Publico, rompendo brevemente um longo "período de hibernação" deste blog, o texto que apresentei no último dia 13 na Universidade Estadual de Londrina.
AS
LUZES E OS PORÕES DOS TUMBEIROS: MAÇONARIA, NEGOCIANTES E TRÁFICO ATLÂNTICO NO
BRASIL JOANINO E DO PRIMEIRO REINADO
Autor: Gustavo Alves
Cardoso Moreira (Historiador-Museu Nacional/UFRJ)
Palavras-chave:
maçonaria- tráfico atlântico- escravidão
O processo de estruturação da
Maçonaria moderna remonta, segundo a historiografia especializada, ao ano de
1717, quando quatro lojas inglesas, cujos nomes correspondiam aos das tabernas onde
seus integrantes se reuniam (O Pato e a Grelha, A Coroa, A Macieira e O Copo e
as Uvas), formaram a Grande Loja de Londres.
Elas passaram a eleger um grão-mestre com autoridade sobre todos os membros. Congregando “homens de diferentes raças,
religiões e línguas”, a ordem rompeu com uma tradição medieval, ao deixar de
ser um conjunto de “velhas confrarias de pedreiros” para incorporar outros indivíduos,
não vinculados às corporações de ofício ou ao setor da construção, que ficaram
conhecidos como “maçons aceitos[i]”.
Por outro lado, os maçons londrinos preservaram
em grande parte a herança ritualística da Idade Média, transmitida, segundo
Colussi, pela “tradição oral” e por “escritos esparsos”. Este processo se desdobrou na elaboração dos Landmarks, código de conduta composto
por normas escritas e não escritas, e na Constituição de Anderson, datada de
1723, que firmou “os fundamentos jurídicos mais completos e importantes” da
instituição. Conforme a mesma autora, a
Constituição possibilitou “o início da exteriorização da Maçonaria”,
apresentada ao mundo como um espaço em que, contrastando com uma “conjuntura
histórica de intolerâncias e perseguições”, poderiam conviver homens com
variadas opiniões sobre política e religião[ii].
A Maçonaria logo estendeu sua
atuação ao continente, com o surgimento, em 1725, de uma loja em Paris. Seu crescimento
na França foi notável: no momento anterior à Revolução de 1789 havia cerca de 50
mil maçons no país, predominando “burgueses, nobres, religiosos ou militares”;
nos termos de Barata, não existia “uma cidade que não possuísse sua loja[iii]”. Em Portugal, a ordem se instalou em 1728, quando
apareceu em Lisboa uma loja de protestantes ingleses, apelidada “Loja dos
Hereges Mercantes”. Cinco anos depois,
católicos da Irlanda criaram a Casa Real dos Pedreiros Livres da Lusitânia, que
abria às quartas-feiras nos fundos de uma taverna. Ali, debatiam sobre temas científicos, promoviam
banquetes e ouviam música[iv].
Existe certa controvérsia a respeito
do início das atividades maçônicas no Brasil. Antônio do Carmo Ferreira, que
ocupou o cargo de grão-mestre do Grande Oriente Independente de Pernambuco, diz
que nos meses de março e abril de 1996 foram comemorados os duzentos anos do
Areópago de Itambé, sociedade que funcionou entre 1796 e 1801 na vila de
Itambé, localizada a 92 km de Recife. O
Areópago foi criado por Manuel de Arruda da Câmara, paraibano de Pombal que,
ordenado frade carmelita em 1783, rumou seis anos depois para Portugal para
estudar Filosofia[v]. Deixando
a Universidade de Coimbra, Câmara se mudou para Montpellier, na França, onde cursou
Medicina e se especializou em Botânica. Ali,
segundo Ferreira, teria sido iniciado em uma das várias lojas maçônicas, para
depois, no regresso à colônia, “doutrinar sua gente para o grande salto da
liberdade e da cidadania”. A ele se
reuniram, na fundação do Areópago, um irmão de sangue, também médico, chamado
Francisco, fazendeiros da família Cavalcanti de Albuquerque, dona do engenho
Suassuna, e vários padres[vi].
