quinta-feira, 9 de junho de 2016

Dom Mouro e outras histórias


                                         Centro de Estudos Luso-Árabes, em Silves, no Algarve


   Viajo durante alguns minutos por um de meus endereços virtuais favoritos, http://geneall.net/pt/home/antes conhecido como Genea Portugal, site para o qual contribuo com informações cartoriais e paroquiais desde o ano 2000.  Meu fascínio pela Genealogia é inato.  Desde a infância criei o hábito de perturbar meus avós com perguntas sobre quem tinham sido os pais e avós deles, onde moraram, o que faziam, etc.
        Esta curiosidade foi se aguçando ao longo do tempo, com outras questões e comentários que estranhos me dirigiam. Para meu espanto, certa vez um professor do primeiro ano do Segundo Grau achou que eu era judeu.  A veterana funcionária do extinto Banerj que me treinou para trabalhar como caixa, em 1991, dizia que se me conhecesse só de vista julgaria estar diante de um sírio ou libanês. Ciganos calons do município de Maricá, que participavam de uma festa no bairro de Itaipuaçu há cerca de dez anos, indagaram quando lá entrei se eu me admitia na vida social como "primo" deles. Em outra ocasião, quando dava aulas na cidade de Duque de Caxias (RJ) e dormia pesadamente na sala dos professores em horário vago, virei objeto de uma espécie de aposta.  Todos os funcionários da equipe de apoio da escola eram negros, e um deles comentou algo como "Gustavo tem toda pinta de português", dando início a uma curiosa polêmica.  Uma colega mais velha, de seus sessenta anos, retrucou afirmando que "sim, ele parece muito com essa gente, mas naqueles traços também vejo gente nossa". Quando acordei, todos estavam ansiosos para ouvir uma resposta definitiva.    
         Voltemos, por enquanto, ao Geneall.  A esplêndida base de dados lusitana conta hoje com os registros (ou registos, como se escreve em Lisboa) de 2.516.715 pessoas. Meu perfil recebe o número 27.755 (http://geneall.net/pt/nome/27755/gustavo-alves-cardoso-moreira/), denunciando uma condição de "quase fundador", digamos assim. Infelizmente, os leitores que decidirem prosseguir não conseguirão navegar pelo site, a não ser que nele se inscrevam pela quantia de 20 euros semestrais, 35 anuais ou 60 bianuais.  Tentarei, contudo, remediar a situação fazendo um punhado de prints explicativos.
       Entre as informações reproduzidas dos livros de linhagem da Idade Média, consta que Fortun Garcés (http://geneall.net/pt/nome/8429/fortun-garces-rei-de-pamplona/), que viveu entre o século IX e começos do X, superando a marca de oitenta anos, era rei de Pamplona, no norte da Península Ibérica. Ele se casou com uma mulher mestiça, Auria Ibn Lope Ibn Musa (http://geneall.net/pt/nome/10934/auria-ibn-lope-ibn-musa/), que tinha inscritas no nome raízes hispanas e muçulmanas (Musa, ou Mussa, é a versão árabe para Moisés).  O pai dela, Lope Ibn Musa, era filho do muçulmano Musa Ibn Musa al Qasaw (http://geneall.net/pt/nome/14687/musa-ibn-musa-al-qasaw/), casado com uma mulher de provável estirpe basca, Assona Iñiguez (http://geneall.net/pt/nome/10861/assona-iniguez/).  Sobre a mãe, temos no geneall apenas o nome Ayab al-Bilatiyya (http://geneall.net/pt/nome/43401/ayab-al-bilatiyya/).
         Uma das filhas de Fortun e Auria, Onega Fortunes (http://geneall.net/pt/nome/42203/onega-fortunes/), teve primeiro um marido muçulmano, Abd Allah Ibn Muhammad, sétimo emir de Córdoba (http://geneall.net/pt/nome/42190/abd-allah-ibn-muhammad-7-emir-de-cordoba/), e depois desposou o cristão Aznar Sanchez, senhor de Larraun (http://geneall.net/pt/nome/1399244/aznar-sanchez-senhor-de-larraun/). 





      Neto de Abd Allah Ibn Muhammad e Onega Fortunes através do filho destes Zayd Ibn Abdallah (http://geneall.net/pt/nome/42189/zayd-ibn-abdallah/), Zaydan Ibn Zayd (http://geneall.net/pt/nome/42188/zaydan-ibn-zayd/) recebeu como esposa, ao que tudo indica, uma cristã, Aragunte Fromariques (http://geneall.net/pt/nome/569122/aragunte-fromariques/) .  Deste casal nasceu Zayra Ibn Zaida (http://geneall.net/pt/nome/42187/zayra-ibn-zayda/), que casaria, a seu turno, com Lovesendo Ramires (http://geneall.net/pt/nome/42186/lovesendo-ramires/) , filho do rei Ramiro II de Leão (http://geneall.net/pt/nome/8191/ramiro-ii-rei-de-leao/). 


