sábado, 6 de julho de 2013

Resistência escrava: quilombos cariocas e fluminenses

Fuga de escravos, óleo sobre tela por François Auguste Biard (1859)

       Há pouco mais de um ano, precisamente em 8 de maio de 2012, quando ainda procurava a formatação básica ideal para o blog, publiquei algumas considerações sobre a resistência escrava representada pelo quilombos maranhenses do século XIX.  Ilustrei o texto com recortes da documentação oficial produzida por diversos presidentes daquela província.  

http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2012/05/quilombos-do-maranhao-uma-longa.html

       Volto hoje ao tema com motivações idênticas.  Posso dizer sem receio de engano que a população carioca, com poucas exceções, ignora por completo que algumas das áreas da cidade mais valorizadas pelo mercado imobiliário contemporâneo abrigaram quilombos em ambos os reinados.  Mesmo que o mito do "negro escravo submisso" tenha desaparecido dos livros escolares há no mínimo três décadas, sobrevive como lugar comum nas mentes e nas falas de pessoas de todas as idades, ultrapassando as fronteiras ideológicas dos segmentos que podemos classificar como "a direita".
     Decidi, assim, trazer aos leitores mais uma pequena leva de informações do gênero, modificando a "base geográfica" na direção da antiga Corte do Império e da província que a envolvia territorialmente, a do Rio de Janeiro.  Conheço perfeitamente, ou quase, as limitações de um blog editado sob método artesanal por um só indivíduo.  Uma composição como esta será bem sucedida se superar a marca de quinhentas visualizações.  Um punhado de revistas de circulação mediana e talvez algumas centenas de páginas pessoais são tudo que a esquerda tem a contrapor aos lugares comuns e à grande mídia com seus Villas, Magnolis e Narlochs. Mas lutemos, apesar da inferioridade de meios, e vamos às "novas" fontes.                 
              

Em meados do reinado de Pedro I, o Diário do Rio de Janeiro de 1º de março de 1826 não deixava dúvida de que quilombolas capturados em várias partes da província fluminense eram tipos comuns nas prisões da capital imperial.



A Aurora Fluminense de 18 de fevereiro de 1828 informou sobre um quilombo instalado em Laranjeiras, nos dias atuais um elegante bairro da Zona Sul do Rio.  A existência de armas de fogo nas mãos de seus moradores preocupava o redator do periódico.  



O Diário do Rio de Janeiro de 5 de julho de 1830 fez referência ao "Quilombo da Tijuca".  Na verdade, os estudos da historiadora Mary Karasch demonstram que a topografia tijucana, com seus morros cobertos de matas, favoreceu a formação de diversas comunidades de fugitivos na primeira metade do século XIX. 



No dia 23 de janeiro de 1833 A Aurora Fluminense trouxe um breve relato a respeito das povoações quilombolas instaladas na Baixada Fluminense, no Recôncavo da Guanabara e mais adiante, em terras hoje situadas no município de Cachoeiras de Macacu.   



O Diário do Rio de Janeiro de 26 de novembro de 1838 narrou acontecimentos ligados à importante rebelião de Manuel Congo na região de Vassouras, quase inteiramente desconhecida do "homem comum", apesar de já ter merecido a atenção de vários especialistas. 




Paulino José Soares de Souza, depois visconde do Uruguai (1807-1866), em seu relatório da presidência da província do Rio de Janeiro de 1839, também se reportou ao movimento chefiado por Manuel Congo, com visível preocupação de garantir que a situação estava sob controle das forças da ordem.

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/770/000003.html



O Globo de 11 de janeiro de 1876 fez eco a um pequeno jornal do município de Macaé, segundo o qual uma fuga em massa de escravos dera origem a um novo quilombo.



O jornal A Reforma, órgão ligado ao Partido Liberal, acusou em 8 de fevereiro de 1876 a permanência do Quilombo do Bomba, na Baixada Fluminense, cuja implantação já era antiga.   



Outro presidente da província, João Marcelino de Souza Gonzaga, deu notícia em 1880 da tomada pela polícia de mais um quilombo, conhecido como Loanda,  cuja localização exata não estabeleceu.

http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/812/000005.html



O periódico O País,  em 24 de outubro de 1884, mencionou a ação de quilombolas em Resende, importante município cafeeiro situado na divisa com as províncias de São Paulo e Minas Gerais.