Por ser proibido falar sobre “ideias de
independência e democracia”, bem como pertencer à própria Maçonaria, o Areópago
nunca possuiu registro formal. Tal como
outras sociedades do mesmo gênero, seu eixo principal de ação não era a
filantropia, mas sim a “determinação de dar uma pátria aos brasileiros”. Após o fechamento do Areópago seus
integrantes se agruparam nas Academias do Suassuna e do Paraíso, reconhecidas
como lojas maçônicas em 1817, fato que para Ferreira reforça a tese de que a
sociedade fundada por Arruda da Câmara pode ser incluída na mesma categoria[vii].
Opinião diversa foi manifestada,
meio século antes, por Carlos Rizzini, do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), que em trabalho de 1946 assegurou que o Areópago de Itambé
“não seria porém uma loja, por lhe faltarem os ritos próprios, de resto
evitados por portugueses e brasileiros temerosos da implacável perseguição do
[intendente Pina] Manique[viii]”. Para Barata, “até o final do século XVIII não
existia no Brasil a Maçonaria, entendendo-se como tal uma organização
institucionalizada e com funcionamento regular nos mesmos moldes das outras
organizações maçônicas internacionais”.
Conforme o autor, que se baseia no Manifesto de José Bonifácio, de 1831,
a primeira loja brasileira, Reunião, surgiu em Niterói no ano de 1801[ix].
A loja Reunião era filiada a uma
Obediência francesa. Sobre isto, vale
destacar que os estudantes brasileiros deixaram registros, no Grande Oriente da
França, de ter criado duas lojas naquele país, uma em Montpellier, cuja
Faculdade de Medicina era “um dos focos maçônicos franceses”, e outra na cidade
próxima de Perpignan. Quando o Grande
Oriente Lusitano soube da existência da loja Reunião, em 1804, tentou sem êxito
submetê-la à sua jurisdição, mas promoveu a fundação, no Rio de Janeiro, das
lojas Constância e Filantropia. Todas
tiveram suas atividades suspensas quando o vice-rei conde do Arcos empreendeu
uma forte perseguição contra a Maçonaria, em 1806[x].
Pouco mais tarde, se formaram na
província da Bahia três oficinas maçônicas, Virtude e Razão, Humanidade e
União, que chegaram a constituir a primeira Obediência brasileira, denominada
Grande Oriente Brasileiro, cujo grão-mestre foi Antônio Carlos Ribeiro de
Andrada. O primeiro GOB também entraria
em recesso a partir de 1817, na esteira da repressão à Insurreição Pernambucana
daquele ano, que fora apoiada por Antônio Carlos. Desta maneira, somente depois de abril de
1821, com o retorno de D. João VI a Portugal, foi possível a reorganização da
Maçonaria[xi].
Antônio Carlos Ribeiro de Andrada
Os maçons do Rio de Janeiro correram
perigo durante o governo joanino. Entre
1818 e 1820, coube ao intendente-geral Paulo Fernandes Viana a tarefa de
reprimir os elementos que representassem “ameaça à estabilidade do poder
real”. Nesta categoria figuravam os
membros das lojas maçônicas, ao lado dos autores de “escritos ofensivos à
moral” e dos residentes europeus cuja conduta política fosse considerada
“suspeita”. A situação se abrandou
quando, por influência da Revolução do Porto, Fernandes Viana foi substituído
por um novo intendente. Cecília Oliveira enxerga, nos bastidores deste evento, a
atuação de setores mercantis liberais insatisfeitos com “a atuação arbitrária
da polícia contra homens de bem[xii]”.
Paulo Fernandes Viana
Segundo o escritor maçônico Arcy
Tenório D’Albuquerque, os maçons do período imediatamente anterior à
Independência, filiados ao Grande Oriente do Brasil, assumiram um papel
“vanguardeiro do movimento emancipador do Brasil”. Os candidatos a ingressar na confraria
deveriam fazer um juramento, no qual se comprometiam a “promover por todos os
modos a Independência do Brasil, a lutar por ela, a defender a sua integridade
perpétua e a sua dinastia[xiii]”. Baseada na historiografia maçônica, Eliane
Colussi vê igualmente nas lojas “o espaço principal das articulações,
negociações e decisões” que resultaram na Independência. A Maçonaria teria desempenhado o papel dos
partidos políticos, então inexistentes. Porém,
uma vez consumada a separação entre o Brasil e Portugal, numerosos maçons que
haviam adotado “posicionamentos mais radicais” se sentiram “derrotados ou
ludibriados[xiv]”.