    


     
   Filho de Lovesendo e Zayra, Aboazar Lovesendes (http://geneall.net/pt/nome/42185/aboazar-lovesendes/), fundador do Mosteiro de Santo Tirso (ver, por exemplo, http://genealogiafb.blogspot.com.br/2014/11/prazos-do-mosteiro-de-s-bento-em-santo.html), trazia indícios da ascendência muçulmana no prenome, corruptela do árabe Abu Nazr.  Entre seus trinetos esteve Dom Soeiro Pais, dito o Mouro (http://geneall.net/pt/nome/35245/d-soeiro-pais-mouro/), figura legendária da Idade Média portuguesa.








     
       Benquisto por D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, Soeiro Pais enriqueceu ao se tornar usufrutuário das rendas de diversos moinhos (ver, por exemplo, http://www.marcodecanaveses.pt/rosem/index.php?op=conteudo&lang=pt&id=152). Tornou-se mais célebre, entretanto, pelo relacionamento que manteve com uma mulher casada, Urraca Mendes de Bragança (http://geneall.net/pt/nome/35243/d-urraca-mendes-de-braganca/), bem assinalado pela literatura da época. O marido de Dona Urraca, Diogo Gonçalves de Urrô (http://geneall.net/pt/nome/35244/diogo-goncalves-de-urro/), se meteria na batalha de Ourique, no Alentejo, empreitada levada a cabo por D. Afonso com a finalidade de prear escravos, ouro e gado. Talvez tivesse em mente exterminar todos os homens de turbante do mundo, ou pelo menos os que lembrassem as feições de seu rival, mas acabou por morrer naquele lugar, bem além das fronteiras do então diminuto reino português.  O Dom Mouro, desta forma, teve caminho livre para se casar com a amante, fazendo legítima sua prole. Nascido de Soeiro Pais Mouro e Urraca Mendes de Bragança, João Soares de Paiva (http://geneall.net/pt/nome/232247/d-joao-soares-de-paiva/), conhecido igualmente como João Soares, o Trovador, terminou por ampliar a fama de seus pais.



