quinta-feira, 16 de junho de 2016

Quem banca quem? Algumas linhas sobre financiamentos de campanha

       
                                                           Imagem: blog de Wadson Ribeiro

        Pouco antes das eleições nacionais de 2010, tive uma longa e agradável conversa com o antropólogo e babalorixá José Flávio Pessoa de Barros (1943-2011), em seu gabinete de trabalho na Universidade Cândido Mendes (UCAM).  José Flávio, que fora meu professor de Antropologia Brasileira II nos tempos da graduação em História na UERJ, veio a me orientar, quase vinte anos depois, na elaboração de um trabalho de conclusão de disciplina do Doutorado, em que realizei breve estudo comparativo entre certos aspectos das sociedades brasileira e haitiana no século XIX.  O antigo mestre, que concorria então ao cargo de deputado federal pelo PSB do Rio de Janeiro, a certa altura expôs dados sobre financiamentos eleitorais. Ele me disse que uma campanha vitoriosa para a Câmara estava custando, em média, cerca de R$ 4,5 milhões, com muito pouca variação de estado para estado. Sem contar sequer com uma pequena fração deste valor, José Flávio se empenhava na construção de métodos alternativos para a divulgação de suas propostas, que não funcionaram.  Ele teve pouco mais de mil votos.
           Não disponho de uma atualização daquela cifra, mas pouco me surpreenderia descobrir que, por efeito combinado da inflação, da radicalização de interesses e da concentração das chances reais nos indivíduos com maior "poder de fogo", tenhamos atingido o dobro.  Desta maneira, basta recorrer à aritmética simples para saber que o capital indispensável para a eleição de um deputado federal, com as possíveis exceções de algumas figuras notáveis do esporte ou do entretenimento, excede em muito os valores que os vencedores perceberão em salários e vantagens durante quatro anos.
           Serei muito pouco original, mesmo que não venha a sofrer contestação, ao afirmar que o sistema representativo brasileiro está podre, é fundado sobre níveis intoleráveis de corrupção e se apresenta em condições de completa falência no que diz respeito à representatividade efetiva do eleitorado.  Também não tenho um projeto viável para expulsar do mundo da política o dinheiro das empreiteiras, dos bancos, das empresas de ônibus ou da indústria de armamentos, sem falar em criminosos comuns do tipo mais abastado.  Posso, entretanto, apontar para providências simples, ao alcance de qualquer eleitor com um mínimo conhecimento da Internet, no sentido de verificar se os seus interesses são compatíveis com os dos patrocinadores a quem seu candidato deverá, infalivelmente, prestar satisfações.         
        Indico no site do TSE o link pelo qual até uma criança, sem precisar criar perfil de usuário ou mesmo fornecer dados de identificação, obtém acesso ao resumo das contas de todos os candidatos a cargos eletivos nas eleições mais recentes para presidente da República, governador, deputado federal, distrital e estadual.  O material, sem dúvida, contém limitações: não fornece pistas sobre caixa dois ou remessas ilegais.  Mesmo assim, na maioria dos casos é bastante esclarecedor, e na maioria dos demais a escassez de informações também quer dizer muita coisa.   

http://www.tse.jus.br/eleicoes/contas-eleitorais/candidatos-e-comites

          Após a entrada na página inicial, selecionamos a eleição que desejamos consultar.  




          Em seguida, o site abre fichas, que permitem investigar quanto cada político recebeu, de quais doadores, e como gastou.  Caso o pesquisador queira saber em quem determinada firma (ou um particular) "investiu", é suficiente levantar seu CPF ou CNPJ.  






                
           Seria inviável reproduzir neste espaço, ou em um volume com menos de mil páginas, as contas de todos os 513 deputados federais e 81 senadores eleitos.  Todavia, posso publicar uma pequena quantidade de amostras, que talvez estimulem os leitores a empreender suas próprias buscas.  Recorro aos números de alguns federais eleitos pelo estado do Rio, que de longe, e por razões óbvias, estão entre os mais capazes de me irritar.
           Percebo de imediato que a campanha do peemedebista Eduardo Cosentino da Cunha, mais tarde elevado pelo baixo clero, pelo novo Centrão e pela Frente Parlamentar Evangélica à condição de presidente da Câmara, dispôs das contribuições de várias instituições financeiras. Em um único trecho, nota-se que em poucos dias ocorreram entradas que totalizaram R$ 600.000,00,  vindas de empresas dos grupos Safra, Santander e Bradesco.    