Conforme o documento intitulado Le Régulateur du Maçon, publicado pelo
Grande Oriente da França em 1801, os pré-requisitos básicos para fazer parte da
Maçonaria eram “ter a idade de vinte e um anos, ser de condição livre e ser
senhor de sua pessoa”. Comprovadas estas
condições, o “profano” candidato à iniciação se submetia a uma fase de
“investigação ou sindicância”, que não deveria exceder a três meses, ao fim dos
quais uma assembleia dos membros da loja em questão decidia em definitivo sobre
a conveniência da admissão proposta.
Procedimentos semelhantes foram adotados no Brasil, onde o Grande
Oriente instituiu, em sessão de 8 de julho de 1822, os critérios a serem empregados
na adoção de novos membros:
“Estado- se é casado, que tratamento dá a
sua esposa e família, que educação a seus filhos; se é solteiro, que decência
de costumes. Emprego- que crédito tem no
desempenho de seus deveres civis e morais.
Política- quais são os sentimentos pela causa do Brasil e da sua
Independência. Costumes em geral- que
amor à beneficência e adesão à amizade[xv]”.
O
recrutamento maçônico no Brasil do século XIX apresentou nítidas
características elitistas. Colussi
declara, a respeito da Maçonaria gaúcha, que os dirigentes da ordem eram
majoritariamente “integrantes da elite regional, situando-se entre os
profissionais que vinham de famílias abastadas ou sendo, no mínimo, próximos a
essas[xvi]”. Barata ressalta que as lojas, em consonância
com “a sociedade colonial e escravista” em que estavam inseridas, tendiam a
excluir os indivíduos de baixo poder aquisitivo, incapazes de contribuir
financeiramente para as atividades beneficentes, de socorrer os irmãos que
passassem por dificuldades ou mesmo de pagar a joia pela filiação, fixada pelo
Grande Oriente do Brasil, em 1822, em seis mil réis[xvii].
Entre os segmentos proprietários
aptos a participar da Maçonaria no Brasil sempre estiveram os comerciantes e
negociantes. Colussi credita a implantação das lojas maçônicas no fim do
período colonial à iniciativa de “comerciantes europeus que aportaram nos
portos brasileiros, principalmente no Rio de Janeiro[xviii]”. Barata afirma, sobre a sociedade carioca do
início do século XIX, que as lojas faziam parte das formas de sociabilidade dos
negociantes, junto com as irmandades religiosas e as misericórdias. Construindo uma tabela sobre as ocupações dos
152 primeiros filiados e iniciados do Grande Oriente do Brasil, o autor apurou
que o grupo dos negociantes/comerciantes detinha uma presença relevante no
âmbito da ordem. Ligavam-se aos negócios
24 daqueles pioneiros, superados em número apenas pelos 29 funcionários
públicos. É preciso registrar que Barata
não pôde identificar as ocupações de todos os maçons listados: 61 deles, cerca
de 40% do total, constam na coluna “outros/sem informação”, o que nos permite supor
que talvez houvesse mais negociantes[xix].
A desvalorização social dos
profissionais do comércio no conjunto do império português, em parte pela
ascendência cristã-nova de muitos deles, é um tema recorrente na
historiografia. Jorge Pedreira, que
estudou a “elite mercantil lisboeta na segunda metade do século XVIII”,
constatou que os negociantes, além de terem, em geral, uma origem modesta,
costumavam se casar com as filhas de outros integrantes da categoria. Quando isto não ocorria, se uniam a mulheres
de condição considerada ainda mais baixa, como as “filhas de oficiais
mecânicos, lavradores e capitães de navio[xx]”.
Esta tendência não se reproduziu
necessariamente nos mesmos termos no Brasil. No Rio de Janeiro, a “nobreza da
terra”, que deteve hegemonia no exercício dos cargos públicos durante os
primeiros séculos após a fundação da cidade, já se sentia ameaçada, em torno de
1730, “pelo avanço dos negociantes de grosso trato, baseados na acumulação de
capital nos tratos do Atlântico Sul e nos alargamentos do trato do mercado
interno”[xxi]
(relacionados às imbricações entre a economia carioca e a mineira). Segundo
Mattos, mudanças verificadas entre o final do século XVIII e o começo do XIX,
como o rápido crescimento populacional, o translado da sede da monarquia e a
criação do Banco do Brasil (permitindo o lançamento das “bases de um
embrionário sistema monetário”) tornaram o comércio “febril” na cidade[xxii].
