sábado, 5 de maio de 2012

Demétrio Magnoli e o tráfico atlântico: um péssimo advogado para Demóstenes Torres


Empenhado no combate à implantação de cotas étnicas no ensino superior, o senador Demóstenes Torres, no início de 2010, compareceu ao Supremo Tribunal Federal, onde se pronunciou sobre os temas da escravidão e do tráfico atlântico de escravos.  Entre outras pérolas, Demóstenes apresentou a tese simplória da consensualidade das relações sexuais entre senhores e cativas, no que foi seguidamente criticado por muitos articulistas, a exemplo de Elio Gaspari:

blogln.ning.com/profiles/blogs/elio-gaspari-a-teoria-negreira -

            Todavia, entre as polêmicas que se sucederam, a mais prolongada girou em torno da seguinte afirmativa:

"Todos nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para o mundo islâmico, para a Europa e para a América. Lamentavelmente. Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos. Mas chegaram. (...) Até o princípio do século 20, o escravo era o principal item de exportação da economia africana".

            Numerosas vozes se levantaram contra o que foi compreendido como a responsabilização dos negros pela sua própria escravidão.  O historiador Luiz Felipe de Alencastro, em entrevista a Laura Capriglione, publicada na Folha de São Paulo em 4 de março de 2010, corrigiu uma das distorções plantadas por Demóstenes,  esclarecendo que

"Havia, sim, tráfico de escravos na África. Mas a escravidão atlântica teve uma intensidade tal, uma integração tamanha com o capitalismo moderno, que acabou exacerbando os mecanismos de exploração interna no continente africano."

Alencastro apontou ainda que, das 37 mil viagens comprovadas de navios negreiros para o continente americano, nenhuma foi efetuada em navios pertencentes a negros, estando “toda a logística e o mercado” sob o controle de ocidentais.


Os ataques contra Demóstenes motivaram a intervenção, a seu favor, de um dos pesos pesados da intelectualidade de direita do país, o sociólogo Demétrio Magnoli, que no costumeiro estilo virulento qualificou os críticos do senador como “delinquentes”  que falseavam os registros históricos.  O artigo de Magnoli teve ampla divulgação na Internet.  Apresento um dos links, entre múltiplas possibilidades:


            Encontramos no sucinto texto vários equívocos e meias verdades.  Demétrio Magnoli salienta a obviedade de que a escravidão na África precedeu o tráfico efetuado por iniciativa dos europeus:   

O instituto da escravidão existia na África (como em tantos outros lugares) bem antes do início do tráfico atlântico. Inimigos derrotados, pessoas endividadas e condenados por crimes diversos eram escravizados. 

            Contudo, ao fazê-lo incorre em generalização grosseira, visto que o cativeiro entre os africanos assumia proporções muito diferenciadas, tanto no que se refere à quantidade de indivíduos escravizados em cada região, quanto no que diz respeito ao peso econômico do trabalho escravo nas economias locais.  Marc Ferro revela que antes da entrada dos europeus neste ramo de negócios, os mercados de escravos se concentravam em áreas que mantinham estreito contato com o mundo muçulmano: o vale do Níger, o Sudão, o Chifre da África e o Songhai [1].

                           
            Paul Lovejoy, um dos maiores especialistas neste campo, não deixa dúvidas de que a presença dos europeus, além de resultar na migração forçada de africanos para a América, fez crescer exponencialmente a utilização de mão de obra escrava na África, inclusive nas regiões não atingidas pelo tráfico islâmico. 
                                     
            Além disto, enquanto a escravidão ganhava espaço em detrimento de outros sistemas de trabalho, sua importância para o conjunto da economia se ampliava[2].
                     
                                     

Magnoli, no mesmo parágrafo, volta a generalizar de modo infeliz quando afirma que

Os empórios do tráfico, implantados no litoral da África, eram fortalezas de propriedade dos reinos africanos, alugadas aos traficantes.

         A proposição, verdadeira no essencial se aplicada somente aos reinos mais poderosos da África Ocidental, é absurda se estendida ao centro-sul e ao sul do continente. Lovejoy indica que os holandeses estabelecidos no Cabo da Boa Esperança no século XVII ali ergueram, após a conquista, uma dinâmica sociedade escravista, que comerciava ativamente com outras partes do mundo colonial.  O autor não hesita em definir o processo como “um subproduto da expansão comercial europeia" [3].

