quarta-feira, 2 de maio de 2012

Diálogos sobre o golpe de 1964


   
         Recebi ontem um comentário relacionado ao post "Ditadura para salvar a democracia: de volta a uma velha mistificação".  Infelizmente, seu autor preferiu permanecer no anonimato.  Entretanto, pela relevância do conteúdo, reproduzo-o abaixo, na íntegra, para que as devidas considerações não se limitem a um debate entre dois indivíduos, na melhor das hipóteses observados por um pequeno número de leitores mais atentos.  
Não sei se Jacob Gorender e Daniel Aarão Reis Filho são considerados historiadores de baixa, mediana ou alta projeção, mas o que você me diz destas afirmações:
"Tornou-se corrente na literatura acadêmica a assertiva de que, no pré-64, inexistiu verdadeira ameaça à classe dominante brasileira e ao imperialismo. Os golpistas teriam usado a ameaça apenas aparente como pretexto a fim de implantar um governo forte e modernizador. A meu ver, trata-se de conclusão positivista superficial derivada de visão estática das coisas. Segundo penso, o período 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasileiros neste século, até agora. O auge da luta de classes, em que se pôs em xeque a estabilidade institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de propriedade e da força coercitiva do Estado. Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter contra-revolucionário preventivo. A classe dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse."(Jacob Gorender em "Combate nas Trevas")
"Ao longo do processo de radicalização iniciado em 1961, o projeto das organizações de esquerda que defendiam a luta armada era revolucionário, ofensivo e ditatorial. Pretendia-se implantar uma ditadura revolucionária. Não existe um só documento dessas organizações em que elas se apresentassem como instrumento da resistência democrática."(Daniel Aarão Reis Filho em entrevista publicada no O Globo dia 23/09/2001)
            Quanto à indagação inicial, é ponto pacífico que Gorender e Aarão Reis são, digamos assim, historiadores de  primeiro escalão, cujas obras não podem de forma alguma ficar excluídas desta discussão.  Como, ao contrário deles, não testemunhei diretamente os processos mencionados (nasci em 1967), recorro a outros profissionais, de variadas linhas ideológicas, para embasar minhas opiniões.
            Havia forças revolucionárias de esquerda nos anos que antecederam o golpe de 1964? Sem dúvida.  Theotonio dos Santos faz referência ao POLOP (Organização Marxista Revolucionária Política Operária), grupo refratário à estratégia de compromisso entre a esquerda e o "nacionalismo burguês".  O PC do B, formado em 1962, adotava então uma linha maoísta.  Segundo o autor, também poderiam ser enquadradas na categoria de “revolucionárias” as Ligas Camponesas e a Ação Popular, que reunia esquerdistas cristãos[1]. Carlos Guilherme Mota e Adriana López destacam a atuação das Ligas Camponesas como fator de exacerbação dos “ânimos da direita”, que temia a possibilidade de uma revolução nos moldes cubanos na região Nordeste[2]
            Entre reconhecer a presença de potenciais guerrilheiros e constatar uma “situação pré-revolucionária”, temos uma distância muito grande.  É inegável a existência, no Brasil contemporâneo, de milhares de ruralistas que mantêm seguranças bem armados, de milícias urbanas cuja visão política tende à direita e de saudosistas da ditadura, militares, paramilitares e civis.  Contudo, alguém que se referisse hoje à iminência de um golpe direitista seria visto como insano.  Significativamente, Jacob Gorender deixa implícito no trecho transcrito que sua tese está longe de predominar entre os especialistas no tema.        
            Moniz Bandeira expõe que a insuspeita (neste caso) CIA, em relatório de 1963, informou que o PCB contava com apenas 30 mil membros e uma massa de simpatizantes estimada entre 150 e 200 mil pessoas, pouco expressiva para um país de 75 milhões de habitantes e 20 milhões de eleitores.  Conforme o mesmo relatório, os comunistas apoiavam a constitucionalidade com João Goulart, não somente pela falta de meios para implantar um regime decididamente esquerdista, como pela incerteza do apoio da URSS, já comprometida no terreno financeiro com o auxílio a Cuba.  Além disto, a prolongada situação de ilegalidade enfraquecera o PCB, na medida que muitos de seus antigos adeptos (particularmente no Rio Grande do Sul) tinham migrado para o PTB, partido orientado por Goulart na direção de um nacionalismo reformista.  Diante deste quadro, o Departamento de Estado dos EUA avaliava como "escassas as possibilidades de que os comunistas dominassem o Brasil em futuro previsível[3]".
            O presidente, por sua vez, era nitidamente um moderado. Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil do governo Goulart, registrou a posição de Jango sobre a pretendida Reforma Agrária:

“Com cinco, dez milhões de pequenas propriedades rurais, a propriedade estará muito mais defendida e muito mais gente comerá e educará os filhos[4]”.