Antes da vinda da família real, os
negociantes da praça do Rio já tinham acumulado capitais que lhes permitiram, segundo
Alvisi, “controlar as atividades urbanas e interferir diretamente na economia”.
Eles se fizeram, em seguida, financiadores da Coroa e administradores, em troca
de honras e privilégios que lhes traziam mais vantagens nos negócios. Para assegurar
posições, se aliaram aos proprietários de terras e escravos[xxiii]. Nisto parece concordar Parron, para quem a
corte, desde a vinda para o Brasil, “aprofundou laços econômicos e políticos
com os homens de grossa aventura que, operando no Rio de Janeiro, já vinham
concedendo empréstimos ao Estado português”.
A associação entre a “elite ilustrada portuguesa” e a comunidade
mercantil, para o autor, se baseava no tripé “livre comércio, expansão do
sistema escravista e proteção do trato negreiro”. O projeto, porém, esbarrava nas objeções da
Inglaterra, que aboliu o tráfico em seu império no biênio 1807-1808[xxiv].
Segundo Pedro Campos, os negociantes
da praça do Rio “se organizaram e se aproximaram do aparelho de Estado mais
ainda do que os mineiros”. Quando
decidiram estruturar um Corpo de Comércio e construir sua sede, foram
beneficiados com a doação de um terreno pelo próprio rei, que compareceu à
inauguração do prédio, em 1820. Por
outro lado, em 1816, os sete principais membros do mencionado Corpo ofertaram à
Coroa capitais que deveriam ser investidos na área educacional. Isto resultou na criação do Instituto
Acadêmico e do Instituto de Belas Artes[xxv].
Desde o século XVIII, o tráfico
negreiro constituía um dos principais ramos de negócios no Rio de Janeiro. Quando, instruído pela Coroa, o vice-rei
conde de Resende compôs uma listagem dos 36 homens mais ricos da praça carioca,
com o fim de angariar capitais para o desenvolvimento agrícola, relacionou
entre aqueles sete indivíduos que Manolo Florentino reconheceria, quase
duzentos anos depois, como senhores de “fortunas direta ou indiretamente
envolvidas com o comércio de almas depois de 1811”. Este dado, para Florentino, é indício da
“confluência entre a elite mercantil e o topo da hierarquia traficante[xxvi]”. Deve-se destacar que nesse período a imagem
pública dos traficantes ainda não sofrera o desgaste registrado a partir da
primeira proibição da atividade. Segundo
Jaime Rodrigues, eles gozavam de bom conceito, pois para a sociedade era o
tráfico que permitia a “multiplicação da riqueza[xxvii]”.
A partir deste conjunto de
informações, concebi a hipótese de que não existiriam entraves significativos
para a entrada nas lojas maçônicas de homens com os mais variados graus de
envolvimento no tráfico. Confrontei,
então, uma “lista dos membros da Maçonaria Fluminense (1821-1822)[xxviii]”
com a “listagem dos traficantes de escravos entre a África e o porto do Rio de
Janeiro, atuantes entre 1811 e 1830”, organizada por Manolo Florentino[xxix]. Houve cinco coincidências, expressas nos
nomes de Amaro Velho da Silva, Antônio Gomes Barroso, João Militão Henriques,
João Rodrigues Ribas e Joaquim José de Siqueira. Velho, Barroso e Ribas integravam a loja
Comércio e Artes, Henriques pertencia à União e Tranquilidade e Siqueira à
Esperança de Niterói.
Amaro Velho da Silva não deve ser
confundido com o tio homônimo, também traficante. Ambos, de acordo com a Gazeta do Rio de Janeiro de 18 de outubro de 1809, figuraram como
doadores de elevadas quantias em uma Relação
das pessoas que têm concorrido efetivamente para socorro dos vassalos de Sua
Alteza Real residentes em Portugal, desde o 1º até 5 de outubro de 1808. Velho da Silva Sobrinho teria ofertado um
conto de réis, e seu tio oitocentos mil réis. Cerca de dois anos mais tarde, em
16 de outubro de 1811, o mesmo periódico anunciou a venda em hasta pública de
metade do bergantim Nossa Senhora da Penha, embarcação pertencente ao “finado Amaro Velho da Silva”. Ainda conforme a Gazeta, na edição de 8 de fevereiro de 1812, Manuel e Amaro Velho
da Silva, “administradores da casa do finado Amaro Velho da Silva”, se
preparavam para vender outro bem do espólio, o navio Lusitânia.
