quinta-feira, 22 de maio de 2014

Notas sobre autoridades de ontem e de hoje


Imagem de um terreiro incendiado com uso de querosene em 2011, no município de Fazenda Rio Grande (PR) 
         

         Antônio Gomes de Abreu Guimarães, homem casado de aproximadamente sessenta anos, proprietário de terras e cativos, era juiz de paz da freguesia de Nossa Senhora de Brotas, pertencente à cidade de Salvador. Como encarregado da manutenção da ordem pública, ele determinou em agosto de 1829 a invasão de uma casa de candomblé no local denominado Accú, hoje conhecido como Acupe de Brotas. Comandando pessoalmente uma patrulha, Guimarães interrompeu uma festa que já se alongava por três dias.  Os guardas ocuparam o terreiro, destruíram parte dos objetos de culto, apreenderam outros e detiveram 36 pessoas.  Onze delas, mulheres que trabalhavam como lavadeiras, logo foram liberadas para tratar das roupas de seus fregueses ou senhores.  As demais, três homens e 22 mulheres, se viram conduzidas à casa do juiz.
            Triunfante à primeira vista, o juiz de paz assim descreveu um aspecto de sua atuação: "fiz tirar e quebrar em presença de todos o tambaque [sic], e os mais vis instrumentos de seus diabólicos brinquedos".  O ataque ao candomblé, porém, traria complicações para Antônio Guimarães.  Ele recebeu, a 28 de agosto, uma interpelação vinda do presidente da província da Bahia, José Gordilho de Barbuda, visconde de Camamu.  A autoridade superior atendia à queixa de um africano liberto, Joaquim Baptista, segundo o qual a patrulha invasora se apropriara de 20 mil réis dos frequentadores da casa, além de panos da Costa e de um chapéu de sol. 
       Não se sabe se os adeptos do candomblé conseguiram recuperar os mencionados pertences, mas é certo que Antônio Guimarães também lutou que prevalecesse o seu ponto de vista.  O juiz de paz resgatou, como justificativa para aquela diligência, o texto de leis locais que exigiam dos escravos e libertos da Bahia permissão específica para transitar pelas ruas, e apresentou uma interpretação particular do artigo 5º da Constituição de 1824, que previa a liberdade de religião. Segundo Guimarães, somente os estrangeiros originários das "nações políticas da Europa" faziam jus àquele direito.  Era inaceitável ver os negros "mostrando por uma face Catolicismo, e por outra adorando publicamente seus Deuses".
         Dois anos mais tarde, Antônio Guimarães se envolveu em novos conflitos do mesmo tipo, conforme queixa de Florência Joaquina de São Bento, citada nos autos como "preta", que acusou os subordinados do juiz do furto de peças de fazenda e moedas de cobre, ouro e prata de outro terreiro de candomblé. Guimarães, que defendeu seus homens em juízo, confirmou ter participado, com o auxílio de trinta soldados de cavalaria, de uma expedição no distrito vizinho do Engenho Velho em que dezenas de casas foram invadidas. Além da prisão de "pretos", nos termos do magistrado, se encontraram "tambaques, Santos, e instrumentos de seus Diabólicos festejos, que a Tropa quebrou, e inda [sic] assim conduziram alguns Tambaques¹".  
      Não serei o defensor tardio de um guardião da ordem escravista.  Contudo, um possível tetraneto de Antônio Gomes de Abreu Guimarães poderia alegar, com acerto, que no distante Primeiro Reinado inexistia o conceito de multiculturalismo.  Ao contrário, por exemplo, dos ingleses anglicanos, encarados no Brasil como súditos de um poderoso império, os africanos escravizados, e mesmo libertos, não eram vistos como cidadãos do nosso país, ou de qualquer outro.  Seus descendentes aqui nascidos conservavam contra si a presunção, exposta no Parlamento por Bernardo Pereira de Vasconcelos, que "um homem de cor preta fosse sempre escravo". Os brasileiros mais ou menos letrados de 1830 ainda não conviviam com as teses do racismo científico, que se propagariam alguns anos depois, mas já tinham como lugar comum a inferioridade das culturas de matriz não europeia. O juiz de paz de Brotas, para além da truculência registrada nos anais da Justiça, talvez acreditasse sinceramente que agia para o bem da religião oficial e da organização do próprio Estado.    
