terça-feira, 3 de maio de 2016

Um desabafo despretensioso



         Meu falecido orientador Théo Lobarinhas Piñeiro (1955-2015), quando exposto a certas pérolas dos doutores pós-modernos que cada vez mais infestam as universidades brasileiras, costumava fazer uso de um divertido bordão: -Para eles, o concreto não existe!  O riso dos amigos e orientandos era compulsório.  Sou forçado a reconhecer, por outro lado, que este tipo de percepção é uma via de mão dupla.  Há alguns anos, frequentei um curso que se revelou decepcionante: a professora, reconhecida por mim no começo da década de 1990 como lúcida especialista em História Política, tinha enveredado no Terceiro Milênio pelos caminhos de um delirante pós-modernismo.  Mantive frequência integral, me comportando com toda a cordialidade possível, mas ela logo percebeu que eu não embarcava nas suas viagens pela maionese e não me empolgava com suas realidades virtuais.  Durante uma sessão vespertina, a veterana historiadora me fitou, soltou um suspiro de tédio e disparou: -Não adianta, você é todo do concreto, né?
            Infelizmente, viajar na maionese não é privilégio de intelectuais pós-modernos.  No final da tarde de hoje, decidi percorrer a pé os cinco quilômetros e meio que separam o Museu Nacional de minha casa; parte da batalha inglória contra os quilos em excesso e a taxa limítrofe de colesterol.  Já no último quinto do trajeto, na esquina das ruas Conde de Bonfim e Pinto de Figueiredo, aguardava o sinal verde para pedestres quando, na direção contrária, apareceu um grupo grande de estudantes da rede municipal, todos uniformizados, totalizando talvez cinquenta adolescentes. 
          Nada faziam que mereça nota: no máximo, produziam muito barulho, fato mais do que compreensível em se tratando de gente situada entre os treze e os quinze anos.  Não ouvi sequer um palavrão trivial, ninguém parecia querer brigar, mas, antes que todos pudessem atravessar, uma voz feminina à direita tratava meus ouvidos como latrina: -Abriram a porta da jaula!  Um bom conhecedor do Rio de Janeiro diria, com precisão, que andando pelo coração da conservadora Tijuca estou sujeito diariamente a incidentes do gênero. 
Porém, ao virar o pescoço na direção da criatura, não enxerguei uma dondoca tijucana insolente, ou uma representante incontestável das oligarquias porcas que os bajuladores de plantão preferem tratar como “elites brasileiras”.  Era uma mulher de cinquenta e tantos anos, pequena, de cabelo mal pintado, roupas baratas e surradas, situada a algumas dezenas de léguas do fenótipo caucasiano.  O sábio indiano Vasyayana, autor do Kama Sutra, registrou com acerto naquela obra que “os sinais externos são enganosos”, mas, caso me visse obrigado a tentar desvendar o cotidiano da desagradável transeunte, apostaria que se tratava de uma pessoa de classe C, sobrevivendo a duras penas em bairro de classe média numa casa herdada de pais ou avós mais favorecidos em termos de renda.
Não tenho prazer em citar o ex-deputado e ex-presidiário Roberto Jefferson, mas a “reacionária sem capital” conseguiu mexer com meus instintos mais vis.  Já estava, sem dúvida, em estado de irritação silenciosa, derivada do conhecimento de certas movimentações políticas que ocorrem, digamos assim, no meu quintal, e o primeiro impulso foi o de despejar, bem alto, generosa leva de impropérios.  Foi bom ter desistido: seria uma reação muito desproporcional, e talvez a vizinhança se indignasse com tanta agressividade contra uma senhora à primeira vista frágil.
Também poderia, se estivesse com a cabeça menos quente, tentar trazê-la por instantes para o mundo real, demonstrando em poucas frases que a única distância visível entre a “turba ameaçadora” que cruzava a rua no sentido oposto e sua vítima em potencial era o contraste entre as idades.  Isto me renderia senhoras gargalhadas, nesta noite e no almoço de amanhã, além, é claro, de ser um retorno justo a tamanha imbecilidade.  Mas decidi, em décimos de segundo, deixar o silêncio como única resposta, e ela também, não encontrando na minha expressão a solidariedade que desejava, ficou para trás sem falar mais nada.
Não me considero um pessimista; no máximo, um fatalista que vê o mundo com boa dose de crueza.   Entretanto, a circunstância de ter observado ou participado de centenas, talvez milhares, de situações como a de hoje me leva a nada esperar da pequena burguesia. Também nada espero, o que é pior, de uma falsa pequena burguesia, bem numerosa, empenhada em ostentar posições aristocráticas ilusórias, cuja face mais caricata se expressa na formação de células neonazistas das periferias do Rio e de São Paulo.
       Penso que compreendo cada vez melhor qual era o sentimento de Marilena Chauí quando proferiu a desastrada sentença “eu odeio a classe média”, tão intensamente explorada pela histriônica fauna virtual de fãs da “revista” Veja.  Conheço, é claro, e poderia listá-los em muitas laudas consecutivas, indivíduos de classe média, média alta, média média, média baixa, “emergentes”, que destoam em suas palavras e ações do perfil descerebrado da turba [aqui sem necessidade de aspas] que elege Bolsonaros com votações recordes. Quanto ao resto, não me causará qualquer surpresa quando for em peso à Vieira Souto (e à Conde de Bonfim!!!) em apoio à revogação da Lei Áurea.

2 comentários:

  1. Poxa, você escreve muito bem. Gostei do blog. Abraços.

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