terça-feira, 8 de maio de 2012

Quilombos do Maranhão: uma longa história de resistência

                

                      Quando a maioria dos brasileiros ouve falar em quilombos, pensa automaticamente em Palmares, local imaginado como uma cidade africana no meio da floresta, governada por um grande e misterioso rei guerreiro, Zumbi.  Não tratarei nesta postagem da realidade sobre Palmares ou dos mitos construídos sobre a federação de mocambos que aterrorizou as autoridades coloniais no século XVII, que vão desde a ridícula especulação a respeito da homossexualidade de Zumbi até as "provas" de que era melhor viver na senzala do que no quilombo.
               Quero colocar em evidência um outro elemento da mitologia da escravidão: a submissão do africano ao cativeiro, em contraste com a altivez do índio, que preferiria a morte ao trabalho forçado nos engenhos.  Não era incomum, na minha época de criança (década de 1970), que a crença na docilidade do negro, escravo capaz de amar o seu senhor, constasse dos manuais escolares e fosse ratificada pelo discurso do professor.  Hoje, sem dúvida, o contexto das salas de aula é bem diverso, mas o antigo lugar comum.sobrevive.  Não é raro vermos gente jovem, educada após o último período ditatorial, se referir à subalternidade dos afrobrasileiros como um dado natural e consagrado através da História.
           Nesta  perspectiva "tradicional", a existência de Palmares se torna um episódio anômalo, praticamente um fato isolado.  Eu afirmaria sem receio que o cidadão médio desconhece que a resistência quilombola foi um movimento amplo, multissecular e difundido por praticamente todas as partes da América Portuguesa e, posteriormente, do Império do Brasil.  Mas existem, em oposição a outra falácia vulgar, a ideia de que "o Brasil não tem História", numerosas referências aos quilombos em documentos do Estado, ao alcance de qualquer pessoa com acesso à Internet.   
                  Consultando os relatórios maranhenses do século XIX, percebemos que as fugas de escravos e sua organização em quilombos, por vezes em aliança com outros elementos desfavorecidos da sociedade local, foram vistas como um problema de primeira grandeza pelas autoridades daquela província ao longo do período monárquico.  Presidente do Maranhão em 1839, Manuel Felizardo de Sousa e Melo fez menção aos quilombos da região de Codó, combatidos pelos proprietários rurais; no mesmo texto, se destaca uma referência ao início da rebelião regencial que ficou conhecida como Balaiada.  Um dos líderes balaios, Raimundo Gomes, é citado de maneira especialmente preconceituosa.
               
   
  
                   
 
                           Em 1841, o doutor João Antônio de Miranda deixou um relato muito semelhante, pelo qual se percebe a atuação dos quilombolas de Codó no sentido de reforçar suas fileiras com mais fugitivos.  Outros impropérios são dirigidos a Raimundo Gomes, bem como a Cosme, líder negro que comandava um verdadeiro exército de escravos.



                         

                                             http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/340/000005.html  


                         Jerônimo Martiniano Figueira de Melo, que governava o Maranhão em 1843, assinalou novos combates entre os quilombolas e as forças do Estado, que lutavam também contra índios não integrados à sociedade imperial.

     

       
                        Honório Pereira de Azeredo Coutinho, presidente em 1850, demonstrou o quanto as fugas eram corriqueiras: no prazo de três anos, nada menos do que 569 escravos haviam sido recapturados somente na capital, São Luís.  Coutinho lamentava que os mecanismos de repressão não funcionassem de maneira mais eficaz.



                                            http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/348/000007.html

                        Em 1852, Manoel de Sousa Pinto de Magalhães atestou a existência de outros quilombos, nas comarcas de Viana e Guimarães.



                                               http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/350/000005.html
        

                 Em seu relatório de 1853, Eduardo Olímpio Machado identificava o quilombo instalado no distrito de Turiaçu como o mais ameaçador para a ordem senhorial, constatando a existência de outros na área do Alto Mearim.  Machado temia que uma insurreição da escravatura se estendesse às comarcas de Alcântara e Viana.  A Guarda Nacional da província combatia os quilombolas, aparentemente conseguindo arrasar alguns de seus abrigos.


                                             http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/351/000006.html

                       Em 1854, o mesmo Eduardo Machado noticiou a repressão aos quilombos do Alto Mearim e a destruição dos existentes em Turiaçu, fato que documentos posteriores parecem desmentir.