O mesmo jornal, quase dois meses mais tarde (19 de dezembro de 1884), deu testemunho da desenvoltura de escravos fugidos que ignoravam os limites provinciais, desafiando as autoridades fluminenses e paulistas.  



      As notícias que recupero não são entulho factual ou meras curiosidades.  Elas comprovam a resistência ativa de centenas de homens e mulheres contra uma ordem social das mais perversas.  Em certas passagens, fica claro que a atividade quilombola não constituía privilégio de escravos, sequer da população negra.  Outros elementos da sociedade, verificando que seus interesses não coincidiam com os dos senhores de terras e escravos e do Estado escravista, negociavam com os cativos fugidos, por vezes protegendo-os e até vivendo entre eles.
         Reconhecer a busca por justiça nas lutas sociais do passado é uma atitude que fortalece e legitima a luta por justiça no presente.  Somos todos quilombolas quando produzimos e compartilhamos as informações que não interessam à burguesia e aos conservadores.
          
  


7 comentários:

  1. Há topônimos com o nome de quilombos por toda a parte neste país. Outro dia mesmo eu fiz uma caminhada até o Pico do Quilombo no Parque da Pedra Branca, sinal de que um dia já existiu um quilombo lá. Mas a própria abundância e "quilombos" já desperta alguns questionamentos.

    Primeiro, como se explica que um país supostamente tão cruel e intolerante com escravos tenha tido um sortimento tão vasto de quilombos? Por que eles não eram todos destruídos, simplesmente? Note que nos EUA, país que teve um percentual de população escrava muito inferior ao brasileiro, jamais existiu uma coisa análoga a um quilombo, o que leva a concluir que todos os escravos fugitivos ali foram recapturados.

    A conclusão a que eu chego é que a abundância de escravos no Brasil gerava um excedente que o próprio senhor abandonava ou libertava por não ter como sustentar, ou então deixava fugir e não se esforçava por recapturar, e que os ditos quilombos que abundam por aí somente foram de fato esconderijo de escravos fugidos em um passado remoto, depois tornaram-se residência de escravos libertos e refúgio de marginais, a julgar pelo número de ocorrência criminais atribuídas a quilombolas que você mostrou aqui. Por esse motivo, eu considero duvidosas as pretensões dos atuais "quilombolas" em se reivindicar como tal - vai ver, os ancestrais de muitos deles nem eram mais escravos quando se estabeleceram no suposto quilombo. No fundo, é como fazem os caboclos que se declaram tupinambás a fim de reivindicar um território demarcado para si. Aí tem muita esperteza.

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  2. Não sou especialista no tema, mas posso fazer algumas considerações. Na comparação entre Brasil e Estados Unidos, temos que levar em conta o ambiente geográfico. A região onde surgiram os Palmares, por exemplo, possuía um clima tão inóspito e tantos animais peçonhentos que anteriormente era desabitada e evitada pelos índios. O mesmo vale para os quilombos maranhenses que citei no texto de 2012: ficavam na selva amazônica. Muitas vezes, portanto, os responsáveis por uma "expedição punitiva" já sabiam de antemão que teriam baixas fatais mesmo que o confronto lhes fosse favorável. Também não se pode imaginar a erradicação de um quilombo como se fosse a queima de um vespeiro. Dependendo da conveniência, os quilombolas se furtavam ao combate, buscavam outros esconderijos, reconstruíam suas choças queimadas depois que a tropa ia embora. Quantas vezes portugueses e holandeses atacaram Palmares, fizeram capturas, destruíram alguns núcleos, até deram o inimigo como morto, até a verdadeira destruição quando o quilombo já tinha mais ou menos um século de existência? Bem mais próximo de nós no tempo, temos o quilombo do morro do Castro, em Niterói, cujos moradores viviam da pilhagem feita na orla marítima da cidade. Mary Karasch narra em A vida dos escravos no Rio de Janeiro que com a aproximação da polícia os quilombolas sempre fugiam, mesmo sabendo que tudo que não conseguissem carregar seria inutilizado pelos guardas, e depois voltavam.
    Nos Estados Unidos, o povoamento mais denso e a menor oferta de refúgios naturais certamente dificultaram esta modalidade de resistência.
    As relações entre os fugitivos e a sociedade ao seu redor, sem dúvida, não eram as mesmas. Nos EUA havia uma coesão política da comunidade branca sem correspondência no Brasil. Talvez eu não esteja de todo certo, mas a impressão que retive das poucas leituras que fiz sobre o assunto é a de que quase todos os brancos norte-americanos, inclusive os miseráveis, se solidarizavam no intuito de defender a ordem mantendo a "hierarquia das raças". No Brasil, um negociante que tivesse chumbo e pólvora em seus armazéns, podendo vendê-los com bom ágio a escravos fugitivos, na maioria dos casos não hesitaria em fazê-lo. Existem inúmeros registros na historiografia de relações de comércio quase convencionais entre quilombos e povoações vizinhas integradas à sociedade colonial ou imperial.
    Não devemos relevar outro fato: os quilombolas constantemente transitavam entre indivíduos forros, negros livres e mesmo escravos com maior mobilidade do que a maioria, muitas vezes sem que ficasse claro quem era quem. Nos EUA, em determinadas regiões negro era sinônimo de escravo, impedindo estas "ambiguidades".
    (continua)