            Como se percebe, não havia a mais remota intenção de eliminar a propriedade de tipo capitalista; ao contrário, Goulart desejava criar uma massa numerosa de proprietários.  Podemos duvidar, por várias razões, que o projeto tivesse viabilidade, mas é necessária muita imaginação para ver nele a semente do comunismo.        
            Thomas Skidmore entende que Jango, mesmo atraindo para a órbita do governo, após o anúncio das Reformas de Base, os setores radicais, neles incluída a ala brizolista do trabalhismo, não organizou “uma base de apoio popular maciço para um Governo reformador”, nem tampouco “uma base de apoio para ataque revolucionário contra a estrutura constitucional que jazia por trás do impasse político”.  Dificilmente o faria, pois não se definia como revolucionário, nem ao menos como esquerdista.  Para Skidmore, o sucesso do comício de 13 de março empolgou em excesso a esquerda por ele intitulada “jacobina”, que, além de se apresentar muito dividida, era incapaz de perceber que a “situação de força”, naquela conjuntura, não permitia a realização de seus projetos[5].  Quase idêntica é a interpretação de Boris Fausto, para quem “os conspiradores contrapuseram a violência às ilusões da esquerda[6]”.
            Como o assunto é vasto demais para ser esgotado em uma matéria de blog, e podemos retornar a ele em outras oportunidades, finalizo com algumas observações:
.As organizações interessadas na luta armada eram muito menos influentes, sem falar na quantidade de adeptos, do que o PTB, partido de centro-esquerda, ou mesmo que o PCB, o partido “tradicional” da extrema esquerda, que como vimos também não se empenhava, naquela altura, na ação revolucionária.
.Mesmo que, repetindo o grave erro de cálculo de 1935, uma parte dos militantes revolucionários se arriscasse na tentativa de chegar ao poder pelas armas, suas chances de sucesso seriam nulas. Estes grupos não dispunham de um comando unificado ou de uma liderança nacional, o presidente não lhes daria sustentação e os militares de todas as tendências (talvez com exceção dos marinheiros de poucas unidades) uniriam forças para derrotá-los imediatamente.
.É bastante contraditório que os chefes militares golpistas se mostrassem tão preocupados com a ameaça à soberania nacional representada pelos grupos filo-soviéticos, filo-cubanos e filo-chineses, e estivessem tão à vontade quanto à presença de milhares de oficiais e soldados norte-americanos nas praias brasileiras e as constantes movimentações do embaixador Lincoln Gordon no sentido de facilitar, caso houvesse um conflito de grandes proporções, uma intervenção direta dos Estados Unidos em prol das forças de direita.
.O regime instalado em 1964 não democratizou o país; ao invés disto, dissolveu seu quadro partidário, bem ou mal relativamente consolidado, fez expurgos ideológicos no Legislativo, no Judiciário e nas próprias Forças Armadas e produziu várias modalidades de casuísmo para se perpetuar.  Levou ao poder políticos seguidamente batidos nas urnas, conspiradores por vocação, e os tecnocratas que os assessoravam. Sobre o objetivo apregoado de eliminar a corrupção, penso que basta dizer que a herança dos generais-presidentes era disputada, em 1984, por Maluf e Andreazza.  A ditadura foi ilegítima do princípio ao fim.    
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[1] Ver Theotonio dos Santos.  Evolução histórica do Brasil.  Petrópolis: Vozes, 1994, pp. 87 a 89.
[2] Cf. Adriana López e Carlos Guilherme Mota.  História do Brasil: uma interpretação.  São Paulo: Senac, 2008, p. 778.    
[3] Ver Luiz Alberto Moniz Bandeira.  O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964.  Rio de Janeiro: Revan; Brasília: UnB, 2001, pp. 157/158.
[4] Cf. López e Mota.  Op. cit, p. 778. 
[5] Ver Thomas Skidmore. Brasil: de Getúlio a Castelo.  São Paulo: Paz e Terra, 2000, pp. 353/354.
[6] Ver Boris Fausto.  História do Brasil.  São Paulo: Edusp, 1998, p. 462.

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