           Neste segundo bloco, logo acima dos registros de doação do Banco Pactual e (mais uma vez) do Bradesco, vemos que Cunha recebeu R$ 700.000,00 de uma mineradora sediada ... no estado de Mato Grosso do Sul!!!  





           Diante deste quadro, fica evidente a ingenuidade de quem venha a acreditar que tal tipo de parlamentar representará em Brasília fiéis pobres da Assembleia de Deus que pagam dízimos sobre o salário mínimo.  A favor de Cunha, eu alegaria somente que ele teve a coragem despudorada de admitir gastos superiores a R$ 6,8 milhões, ao contrário de "colegas" que, embora tivessem os rostos photoshopados expostos em todos os cantos do estado, e em todas as mídias, declararam ao tribunal apenas verbas de fundo partidário e contribuições irrisórias de parentes e amigos.    
               



          Passo agora às contas de Cristiane Brasil, do PTB.  Ela contou com um generoso apoio do grupo JBS/Friboi, que nos meses de julho e agosto de 2014 injetou quase R$ 2 milhões em sua campanha.   




          Entre os demais colaboradores da filha e sucessora "com méritos" do conhecido paladino da moral pequeno burguesa Roberto Jefferson, sobressai uma empresa de ônibus da Zona Oeste da cidade do Rio, que fez quatro doações oficiais no começo de outubro daquele ano.  As receitas de Cristiane ultrapassaram a barreira dos cinco milhões, o que me faz duvidar da fidelidade do clã à pequena burguesia, sobretudo nos campos em que os interesses desta se chocam com os da alta.      





         
       Rodrigo Maia, uma das figuras de proa do anêmico DEM fluminense, ganhou R$ 180.000,00 de Antônio José de Almeida Carneiro, por alcunha o Bode, conselheiro da empresa João Fortes Engenharia e ex-sócio do banqueiro Ronaldo Cezar Coelho.  Uma parte das peripécias de Almeida Carneiro é descrita nesta página:





       Entre as demais verbas de campanha do filho de César Maia, estiveram os donativos de duas imobiliárias.  Além da firma Austrália, que forneceu R$ 75.000,00, a Ribeira "investiu" R$ 138.000,00.  Pouco acima, consta também um "discreto incentivo" do banco Itaú. 



           
      O angelical "defensor da família" Arolde de Oliveira, por sua vez, parece ser um dos queridinhos das empreiteiras.  As empresas Carvalho Hosken e Christiani Nielsen favoreceram sua reeleição com quase meio milhão de reais.   




          Arolde, porém, foi superado no mesmo quesito por Índio da Costa, o deputado que, nos seus próprios termos, "não tem rabo preso com ninguém".  Os gestores da Queiroz Galvão, da Carvalho Hosken e da Christiani Nielsen acreditaram tanto em seu discurso que robusteceram o caixa eleitoral, em julho e agosto de 2014, com um total de R$ 694.000,00.  




Í



           Talvez algum leitor mais assíduo se espante por eu ter chegado até aqui sem falar de direitas ou de reacionarismo.  A razão é simples: muitos dos eleitos pelas legendas classificadas como de esquerda ostentam o mesmo padrão de financiamento de tucanos, peemedebistas, demos e pepistas.  São os "socialistas" e "trabalhistas", se é que ainda pretendem se enquadrar em tais categorias, das linhas de François Hollande, Felipe González ou Tony/Tory Blair; sem, é óbvio, a projeção dos originais.  Progressistas meramente retóricos que, por força dos compromissos com o empresariado, jamais assumirão posturas que possam arranhar de leve a ordem macroeconômica. 
          Isto não deve ser motivo para desânimo.  Os processos de cooptação, sejam quais forem os nomes que receberam ao longo da História, já eram velhos na época em que três aliados do chefe lusitano Viriato entregaram sua cabeça aos oficiais do exército romano.  Precisamos, ao contrário, reconstituir a representação parlamentar da esquerda em outras bases, concentrando votos, apoios e recursos nos militantes mais comprometidos e varrendo para a vala comum do fisiologismo, onde se entenderão às mil maravilhas com os donos das legendas de aluguel, os que já tomaram gosto pelas mordomias e pelos jabaculês.  Aliás, eles nem precisam ser varridos: ao impulso dos primeiros reveses completam espontaneamente suas "conversões" ao deus Mercado e ao conservadorismo.              
                        












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