                           

Jaime Rodrigues demonstra que a política do Estado português para o tráfico, acidentalmente a que mais nos interessa, incluía com frequência o estabelecimento da dominação territorial direta sobre as terras cruzadas pelas rotas empregadas naquela atividade.  A Coroa de Portugal promovia a construção de fortes que serviam, igualmente, como pontos de apoio para os traficantes.  Esta presença militar, em certos períodos, evoluiu para a ocupação de áreas mais vastas[4].    

                                  
O tráfico no Congo/Angola, região africana que mais exportou seres humanos para o Brasil, não era, em absoluto, um negócio entre sócios de mesmo nível.  Os traficantes luso-africanos, para garantir o suprimento desejado, se valiam amiúde da superioridade de suas armas, fomentando verdadeiras guerras para capturar escravos.  No século XVIII, eles tiveram como alvo, entre vários povos, os ovimbundos, que constituem até os dias atuais uma das principais etnias formadoras da população angolana[5]
   



 Vender ou não seus “irmãos na cor” não era uma questão de livre arbítrio para os governantes africanos.  Caso não o fizessem nos termos convenientes aos europeus, ficavam expostos a represálias concretas.  Jaime Rodrigues menciona os episódios ocorridos em Cabinda, no ano de 1783, quando a diplomacia portuguesa acenou com a destruição completa do Estado dirigido pelo mambuco.  

                                                          
      A violência empregada pelos traficantes que operavam em Angola se repetia na região hoje correspondente a Moçambique, com o beneplácito do governo português[6], que se locupletava com a ação dos prazeiros, o que deve levar Magnoli a considerar que o apresamento direto feito pelos europeus e seus descendentes não era tão incomum quanto seu texto sugere.



  Pela leitura de Boxer, percebemos que já no século XVI os dirigentes portugueses estabelecidos em São Tomé, aliados aos negreiros e aos plantadores escravistas, ditavam de fato as regras do tráfico na costa, escapando à autoridade não apenas do reino do Congo como também da própria Coroa de Portugal.  Afonso I do Congo, rei de um dos Estados africanos mais bem organizados sob o ponto de vista administrativo, não se mostrava capaz de impedir a escravização de seus súditos[7].

                                 

Assim, atestamos mais uma falácia de Demétrio Magnoli, para quem

O historiador Luiz Felipe de Alencastro, convocado para envernizar a delinquência histórica dos repórteres (”África não organizou tráfico, diz historiador”), conhece a participação logística crucial dos reinos africanos no negócio do tráfico. Mas sofreu de uma forma aguda e providencial de amnésia ideológica ao afirmar, referindo-se ao tráfico, que “toda a logística e o mercado eram uma operação dos ocidentais”.  

 Apesar de toda a agressividade verbal do sociólogo, a balela só se sustenta, e mal, se entendermos o planejamento de cada uma das menores emboscadas no sertão como parte da “logística”.  Recorrendo a Joseph Miller, compreendemos que a quantidade de homens escravizados mantinha uma correlação direta com as necessidades das plantations da América, pouco importando quais fossem os agentes do tráfico [8].  

            
Diante desta exposição, creio que Demétrio Magnoli acaba inteiramente desmascarado em sua pretensão de restabelecer a “verdade histórica”.  Pelo contrário, de seu artigo emerge a intenção, fortemente ideológica, de provar que o Ocidente nada deve aos negros.  Tarefa, aliás, das mais ingratas, pelos contorcionismos que exige.   


  


     
         


[1] Ver Marc Ferro.  Sobre o tráfico e a escravidão.  In: O livro negro do colonialismo/org. Marc Ferro.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 119.
[2] Ver Paul Lovejoy.  A escravidão na África: uma história de suas transformações.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 51.
[3] Idem, p. 205.
[4] Cf. Jaime Rodrigues.  De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860).  São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 93.
[5] Cf. Joseph C. Miller.  A economia política do tráfico angolano de escravos no século XVIII.  In: Angola e Brasil nas rotas do Atlântico Sul.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 35.
[6] Cf. Paul Lovejoy.  Op. cit., p. 132.
[7] Cf. Charles R. Boxer.  O império marítimo português, 1415-1825.  Lisboa: Edições 70, 2001, pp. 108/109.
[8] Ver Joseph Miller.  Op. cit., p. 38.

Um comentário:

  1. Bela resposta, ao ideólogo, travestido de cientista social.

    Sua análise é alicerçada em pesquisas sérias !

    A tese de Demétrio foi apoiada nas fontes primárias do Barão de Masoch:
    "Toda vez que você sofre a culpa é sua!"

    Parabéns Gustavo

    Ricardo Ruiz

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