segunda-feira, 27 de junho de 2016

Havia mais segurança? Considerações sobre o mito preferido dos bolsonaretes



               
        Entre os principais argumentos falaciosos dos saudosistas da ditadura civil-militar de 1964, e de seus netos ideológicos, defensores de uma tal "intervenção militar-constitucional", figura a noção de que "naquele tempo havia segurança".  Repetindo a balela à exaustão, a extrema-direita militante tenta convencer o cidadão médio, apavorado pela violência urbana, de que o retorno a um regime de exceção, ou a eleição de um presidente que viesse a resgatar as bandeiras do antigo golpe, conteria a escalada da criminalidade.  Parte dela atribui culpa pelo conjunto de todas as mortes violentas ocorridas no país desde 2003 a uma única entidade seguidamente demonizada, o Partido dos Trabalhadores (PT).  Outros segmentos, mais ousados, concebem um inimigo maior a ser combatido, a Nova República, responsável pela contínua destruição das presumidas conquistas dos presidentes fardados há mais de trinta anos. 
        Embora a manipulação seja evidente e quiçá ridícula, não é suficiente combatê-la com retórica de sinal trocado.  Precisamos acessar e interpretar as fontes disponíveis sobre o tema, que, diga-se de passagem, não são das mais abundantes ou das mais divulgadas. Recorrendo ao documento intitulado Mortes matadas por armas de fogo (http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf), de autoria de Julio Jacobo Waiselfisz, podemos constatar que somente a partir de 1979 o governo brasileiro passou a ventilar dados globais sobre mortalidade (ver p. 13), nisto incluídos os homicídios em geral.  






            Daquele estudo (ver p. 22) consta um gráfico geral sobre as mortes provocadas pelo uso de armas de fogo contabilizadas no Brasil entre os anos de 1980 e 2012.  Assim, temos como único parâmetro do período ditatorial os anos da presidência de João Baptista de Oliveira Figueiredo, que governou de 15 de março de 1979 a 15 de março de 1985.  Ainda que se considere que a população brasileira, segundo o censo de 1980, era pouco superior a 121 milhões (http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=8&uf=00), os 8.710 óbitos de tal natureza verificados em 1980 sugerem, à primeira vista, uma realidade paradisíaca se comparada à contemporânea.  
        Basta, entretanto, um mínimo de capacidade de observação para perceber que a política de segurança pública rumava para o colapso.  Entre 1980 e 1985, o número de mortes por tiro subiu até atingir o total de 13.488, o que significa um crescimento de 54,85%.  É certo que no último ano também estão computados os acidentes com armas de fogo, suicídios e homicídios dos primeiros nove meses e meio da gestão de José Sarney, mas a sequência não deixa dúvidas de que, apesar de sua brutalidade e das amplas possibilidades de acobertamento dos excessos de seus agentes, a ditadura foi incapaz, na primeira metade da década de 80, de lidar com a escalada da violência letal. 
   
    



        Nota-se, em particular, verdadeiro salto entre 1982 e 1983: o aumento foi de 19,73%.  Para provável irritação dos que teimam em proclamar, contra todas as evidências, que o cometimento de crimes deriva da mera opção individual entre ser bonzinho ou ruinzinho, nada tendo a ver com a economia, exponho uma descrição daquela conjuntura, feita pelo historiador Thomas Skidmore:           

O PIB caiu 5,0 por cento em 1983, o pior desempenho desde a criação da contabilidade da renda nacional.  A indústria foi fortemente atingida caindo 7,9 por cento, enquanto o declínio do comércio foi de 4,4 por cento.  Contrariando esta tendência, a agricultura cresceu 2,1 por cento, devido principalmente ao café e a outros produtos de exportação.  A queda global de 5 por cento do PIB traduziu-se em um declínio de 7,3 por cento da renda per capita.  A indústria de bens de capital foi a principal vítima da desaceleração da economia.  Sua produção caiu 23 por cento em 1983, o quarto ano consecutivo de queda.  Os seus melhores clientes, as empresas estatais, foram obrigados a reduzir seus orçamentos como parte do programa de estabilização imposto pelo FMI¹. 