Segundo Florentino, a família Velho
esteve incluída no grupo das dezessete maiores empresas traficantes da praça do
Rio entre 1811 e 1830, sendo responsável por dezoito expedições ao continente
negro, a última delas em 1822. Treze se
dirigiram a Cabinda, na África Centro-Ocidental[xxx]. A Gazeta
do Rio de Janeiro de 23 de maio de 1812 indica que a galera Flor do Rio, capitaneada pelo mestre
Francisco Correa Garcia, desembarcara 467 escravos endereçados a Amaro Velho da
Silva, dos quais dois tinham morrido na viagem.
Encontrei em outras três notas da Gazeta
novas remessas de cativos ao mesmo destinatário, embora nenhuma delas cite as
quantidades: em 28 de setembro de 1816, consta a chegada da galera Maria Tomásia, que retornava de Cabinda;
em 15 de dezembro de 1819, foi publicado que a galera Lusitânia trouxera negros de Angola (aqui, uma provável alusão ao
porto de Luanda); em 26 de fevereiro de 1822, correu que, também de Angola,
viera o mencionado navio Maria Tomásia.
Através de outros anúncios pude perceber
que Amaro Velho, acompanhando o modus
operandi típico dos negociantes do Rio, atuava como importador de uma gama
muito diversificada de produtos: madeira, açúcar, aguardente, sal, fazendas da
Índia, cera, marfim e azeite. Ele
detinha, entre os integrantes da categoria, prestígio acima da média, pois já
em 1816 foi escolhido pelo Corpo do Comércio para fazer parte da comissão de
“notáveis” que, em nome do setor, rendeu graças a D. João pela elevação do
Brasil a Reino Unido[xxxi]. Bem antes da Independência, se mostrava
politicamente ativo, concorrendo com seus capitais para a construção da sede do
Senado da Câmara da Corte e para a organização de um “corpo de pretos”
denominado Libertos D’El Rei[xxxii].
Consta da edição número 9 do Boletim do
Grande Oriente do Brasil[xxxiii],
impressa em setembro de 1875, a informação de que quando o “irmão Guatimozim”
(D. Pedro I) retornou de São Paulo para o Rio, após a proclamação da
Independência, recebeu felicitações de uma deputação maçônica, na qual esteve
Amaro Velho da Silva. Este foi
acompanhado por João Martins Lourenço Viana, mencionado como “irmão”, que
também aparece na lista de Florentino.
Antônio
Gomes Barroso (1740-1825) também foi um notório traficante, que ao longo da
carreira acumulou diversas honrarias: comendador da Ordem de Cristo, fidalgo
cavaleiro da Casa Imperial, coronel das Milícias da Corte e alcaide mor da Vila
de Itaguaí[xxxiv]. A família Gomes Barroso, no período
compreendido entre 1811 e 1830, patrocinou 45 expedições à África, das quais 34
rumo ao porto de Cabinda. Nelas adquiriu,
conforme Florentino, 6.761 escravos somente nas 16 viagens com registros de
mortalidade[xxxv]. Não localizei dados sobre a atuação maçônica
de Antônio Gomes Barroso, o que talvez se explique pelo ingresso na instituição
em idade muito avançada.
João Militão Henriques, ao contrário
dos anteriores, foi figura de menor projeção nos negócios, e no tráfico em
particular. Apurei, por diversos números da Gazeta,
que costumava trabalhar como mestre de navios.
Segundo o registro de entradas no porto do Rio publicado em 29 de
novembro de 1821, ele retornava de uma viagem de sessenta dias a Quelimane, no
Índico, trazendo cativos consignados a Joaquim Pires Farinha. À primeira vista, não alcançou posição
eminente na Maçonaria, mas é possível confirmar, pela consulta ao Boletim do Grande Oriente do Brasil de
março de 1875, que pertenceu aos quadros da loja União e Tranquilidade.