                                              http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/352/000007.html

                            Ainda na presidência em 1855, Machado se referiu à continuidade dos conflitos no Alto Mearim, bem como à mobilização de tropas destinadas à contenção de índios classificados como "menos ferozes".




                                            http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/353/000007.html


                        Em 1856, Antônio Cândido da Cruz Machado relatou que na própria ilha de São Luís, no local denominado Guapiranga, escravos fugitivos logravam se esconder, ao que tudo indica com o apoio de habitantes livres.



 


                       Benvenuto Augusto de Magalhães Taques, presidente em 1857, que definia a escravidão como "aberração moral", dissertou também sobre a resistência dos índios do Maranhão "à civilização e ao cristianismo".  No mesmo texto, vemos uma nova referência à cooperação, no campo econômico, entre pessoas livres e cativos fugidos, além da continuidade das ações dos quilombolas de Turiaçu. 


                                             http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/355/000006.html

                     Francisco Xavier Paes Barreto, em 1858, comprovava a importância da questão quilombola, ao estimar que, somente na área de Turiaçu, havia quinhentos fugitivos.  



                                              http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/356/000005.html
                     
                  Ocupando a presidência em 1862, o conselheiro Antônio Manoel de Campos Mello apontou que seu antecessor, sem sucesso, tentara eliminar os quilombos na região do rio Gurupi e, mais uma vez, nas  áreas de floresta próximas a Viana.  Porém, em um dos ataques, as tropas tinham destruído casas e demais benfeitorias no quilombo intitulado São Luís.

                                            http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/362/000005.html

                  Em 1863, o desembargador Miguel Ayres do Nascimento se inquietava com a movimentação dos quilombolas em Turiaçu, no Alto Mearim e em Viana.  Segundo o administrador, as fugas de escravos das fazendas vizinhas dos quilombos era um evento quase diário.



                                                http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/364/000004.html

                  Para o vice-presidente José da Silva Maia, redator do relatório provincial publicado em 1869, os índios insubmissos do Grajaú, assim como os quilombolas de Turiaçu, contavam com a ajuda de desertores.    Para combater a todos, planejava-se a fundação de colônias.


                                               http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/371/000008.html

                    No ano seguinte, Silva Maia voltou a citar os quilombolas de Viana, cujas expedições se estendiam ao município de São Bento.  Neste documento, a exemplo de outros, nota-se que os dirigentes ressaltam a índole supostamente benévola da população governada, contrastando com a ferocidade dos índios "selvagens" e dos negros que se rebelavam contra a escravidão.



                                                http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/372/000004.html

                     Em 1877, o presidente Francisco Maria Correia de Sá e Benevides verificava, além da continuidade do processo de agrupamento dos fugitivos em quilombos, a antiguidade de várias destas povoações.  Benevides mostrou satisfação por um ataque desferido contra os quilombolas do município de Pinheiro, no qual 113 pessoas teriam sido capturadas.  Entretanto, a tropa enviada contra um dos quilombos de Turiaçu falhara na tentativa de aprisionar seus habitantes.



                                           http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/380/000003.html
                                           http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/380/000004.html


                      Esta longa trajetória de resistência, da qual exibi apenas um pequeno fragmento, permanece esquecida, fato que acaba sendo muito conveniente aos políticos ruralistas e outros conservadores. Colocando-se na posição de vítimas, eles difundem fartamente a noção de que "basta qualquer negro se apossar de um lote e dizer que ali existiu um quilombo para que o governo desaproprie a terra".  Mostremos o quanto estão enganados.    

4 comentários:

  1. Agradeço novamente aos leitores pelas mais de quatro mil visitas.

    ResponderExcluir
  2. Postei no facebook um texto atribuído a você.

    http://www.facebook.com/photo.php?fbid=4039903561024&set=a.2325273056333.140460.1384836674&type=3

    Jairo de Carvalho - Maringá/Paraná

    ResponderExcluir
  3. O restante do texto está distribuído em mais treze slides.

    https://fbcdn-sphotos-a.akamaihd.net/hphotos-ak-ash4/314237_4040045404570_1384836674_3711923_1099302642_n.jpg

    ResponderExcluir
  4. Excelente iniciativa. Tudo que fizermos para reparar as injustiças cometidas aos nosso povo negro ainda será pouco. Mas vc faz a sua parte!

    ResponderExcluir