          A tendência de alta prosseguiu sem alterações na presidência de Sarney (15 de março de 1985 a 15 de março de 1990), que absorveu diretamente o legado da ditadura, além, é claro, de muitos dos quadros políticos e da lógica institucional do regime recém-extinto. Entre 1985 e 1990, as mortes decorrentes do uso de armas de fogo se ampliaram em mais 52,83%. 




            Percebe-se, por outro lado, uma desaceleração na gestão de FHC (1º de janeiro de 1995 a 1º de janeiro de 2003), na qual houve, apesar da orientação privatizante e elitista do governo, certa expansão dos programas sociais.  As 37.979 mortes de 2002 representam um acréscimo de 41,90% sobre a cifra de 26.764 assinalada em 1995.   




           Os 38.892 óbitos por armas de fogo de 2010, no final do governo Lula, somavam 1,11% a menos, contra os 39.325 de 2003, quando teve início a administração petista.  Não havia, claro, nenhuma razão para comemorações, mas é inevitável associar a relativa estagnação do processo às políticas sociais em vigor. A não ser, talvez, que tenhamos à disposição publicistas conservadores prontos a dizer que o lulismo deu impulso a um movimento de transformação moral positiva dos brasileiros. 
  



          Já no governo Dilma, após o primeiro ano "estacionário", com variação muito pequena para baixo, aconteceu em 2012 uma subida de 9,47% cento.  O quadro geral do biênio (aumento de 9,06%), porém, se revela bem menos desastroso caso o comparemos com os panoramas das "eras" Figueiredo e Sarney.    
  



             
        O projeto da extrema-direita, hoje centrado na promoção de uma eventual candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República, ainda que possa ser redefinido em outras direções, não tem em perspectiva a desarticulação do crime organizado, tarefa impossível de se realizar na vigência do capitalismo oligárquico.  Ao invés disto, reforça uma legitimação, muito tradicional em nossa sociedade, da violência exercida "de cima para baixo", que se traduz em licença para o extermínio; para o assassinato em massa de pobres, negros, índios, mendigos, pacientes psiquiátricos, prostitutas, gays, moradores de favelas e bairros periféricos dos grandes centros, integrantes de movimentos sociais em geral e outras minorias e maiorias, por policiais civis ou militares, milicianos, seguranças legalizados ou jagunços.  
       Poucas pessoas são tão ingênuas a ponto de crer que este genocídio traria mais segurança ao "homem de bem" pequeno burguês, ou que sufocaria o crime.  Qualquer um que conheça de perto, ou de dentro, comunidades controladas pelo tráfico de drogas e outras atividades criminosas sabe que ali predomina, do maior ao menor escalão, a política do "rei morto, rei posto".  Cada "soldado" que morre é prontamente substituído pelo irmão mais novo, que em regra pretendia fazer outra coisa da vida, por um primo, ou pelo chamado "fiel", que antes apenas escondia armas e entorpecentes para o "titular" do cargo.  Não sem motivo, muitos policiais já descreveram seu cotidiano profissional como o cumprimento de uma ordem permanente para enxugar gelo. 
         Portanto, a matança, adornada pelo título de "política de tolerância zero" ou algo de sentido equivalente, serviria somente para realimentar ad infinitum a mobilização eleitoral fascista, ao custo de perpetuar índices absurdos de violência e de consolidar, para os observadores externos, a imagem de um país de selvagens.  Por estas e muitas outras boas razões, os bolsonaretes precisam ser desmistificados e derrotados.  Mãos à obra. Continuem compartilhando.                 
                

Nota: 

1- Brasil: de Castelo a Tancredo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 461.

3 comentários:

  1. Gustavo, você tem algum parentesco com o cantor Roger Moreira?

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    1. É o tipo de pergunta que eu responderia, na maioria dos casos, com um "até onde eu sei, não". Mas, nesse caso, prefiro dizer um nãããão rotundo!

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