato de que as citações supremacistas integram um diálogo entre três personagens, o milionário Amleto Henrique Ferreira-Dutton (que as proferiu), o monsenhor Bibiano Lucas Pimentel e o major Francisco Gomes Magalhães, padrinho do filho caçula do primeiro.  A sórdida versão neonazista, ao invés de indicar o uso da ficção, atribui as opiniões discriminatórias ao próprio João Ubaldo, cuja biografia não permite a mais leve insinuação deste gênero.
        Senti-me na obrigação de trazer de pronto estas explicações ao público mais amplo que seja possível atingir, antes que pessoas impulsivas, talvez até agindo de boa fé, saiam pelo mundo apontando o criador do Caboco Capiroba e do Nego Leléu como um "escritor racista". Mas devo ir além do desmascaramento e da denúncia: de uma parte anterior de Viva o Povo Brasileiro, situada nas páginas 235-236, extraio esta cena desconcertante:     

      Mordiscando um brioche, Amleto pensou que já chegava a bandeja com os rins, ao ouvir passos atrás de si, na direção da porta da cozinha.  Virou-se em antecipação alegre, fechou uma carranca logo em seguida.
-Que é que estás a fazer aqui hoje?  Logo hoje?  Já não te disse para não vires aqui a não ser quando te chame?  Que queres hoje, não tens tudo arranjado?
      Uma mulher pequena, mulata escura, cabelos presos no cocoruto por dois pentes de osso, se deteve, fez menção de que ia voltar para a cozinha, terminou em pé diante dele, as mãos encolhidas no colo.
-Eu não vim atrapalhar. - disse. - Podes ficar sossegado.
       Amleto levantou-se, pareceu não conseguir conter a impaciência, cobriu os olhos com as mãos, ficou muito tempo assim.
-Dona Jesuína - falou, como se estivesse repetindo à força alguma coisa que o molestava muito. -Dona Jesuína, que quer a senhora, Dona Jesuína?  Que mais quer que diga, que mais quer que fale, que mais quer que dê?
-Chamas-me de Dona Jesuína e estamos sós.
-Pois claro que te chamo Dona Jesuína, pois claro que tive de habituar-me a isto, pois claro!
-Mas disseste que só me chamarias assim quando nos visse ou ouvisse alguém.
-Está certo, está certo, disse-te isto.  Mas que há de mais em que te chame respeitosamente de Dona Jesuína, pois que és Dona Jesuína, não te chamas Jesuína?
-Jesuína sou, mas também sou tua mãe.

      Sim: caso tivesse existido como homem de carne e osso, o baiano Amleto Ferreira (chamava-se somente assim antes de enriquecer e impor à sociedade o sobrenome do pai inglês que não o registrou), filho de mãe liberta, seria um quase perfeito ancestral ideológico do tipo "humano" que ficou conhecido, no anedotário político brasileiro, como white pardo.  Com uma diferença fundamental: embora não houvesse chegado aos bancos universitários do Império e devesse sua fortuna a golpes jurídico-financeiros, Amleto sobressai ao longo da história de João Ubaldo como líder nato, inteligente e perspicaz.  Imagino sem dificuldade o desprezo que revelaria ao ver bandos de pós-adolescentes tapados e desempregados crônicos de várias idades que, quando robustos, vão às ruas para bater em travestis e provocar briga com punks, e quando mais franzinos, ou medrosos, despejam toneladas de esgoto não tratado na Internet, através de fakes. Certamente resmungaria por cima do ombro: -Rebotalho, horda!
     Protejamos a imagem do grande João Ubaldo Ribeiro.  Quanto aos racistas, Polícia Federal neles! É o único argumento que entendem.        


4 comentários:

  1. Ter orgulho de ser branco é ser necessariamente racista?

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    1. Não, mas endossar ideias como as que estão no print é ser nazista.

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  2. Bem que eu achei estranho quando vi esse post sendo compartilhado por aí! Nunca li o João Ubaldo, mas tenho um livro dele na minha biblioteca virtual - o qual eu nunca teria adquirido se soubesse que o discurso dele se aproximava de algo parecido com isso.

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    1. O compartilhamento de informações falsas, que acabam se tornando verdadeiras para muitas pessoas, é um dos maiores males da Internet. Por mais que desmistifiquemos, não há como reparar todos os estragos.

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