Busto de Quintino de Lacerda (1839-1898), ex-escravo natural de Sergipe, líder do quilombo do Jabaquara, em Santos (SP)
"Por volta de 1850, Robert Slenes calcula que uma proporção de até 90% de africanos bantos não era incomum nas plantações cafeeiras, em rápida expansão no Rio e em São Paulo, e que suas identidades culturais e linguísticas eram bem maiores do que a pluralidade de nações africanas de origem parecia sugerir. [...] Os cafezais continuaram, no entanto, a se expandir para leste e para oeste, após 1850, e para isto precisavam adquirir escravos. De há muito é sabido que o tráfico interno, antes que o crescimento natural, respondeu por esta continuada expansão¹".
O deslocamento de grandes contingentes de cativos ocorrido a partir da metade do século XIX, que ficou conhecido como tráfico interno ou interprovincial, resultou na concentração da população escrava do Brasil nas províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. As zonas cafeeiras da região que hoje conhecemos como Sudeste receberam ao longo de décadas um fluxo contínuo de mão de obra de partes do Império cuja economia se mostrava menos dinâmica. Nestas, em regra, outros sistemas de exploração do trabalho substituíam gradativamente a escravidão propriamente dita, enquanto se constituíam novas modalidades de relações de dependência pessoal entre os segmentos proprietários e não proprietários.
Segundo Boris Fausto, no decênio "entre 1864 e 1874, o número de escravos no Nordeste declinou de 774 mil (45% do total de escravos existentes no Brasil) para 435.687 (28% do total). No mesmo período, nas regiões cafeeiras, a população escrava aumentou de 645 mil (43% do total de escravos) para 809.575 (56% do total) e só na Província de São Paulo o número de cativos dobrou, passando de 80 mil a 174.622²". Apoiando-se nos estudos do mesmo Robert Slenes que embasam a citação inicial deste texto, Sidney Chaloub aponta que cerca de 200 mil pessoas escravizadas chegaram às províncias cafeeiras a partir de 1850 por meio do tráfico interprovincial. Somente entre 1873 e 1881 foram quase 90 mil, funcionando os portos do Rio de Janeiro e Santos como principais centros distribuidores³.
Ao contrário do que acontecia nas áreas de ponta da cafeicultura, boa parte dos escravos trazidos do Norte (termo que então designava todas as províncias acima de Minas Gerais) para o Sul (que se estendia de Minas até o Rio Grande do Sul) havia nascido no Brasil, em alguns casos contando com várias gerações de antepassados no país. Isto se dava porque desde as primeiras décadas do século XIX o tráfico negreiro rumo à primeira região passara por variações significativas para baixo, ainda que tivesse ocorrido uma certa "recuperação" na fase que se sucedeu ao acordo firmado entre o Império e a Inglaterra, em 1827, no sentido de suprimir o "comércio de carne humana". Enquanto as importações totais de africanos em direção ao Norte oscilaram, entre 1817 e 1823, na faixa entre 10 e 15 mil por ano, o porto do Rio recebeu uma média anual de 18.895 escravos novos de 1811 a 1820, cifra que se elevou a 30.189 no período 1821-1830 [4].
Em certas províncias nortistas, como o Maranhão, atingido pela queda dos preços do algodão no mercado internacional em 1819 [5], a situação de enfraquecimento da lavoura desencorajava a compra de mais cativos. Mesmo em Pernambuco, em cujo território entraram 1.100 africanos novos por ano entre 1839 e 1850, o percentual de escravos crioulos (expressão utilizada para nomear os negros naturais do Brasil) era elevado: o censo local de 1842 demonstrou que 54% dos cativos da província tinham nascido na África, o que nos permite presumir, em relação às décadas seguintes, uma maioria cada vez mais ampla de crioulos 6.
Verificando tabelas construídas a partir dos números do Censo Nacional de 1872, noto que naquele ano Minas Gerais contava oficialmente com 370.459 escravos, e assim superava o Rio de Janeiro (341.576) e São Paulo (156.612). Além das províncias grandes produtoras de café, apenas a Bahia (167.824) ultrapassava a cifra de cem mil cativos. Todavia, no que diz respeito às porcentagens de escravos na população total, as posições se alteravam, cabendo ao Rio uma macabra liderança (32,3%), seguido pelo Espírito Santo (27.6%), Maranhão (20,9%), São Paulo (18,7%), Minas Gerais (18,2%), Rio Grande do Sul (15,6%), Sergipe (12,8%) e, em um surpreendente oitavo lugar, a Bahia (12,2%)7.
