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Certo ditado, despretensioso e irônico, mas repetido milhares de vezes nos últimos anos, parece ter o poder de enfurecer um bom número de conservadores em nosso país. Uma de suas versões é a de que "a direita governa o Brasil desde 1.500, portanto são precisos outros quinhentos anos para desfazer os estragos". Cada vez que alguém pronuncia estas palavras, ou coisa semelhante, mesmo a título de piada, costuma ser atacado por publicistas coxinhas indignados, que vociferam, como se estivessem a combater uma tese acadêmica, contra a burrice de "se estender o conceito de direita ao período cabralino".
Sob o ponto de vista teórico, nos campos da História, da Sociologia ou da Ciência Política, é claro que o ditado, tomado ao pé da letra, não tem qualquer valor. Mas o que irrita de fato aqueles conservadores não é a presumida ignorância de quem o profere, e sim as verdades inconvenientes para as quais ele chama a atenção. Afinal, a estupidez do adversário seria motivo mais para riso do que para raiva.
A direita não inventou as Capitanias Hereditárias, a Lei das Sesmarias, as Ordenações Filipinas, as Visitações dos inquisidores, as regras da limpeza de sangue, as bandeiras de apresamento do índio ou o tráfico negreiro. Quando estas instituições e processos surgiram, não existia formalmente uma direita, sequer na França! Todavia, a direita brasileira é depositária, sem a menor dúvida, de memórias estatais e privadas dos grupos dominantes que remontam aos tempos do Império e da Colônia. Disto sabia bem Fernando I, o das Alagoas, que posava para as câmeras em seu gabinete com um enorme retrato de Pedro I ao fundo.
Quando os primeiros colonizadores montaram engenhos de cana, submeteram populações indígenas do litoral e impuseram a autoridade da Coroa portuguesa sobre parcelas cada vez mais extensas da América do Sul, adaptaram as hierarquias de classe, gênero e etnia da metrópole ao mundo colonial. A tudo isto, vinha associado o preconceito religioso contra os não católicos e recém-convertidos ao Catolicismo, contribuindo para fortalecer as discriminações étnicas. Tais relações sofreram novas adaptações ao longo dos séculos, sem o que teriam entrado em colapso. Todavia, o caráter conservador da nossa Independência e dos regimes políticos que a sucederam permitiu que esta verdadeira herança maldita (aqui não há como escapar do clichê) se perpetuasse nos aspectos fundamentais.
Os treze anos das presidências de Lula e Dilma foram muito significativos para a esquerda em termos de experiência e aprendizado, inclusive para os esquerdistas que optaram por se manter na oposição. Entretanto, este período conta como o volume de um balde de lavar roupa contra o de uma piscina olímpica, se comparado ao patrimônio da direita na mesma área. A campanha presidencial de 2014 constitui exemplo perfeito desta desproporção. Enquanto o governo Dilma colecionava deserções, as forças oligárquicas descartavam Serra e Alckmin, figuras marcadas pelas derrotas anteriores e por diversas acusações relacionadas ao domínio do PSDB sobre o estado de São Paulo, para endossar a candidatura de Aécio Neves. Preparava-se, quase ao mesmo tempo, terreno para a chapa Eduardo Campos-Marina Silva, que além de atrair milhões de eleitores das regiões Norte e Nordeste, onde o Executivo petista dispunha de maior popularidade, poderia assumir uma posição de protagonismo caso houvesse um naufrágio do presidenciável tucano.
O esquema era muito bem organizado e racional, exceto neste ponto: Aécio é um senador sem projetos, político profissional na pior acepção do termo. Não conseguiu fabricar uma imagem de realizador, pois tinha cristalizada a fama do playboy que se entretinha nas baladas noturnas do Rio de Janeiro, enquanto delegava a responsabilidade de administrar Minas Gerais à irmã e ao atual senador Anastasia. Não empolgou o eleitorado conservador, cujas bandeiras dificilmente empunharia sem ser tachado de hipócrita. Não se beneficiou de todo do inevitável desgaste da legenda do PT após três mandatos presidenciais, pela abundância em seu entorno de episódios escandalosos que deliciavam a imprensa sensacionalista, talvez mais do que a seus próprios inimigos. Compreensivelmente, acabou por perder, embora dispusesse de sustentação financeira e midiática superior à da coalizão no poder, que já exibia fraturas. Mesmo contando com quinhentos anos de memória política, e daquilo que os antigos chamavam de beira de calçada, "eles" também erram. Cabe a "nós" a tarefa de capitalizar seus erros e identificar suas contradições e divisões, abrindo caminho para outro meio milênio (sim, sejamos ambiciosos), em tudo diferente.
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