João
Rodrigues Ribas, que residia na Rua da Quitanda, centro do Rio de Janeiro[xxxvi],
era um indivíduo envolvido no comércio de cabotagem entre as províncias
brasileiras; especialmente, ao que tudo indica, no transporte de mercadorias do
Rio Grande do Sul para a Corte. Podemos
vê-lo, por exemplo, recebendo trigo, couros e sebo procedentes do porto de Rio
Grande, como consta da seção comercial da Gazeta
do Rio de Janeiro de 26 de junho de 1819.
O mesmo periódico, na edição publicada em 24 de junho de 1818, ratifica
sua associação com o tráfico: naquela semana, o navio Príncipe Real, vindo de Cabinda sob o comando do mestre Inácio
Alves Marta, desembarcara uma carga de escravos endereçada a João Rodrigues
Ribas.
Pela leitura do Boletim do Grande Oriente do Brasil de agosto de 1875 se nota que
João Rodrigues Ribas e um provável irmão, Domingos Rodrigues Ribas, seguiam
dentro da Maçonaria a orientação de um tio, Francisco Xavier Teixeira. Este, quando os maçons decidiram dar “impulso
à opinião pública” para promover a aclamação de D. Pedro como defensor perpétuo
do Brasil, ofereceu 100 mil réis como contribuição para as despesas
necessárias. Declarando-se velho para
tal missão, Xavier Teixeira indicou como emissários que poderiam ser
encaminhados a Santa Catarina os dois Ribas.
Constatei,
por fim, que no período joanino Joaquim José de Siqueira era um súdito ativo no
comércio de cabotagem. Exemplares da Gazeta do Rio de Janeiro mostram que
recebia vários tipos de carga, na maioria das vezes “casca de mangue”, mas
também aguardente, açúcar, café, farinha, tabaco e milho, de portos como
Santos, Caravelas, Mangaratiba e Guaratiba.
Segundo a edição de 13 de maio de 1812, recebeu um escravo vindo de
Caravelas. A julgar pelos dados
disponíveis, não teve grande vulto como traficante. Dispôs, porém, de projeção entre seus pares,
e foi sem dúvida homem de amplos recursos.
Conforme a Gazeta de 17 de
maio de 1817, contribuiu com dois contos de réis para subscrições administradas
por Fernando Carneiro Leão e Amaro Velho da Silva. Segundo as edições de 13 de agosto e 15 de
outubro daquele ano, ofereceu ainda duzentos mil réis para a construção da nova
casa do Senado da Corte, e a mesma quantia para o corpo dos Libertos D’El Rei. Não há no site dos periódicos da BN mais
indícios de seus laços com a Maçonaria, mas um texto do escritor maçônico José
Castellani confirma Siqueira como membro da Loja Esperança de Niterói[xxxvii].
Os
nexos entre a Maçonaria e o tráfico ultrapassaram a esfera dos negócios.
Durante a década de 1820, e mesmo antes, maçons defenderam na tribuna e em
obras doutrinárias a legitimidade da escravidão e da importação de cativos. O bispo Azeredo Coutinho, falecido dois dias
após sua posse nas Cortes de Lisboa[xxxviii],
foi mencionado no Boletim do Grande
Oriente do Brasil de junho de 1873 como um dos “nomes ilustres para abrilhantar
a Maçonaria do Brasil”. Ele via, como
outros homens da época, a situação dos escravos como melhor do que a dos livres
sem posses, e advogou, em escritos do início do século XIX, pela continuidade
das relações escravistas. Julgava que apenas
quando contasse com uma “população correspondente a seu território”, além de
condições econômicas mais favoráveis, o Brasil poderia abolir o tráfico
negreiro[xxxix].
Outro eclesiástico, monsenhor Muniz
Tavares, figurou, conforme o Boletim do
Grande Oriente do Brasil de setembro de 1895, entre os diretores das
oficinas maçônicas de Pernambuco. Consta
da edição relativa aos meses de novembro e dezembro de 1897 a seguinte máxima,
a ele atribuída: “A Maçonaria foi em todos os tempos a maior propugnadora dos
direitos do homem. Por isso mesmo caminhou sempre de acordo com a igreja de
Jesus Cristo”. Membro da Constituinte de
1823, Muniz Tavares se alinhou aos parlamentares contrários às discussões sobre
escravidão, cidadania dos libertos ou quaisquer mudanças no sistema. Para ele, debates deste gênero ocorridos na
assembleia francesa haviam provocado a revolução haitiana. O monsenhor reprovava o excesso de compaixão
de alguns de seus colegas diante de uma “pobre raça de homens, que tão
infelizes são só porque a natureza os criou tostados[xl]”.