        O mouro "aposto", se concedermos crédito total aos livros antigos, foi meu antepassado na vigésima geração, não por meio do Trovador, mas de outro filho, Paio Soares "Romeu" (http://geneall.net/pt/nome/256259/d-paio-soares-romeu/). Minha árvore, por outros caminhos, também inclui as duas irmãs de Soeiro Pais, como se o sangue Abu-Nazr pudesse se buscar e reconhecer no correr dos séculos.  A linhagem receberia mais tarde novos mouriscos, ou moçárabes, descendentes da filha que o rei Dom Afonso III (http://geneall.net/pt/nome/221/d-afonso-iii-rei-de-portugal/) gerou em meados do século XIII com Mourana Gil ou Madragana (http://geneall.net/pt/nome/65678/madragana-depois-mor-afonso/), filha de Aloandro Ben Bekar (http://geneall.net/pt/nome/334363/aloandro-ben-bekar-alcaide-de-faro/), alcaide de Faro, no Algarve, e último governante muçulmano em território português.  No século XVI, ingressaram na trama os judeus sefarditas da família de Abraham Seneor, último rabino-mor de Castela, obrigado a simular conversão, após a qual adotou o nome de Fernão Pérez Coronel (http://geneall.net/pt/nome/199493/fernao-perez-coronel/).  Já no Brasil setecentista, os afidalgados Carneiros da Fontoura, netos distantes de todos estes cristãos, mouros e judeus, se juntaram em matrimônio a ciganos calons vindos do Ribatejo que tentavam enriquecer nas Minas Gerais; nos Oitocentos, negros do Rio de Janeiro tiveram descendência comum com os Cardosos da vila de Itaguaí, netos dos Carneiros da Fontoura. Todos meus antigos interlocutores, então, tinham sua dose de razão. 
          Interrompo por aqui estas anotações, antes que se tornem uma introdução à autobiografia que nunca pretendo escrever.  Penso que toda biografia deve ser obra de terceiros, e de preferência distantes do biografado.  Também não pretendo "provar" a intensa troca de elementos entre as três "nações" da Península Ibérica, processo que a historiografia há muito já constatou, e autores clássicos como Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre comentaram em páginas inspiradas.  
       Utilizo esta sequência de exemplos para demonstrar na prática o quanto eram porosas as fronteiras étnico-religiosas, inclusive entre os nobres e a realeza.  Califas, emires e reis das taifas se casaram seguidamente com mulheres cristãs, bascas, navarras, francesas, do que ocasionalmente resultavam filhos louros que se vestiam à moda oriental.  Reis cristãos também escolheram esposas de origem muçulmana, permitindo que membros da corte afonsina, a exemplo de Soeiro Mouro, pudessem ser confundidos com norte-africanos.  Imaginemos então, por um minuto, o que deveria acontecer entre a plebe das regiões de fronteira, alheia aos escrúpulos aristocráticos e muitas vezes obrigada a conviver, alternadamente, com mandatários dos dois grupos, ora beligerantes, ora amigos ao ponto de fundir os sangues.
          Feito este breve exercício, não tenho como deixar de me irritar com certos demagogos que, copiando  discursos da extrema direita europeia, começam a difundir no Brasil a ideia de que cristãos e muçulmanos são inimigos eternos, desde a época de Maomé, sendo a aniquilação ou a subjugação de uns pelos outros a única proposta realista de "convivência".  A genealogia e a pesquisa genética, quando não a simples observação do entorno, já nos dão pleno direito de chamá-los de idiotas.  Um olheiro atento que passasse uma tarde percorrendo a pé os subúrbios da Zona Norte do Rio de Janeiro encontraria, com rapidez, bons sósias de Saddam Hussein, Anwar Sadat e Muammar Kadhafi.  Os islamitas do Oriente Médio são sem dúvida primos dos brasileiros, não apenas através dos mestiços portugueses e espanhóis da Idade Média, e da numerosa colônia árabe existente em nosso país, como também de outros parentes comuns, os negros da África Subsaariana que entraram em Portugal e suas dependências a partir da década de 1440.  
        Pior do que isto é sabermos que os "lepenistas" brasileiros, orgulhosos de integrar uma presumida vanguarda do Ocidente, ignoram em sua maioria o fato de não passarem de uma massa de manobra bastante obtusa.  Mostram enorme e justificável indignação a cada bomba ou rajada de metralhadora ouvida em Paris, mas se esquecem de que o presidente "socialista" François Hollande, em seu sétimo mês de mandato, empregou os mais modernos armamentos da OTAN para decidir a guerra civil da República do Mali em favor de quem mais convinha ao empresariado francês.  Fazem eco à propaganda racista sobre a imaginária "invasão" afro-asiática que escurece e islamiza a Europa, mas pouco se importam com o o fato muito mais palpável de que as invasões propriamente ditas das potências ocidentais contra o Afeganistão, o Iraque e a Líbia destruíram as economias e as infraestruturas urbanas destes países, provocando centenas de milhares de mortes e criando milhões de refugiados.
            Expliquem a estas bestas, de uma vez por todas, que se a burguesia europeia quisesse de fato ver pelas costas árabes, turcos, paquistaneses e africanos poderia ter aceitado como residentes definitivos, desde as primeiras fases da integração econômica pós-Segunda Guerra, massas gigantescas de brasileiros, argentinos, uruguaios, colombianos, mexicanos e outros que, tendo pais ou avós naturais da Espanha, Itália ou Alemanha, preencheriam os pré-requisitos para uma rápida naturalização.  Bem antes disto, o Estado francês, para fortalecer seu domínio colonial sobre a Argélia, já havia incorporado colonos italianos e espanhóis que jamais pisaram na França como cidadãos franceses; chegou mesmo ao extremo de atribuir plenos direitos aos judeus argelinos de língua árabe para isolar os muçulmanos.                    
           O problema, na verdade, é que o argentino filho de pai italiano, o uruguaio neto de espanhol e o brasileiro das áreas de povoamento alemão de Santa Catarina, uma vez admitidos na Comunidade Europeia, não aceitariam, na maior parte dos casos, trabalhar por salários de perfil latino-americano, muito menos africano, nem morar em conjuntos habitacionais e vilas de lata.  Exigiriam, e seus filhos mais ainda, condições de vida similares às da classe média do continente, e se não atendidos engrossariam as fileiras de partidos anticapitalistas.
          A burguesia europeia precisa, e muito, dos imigrantes "inassimiláveis" que usam outras roupas, frequentam outros templos, têm outras cores de pele e realizam quase sozinhos, há décadas e sendo mal pagos, trabalhos "sujos e perigosos".  Ela precisa também mantê-los na subalternidade, e, neste propósito, o racismo fomentado pela extrema direita, já em processo de institucionalização em alguns países, tem sido um instrumento formidável, servindo de quebra para esvaziar o que sobrou da esquerda continental.  Neste jogo de águias, porém, de nada servem os papagaios brasileiros loucos para aderir. Valem tanto quando o partido nazista recentemente fundado na Mongólia. Que se calem.        
                              
                  


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