             Estes argumentos, entretanto, não serviriam para sustentar as posições adotadas pelo juiz federal Eugênio Rosa de Araújo, titular da 17.ª Vara Federal, situada no Rio de Janeiro, incumbido da apreciação de um pedido do Ministério Público Federal para que fossem retirados do site YouTube quinze vídeos considerados ofensivos à Umbanda e ao Candomblé.  Recusando-se a deferir tal providência, Araújo declarou na sentença proferida em 24 de abril de 2014 que "as manifestações religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões", por não conterem "os traços necessários de uma religião", como um texto-base (a exemplo da Bíblia ou do Corão), uma estrutura hierárquica, nem um Deus a ser venerado.  O juiz federal, em nota divulgada na imprensa, chegou a retirar a afirmativa de que os cultos afro-brasileiros não são religiões, mas manteve a decisão inicial de não ordenar a remoção dos vídeos, fundamentando-a na "liberdade de expressão e de reunião". 
        É quase impossível crer que uma autoridade judiciária, em situação semelhante, deixasse de coibir agressões grosseiras, mesmo que exclusivamente verbais, a cerimônias xintoístas ou hinduístas ocorridas no Brasil.  Embora estas religiões sejam politeístas, desconsiderar as hipotéticas ofensas resultaria em sérios prejuízos para as relações internacionais brasileiras. Retornando às premissas de Eugênio Araújo, seria pertinente questionar se o Islã possui uma estrutura hierárquica comparável à católica ou à protestante; em caso de resposta negativa, o juiz rebaixaria as rezas muçulmanas à categoria de meras "manifestações religiosas"?
        Abandono a partir daqui as discussões teológicas, que passam longe de constituir minha especialidade.  Mas preciso salientar que o caso dos vídeos não pode ser tratado como um conjunto de incidentes isolados provocados por fanáticos imbecis que reinterpretam de maneira peculiar certas declarações de seus líderes.  O fato é que estes "autores" e "atores" do YouTube, ajam ou não com suporte institucional, circunstância que apenas uma investigação criteriosa determinaria, se sentem legitimados por um dado histórico de longa duração. Ainda que alguns dos agressores sejam negros e incluam entre seus inimigos os muitos brancos que se filiam aos terreiros, seguem uma lógica, sem dúvida dominante, que pressupõe a marginalização, o banimento ou até a criminalização de todos os elementos culturais que no Brasil são identificados como de origem africana. 
         A difusão de vídeos produzidos unicamente para caluniar ou insultar os membros de qualquer culto deve ser tratada como crime, da mesma forma que um filme em que todos os moradores de uma comunidade sejam qualificados como traficantes, ou todos os nascidos em um estado específico ganhem o rótulo de vagabundos.  Nada disto é liberdade de expressão, e sim pura delinquência, agravada, no evento levado ao tribunal, por uma base de pensamento racista. 
       Antes de concluir, forneço mais algumas informações sobre "nossas" duas histórias. Antônio Guimarães, no segundo semestre de 1831, entrou em choque, por variadas razões, com o capitão Lourenço Pinheiro da Purificação, com o major José Gabriel da Silva Daltro e com o comandante de milícias José Joaquim de Santa Thereza de Jesus, forro baiano que vivia "de sua lavoura e negócio".  Possivelmente farto de receber tantas reclamações a respeito de um único governado, o presidente Honorato Paim, que substituíra Camamu, assassinado, suspendeu o juiz de paz de suas funções em dezembro daquele ano, oficialmente "por ter infringido a Constituição do Império, com os procedimentos ilegais, e violentos, que tivera com Domingos José de Souza Lima".  Paim se referia a um cerco realizado por Guimarães, com quarenta homens, contra a casa de Souza Lima, cujos escravos foram espancados.  Mas não se apresse, leitor, em reabilitar ditados no estilo de "o bem sempre vence o mal".  Antônio Guimarães recuperou o cargo, pelo voto dos paroquianos de Brotas, em 1835.
        No Rio de hoje, a decisão de Eugênio Araújo tem caráter provisório. O procurador da República Jaime Mitropoulos já apresentou recurso contrário no Tribunal Regional Federal da 2a Região.  O desfecho é incerto, e, seja qual for, ainda não liquidará a enorme tolerância desfrutada, no Brasil, pelos que cometem delitos de discriminação. 
                                   
                            
Nota

1-Estes episódios são apresentados, com riqueza de detalhes, no livro Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista, de João José Reis e Eduardo Silva (São Paulo: Companhia das Letras, 1989).      

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