Porém, muito mais do que dados estatísticos, aqui me interessam algumas questões de conteúdo. A organização das redes do tráfico interprovincial em benefício da classe senhorial do Império foi altamente danosa, se pensarmos que, sem dúvida, deu ao escravismo brasileiro vários anos de sobrevida. Por outro lado, foram trabalhadores escravos vindos da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão, da Paraíba, do Ceará (também do Rio Grande do Sul, fato bem menos conhecido do público em geral) os homens e mulheres que, com a progressiva redução da quantidade de africanos nas senzalas, deram uma contribuição decisiva para o crescimento da produção brasileira de café no terceiro quarto do século XIX, e mesmo depois.
Apesar de uma idealização construída ao longo de gerações, muitas vezes refletida nos livros didáticos, acerca dos "fazendeiros modernos" do Oeste Paulista que teriam optado pelo trabalho livre dos imigrantes europeus em detrimento da escravidão desumana, a verdade é que o mito está longe de se sustentar. Podemos recordar, com o recurso ao historiador carioca João Fragoso, que "até as vésperas da abolição, os porta-vozes do Oeste paulista no Parlamento e nos ministérios nacionais não abandonaram a defesa do trabalho cativo 8". Relendo em seguida o paulista Boris Fausto, constatamos que "os fazendeiros paulistas não se voltaram para o imigrante porque acreditavam nas virtudes ou na maior rentabilidade do trabalho livre, mas porque a alternativa do trabalho escravo desaparecia e era preciso dar uma resposta para o problema 9".
Detesto o bairrismo, e além disto precisaria ser cego e surdo para não identificar, na cidade e no estado do Rio de Janeiro, uma forte carga de preconceito imposta aos nordestinos de modo geral. Mais do que isto, porém, têm me irritado as manifestações, que parecem crescer, pelo menos conforme o que vejo em vários espaços da Internet, provenientes de anônimos que usando nicks patéticos como "Nação São Paulo", lançam milhões de impropérios contra "invasores" do Nordeste ou "cangaceiros". Segundo esta perspectiva obtusa, os migrantes atravessam duas ou mais divisas estaduais só para parasitar o estado "locomotiva da nação" vivendo à custa de bolsas e, é claro, eleger prefeitos "petralhas".
Há algum tempo, assistindo a um documentário sobre genética, me diverti quando o cientista norte-americano que dirigia certo laboratório disse qualquer coisa como "rio bastante dos racistas quando imagino o que eles falariam se vissem o que eu descubro aqui dentro". Ele se referia, entre outros casos, à trajetória de sua própria família. Ruivo, de pele muito branca e olhos azuis, encontrou ao fazer a análise de seu DNA uma dose considerável de genes ligados às populações indígenas dos Estados Unidos. Intrigado, consultou parentes idosos e teve conhecimento de ancestrais cherokees propositalmente esquecidos por seus avós.
Penso o quanto seria engraçado ver mussolinistas de quinta como "Nação São Paulo" achando entre seus trisavós quilombolas baianos do Jabaquara. Eles merecem, e eu não lhes negaria o privilégio.
Notas:
1- Hebe Maria Mattos. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 108.
2- História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1998, p. 204.
3- Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 43.
4- Ver Manolo Florentino. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 65-66.
5- Ver Maria Januária Vilela Santos. A Balaiada e a insurreição de escravos no Maranhão. São Paulo: Ática, 1983, p. 41.
6- Cf. João Luís Fragoso. O Império Escravista e a República dos Plantadores. In: História Geral do Brasil/org. Maria Yedda Linhares. Rio de Janeiro: Campus, 1990, p. 171.
7- Ver História da Vida Privada no Brasil 2/org. Luiz Felipe de Alencastro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 478-479.
8- Ver Fragoso, op. cit., p. 165.
9- Fausto, op. cit., p. 203.
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