Meu
falecido orientador Théo Lobarinhas Piñeiro (1955-2015), quando exposto a
certas pérolas dos doutores pós-modernos que cada vez mais infestam as
universidades brasileiras, costumava fazer uso de um divertido bordão: -Para
eles, o concreto não existe! O riso dos amigos
e orientandos era compulsório. Sou
forçado a reconhecer, por outro lado, que este tipo de percepção é uma via de
mão dupla. Há alguns anos, frequentei um
curso que se revelou decepcionante: a professora, reconhecida por mim no começo da década
de 1990 como lúcida especialista em História Política, tinha enveredado no
Terceiro Milênio pelos caminhos de um delirante pós-modernismo. Mantive frequência integral, me comportando
com toda a cordialidade possível, mas ela logo percebeu que eu não embarcava
nas suas viagens pela maionese e não me empolgava com suas realidades
virtuais. Durante uma sessão vespertina,
a veterana historiadora me fitou, soltou um suspiro de tédio e disparou: -Não
adianta, você é todo do concreto, né?
Infelizmente, viajar na maionese não
é privilégio de intelectuais pós-modernos.
No final da tarde de hoje, decidi percorrer a pé os cinco quilômetros e
meio que separam o Museu Nacional de minha casa; parte da batalha inglória
contra os quilos em excesso e a taxa limítrofe de colesterol. Já no último quinto do trajeto, na esquina
das ruas Conde de Bonfim e Pinto de Figueiredo, aguardava o sinal verde para
pedestres quando, na direção contrária, apareceu um grupo grande de estudantes
da rede municipal, todos uniformizados, totalizando talvez cinquenta
adolescentes.
Nada faziam que mereça nota: no
máximo, produziam muito barulho, fato mais do que compreensível em se tratando
de gente situada entre os treze e os quinze anos. Não ouvi sequer um palavrão trivial, ninguém
parecia querer brigar, mas, antes que todos pudessem atravessar, uma voz
feminina à direita tratava meus ouvidos como latrina: -Abriram a porta da
jaula! Um bom conhecedor do Rio de
Janeiro diria, com precisão, que andando pelo coração da conservadora Tijuca estou
sujeito diariamente a incidentes do gênero.
Porém,
ao virar o pescoço na direção da criatura, não enxerguei uma dondoca tijucana insolente,
ou uma representante incontestável das oligarquias porcas que os bajuladores de
plantão preferem tratar como “elites brasileiras”. Era uma mulher de cinquenta e tantos anos, pequena,
de cabelo mal pintado, roupas baratas e surradas, situada a algumas dezenas de
léguas do fenótipo caucasiano. O sábio indiano
Vasyayana, autor do Kama Sutra, registrou com acerto naquela obra que “os sinais
externos são enganosos”, mas, caso me visse obrigado a tentar desvendar o cotidiano da desagradável transeunte, apostaria que se tratava de uma pessoa de classe C, sobrevivendo a duras penas em bairro de classe média numa casa herdada
de pais ou avós mais favorecidos em termos de renda.
Não
tenho prazer em citar o ex-deputado e ex-presidiário Roberto Jefferson, mas a “reacionária sem capital”
conseguiu mexer com meus instintos mais vis.
Já estava, sem dúvida, em estado de irritação silenciosa, derivada do conhecimento de certas movimentações políticas que ocorrem, digamos assim, no
meu quintal, e o primeiro impulso foi o de despejar, bem alto, generosa leva de
impropérios. Foi bom ter desistido: seria
uma reação muito desproporcional, e talvez a vizinhança se indignasse com tanta
agressividade contra uma senhora à primeira vista frágil.
Também
poderia, se estivesse com a cabeça menos quente, tentar trazê-la por instantes para
o mundo real, demonstrando em poucas frases que a única distância visível entre a “turba
ameaçadora” que cruzava a rua no sentido oposto e sua vítima em potencial era
o contraste entre as idades. Isto me renderia senhoras gargalhadas, nesta noite e no almoço de amanhã, além, é claro, de ser um retorno justo a tamanha imbecilidade. Mas decidi, em décimos de segundo, deixar o
silêncio como única resposta, e ela também, não encontrando na minha expressão
a solidariedade que desejava, ficou para trás sem falar mais nada.
Não
me considero um pessimista; no máximo, um fatalista que vê o mundo com boa
dose de crueza. Entretanto, a
circunstância de ter observado ou participado de centenas, talvez milhares, de
situações como a de hoje me leva a nada esperar da pequena burguesia. Também nada
espero, o que é pior, de uma falsa pequena burguesia, bem numerosa, empenhada em ostentar posições aristocráticas ilusórias, cuja face mais caricata se expressa na formação de células neonazistas
das periferias do Rio e de São Paulo.
Penso que compreendo cada
vez melhor qual era o sentimento de Marilena Chauí quando proferiu a desastrada
sentença “eu odeio a classe média”, tão intensamente explorada pela histriônica
fauna virtual de fãs da “revista” Veja.
Conheço, é claro, e poderia listá-los em muitas laudas consecutivas,
indivíduos de classe média, média alta, média média, média baixa, “emergentes”,
que destoam em suas palavras e ações do perfil descerebrado da turba [aqui sem
necessidade de aspas] que elege Bolsonaros com votações recordes. Quanto ao
resto, não me causará qualquer surpresa quando for em peso à Vieira Souto (e à
Conde de Bonfim!!!) em apoio à revogação da Lei Áurea.
Poxa, você escreve muito bem. Gostei do blog. Abraços.
ResponderExcluirObrigado, amigo. Esteja em casa para comentar e sugerir.
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