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  3. Já a sua hipótese de que quilombolas eram escravos que ninguém queria, ou não valia a pena investir na recaptura, me parece ruim. A historiografia nos mostra que os quilombos surgiam pela ação de homens jovens, em pleno vigor produtivo, capazes de andar por dias ou semanas em meio ambiente desconhecido ou hostil, por vezes depois de matar feitores e outros empregados.
    Não vejo muito sentido na alegação de que a chegada de outros elementos descaracterizava um quilombo. Suponhamos que três gerações consecutivas de descendentes de Pedro Mundim se casem em famílias japonesas. Por acaso seria ilegítimo usarem o sobrenome Mundim, ou reivindicarem certas heranças culturais e materiais, simplesmente por ter olhos puxados e cultuar divindades xintoístas?
    É um erro pretender "amarrar" identidades étnicas a pré-requisitos genéticos. O "caboclo tupinambá", com 10, 30 ou 50% de carga genética europeia e/ou africana, é tão índio quanto foram Arariboia e Felipe Camarão. Afinal, ele se julga índio, é reconhecido como membro por uma comunidade indígena, que por sua vez é reconhecida como tal pelos não índios ao redor. O seu exemplo dos tupinambás do sul da Bahia é particularmente mau, já que temos uma vasta documentação que demonstra o quanto foram continuamente prejudicados pelo Estado brasileiro, sem que o mesmo Estado contestasse sua identidade indígena e seus direitos territoriais.

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  4. Os termos e profissões funções "de época" que encontramos nestes anúncios são interessantíssimos!negro "fulo", "retinto", "boçal" etc.
    O mais válido destas publicações é que, no caso do estudante que as acompanha, não se limita somente ao ensinado nos quadros negros (ainda existe quadro negro?). adorei! Mais referências sobre vida (trabalho) de escravos no Brasil Prof. Gustavo! Saudações ao seu blog luxuoso!

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  5. Ganhei a semana: uma visita tão especial chama meu blog de luxuoso! Mas além de ilustrar, estes recortes têm a finalidade de mostrar a todas as pessoas interessadas que existe uma gigantesca massa documental digitalizada na Internet sobre Brasil Império e República, acessível de imediato e de graça a quem conhece alguns atalhos.

    Obs: Os quadros agora geralmente são brancos, para uso de pilot. Em alguns lugares onde a precariedade é completa, ainda se acha o quadro de pedra, verde.

    Obrigado por prestigiar e participe sempre!

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  6. Olá professor Gustavo, em pesquisa encontrei esta preciosidade que é seu blog. Certamente indicarei a amigos e alunos! Os documentos aqui mostrados são de muita importância. Seus argumentos em diálogo com os visitantes me fortalece nas pesquisas que faço e nas crenças que carrego. Há muito mias história a desvendarmos nessa busca de identidade e heranças culturais.
    Muito grata pela sua batalha pelo esclarecimento dos fatos!
    Isso é resistência à demência coletiva que impera na atualidade!!!
    Saudações!
    Eliane Mattozo

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  7. Obrigado, professora Eliane. Só lamento a escassez de tempo que vem me impedindo de atualizar o blog com a frequência que desejo. Esteja à vontade para apresentar sugestões e trazer suas próprias descobertas.

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