José Clemente Pereira (1787-1854),
que chegou a ocupar os postos de conselheiro de Estado e presidente do Tribunal
do Comércio, atuou como deputado na legislatura de 1826 a 1829 pela província
do Rio[xli]. Maçom, ingressou em 1822 na loja União e
Tranquilidade[xlii],
e segundo o Boletim do Grande Oriente do
Brasil de julho de 1874, no qual foi louvado por conceber a construção de
um hospício para alienados, alcançou na ordem o cargo de Grão-Mestre Adjunto.
Como membro da Assembleia, Clemente Pereira lutou para
que as pressões britânicas pelo fim do tráfico não resultassem na liquidação
imediata daquela atividade. Ele
apresentou um projeto, em 19 de maio de 1826, pelo qual somente em 1841 seria
proibida a introdução de africanos no país. Mesmo assim, de acordo com seu
texto o tráfico não era equiparado à pirataria, e os cativos apreendidos constariam
como libertos (não simplesmente livres), o que para Tâmis Parron sugere o
reconhecimento ideológico “das práticas de escravização no continente africano[xliii]”.
Ainda em 1826, se uniu a outros deputados, como Vergueiro e Paula Sousa,
representantes de São Paulo, que combateram o tratado antitráfico negociado com
a Inglaterra sob o pretexto de que, naquele tema, o Executivo passara por cima
do Legislativo. Clemente Pereira chegou
a dizer que o tratado feria os “interesses da nação, a sua honra e dignidade,
soberania e independência[xliv]”.
José Clemente Pereira
Segundo Vieira, o pernambucano
Domingos Alves Branco Muniz Barreto foi um dos “homens de importância na corte”
que reinstalaram a loja Comércio e Artes em 1821[xlv]. Quatro anos antes, na Bahia, ele compôs uma
“Memória”, publicada em 1837 pelos defensores do tráfico. Conforme Muniz Barreto, a atividade era
“lícita” por não depender de pirataria, e sim de entendimentos com os “potentados
africanos”. Tais acordos evitavam a
“imensa mortandade” de prisioneiros de guerra e traziam o benefício de incluir
“gentios no centro do cristianismo e da verdadeira religião[xlvi]”.
O cônego Januário da Cunha Barbosa
também foi maçom. A este respeito, o Boletim do Grande Oriente do Brasil de
setembro de 1874 revela que “sua morte foi uma perda assaz sensível para a
Maçonaria, cujo lugar entre as colunas deixou eternamente vago”. Secretário-geral
do IHGB, participou na década de 1830 de discussões sobre a relação entre a
escravidão negra e o presumido atraso na “civilização dos índios”. Estudioso da presença jesuítica no Brasil e
dos escritos de Manuel da Nóbrega, que se queixava da introdução de africanos
na colônia, Barbosa acompanhava o dirigente jesuíta na percepção de que a
escravidão era um “cancro”. Não
vislumbrava, todavia, sua extinção; pelo contrário: assinalou que ela “não
poderia ser extirpada de maneira tão simples como a autonomia jesuítica e nem
por meio de uma lei[xlvii]”.
Januário da Cunha Barbosa
Considerações finais:
Os
dados empíricos levantados ratificaram minha hipótese inicial. O ingresso na Maçonaria era plenamente viável
tanto para os principais protagonistas do tráfico quanto para os participantes
menos notórios daquele comércio, desde que razoavelmente prósperos, pelo
menos. Também no terreno das ideias não
se verificava contradição significativa entre o pertencimento aos quadros
maçônicos e a defesa do tráfico. Não
obstante o reconhecimento de problemas humanitários relacionados às condições
de vida dos cativos, para diversos intelectuais maçons este tipo de discussão poderia
ser inconveniente na esfera pública, e, se inevitável, deveria sempre estar
subordinado aos interesses políticos e econômicos das classes dominantes.
[i] Ver Alexandre Mansur
Barata. Luzes e sombras: a ação da
Maçonaria Brasileira (1870-1910).
Campinas: Editora da Unicamp, Centro de Memória-Unicamp, 1999, p. 29.
[ii] Ver Eliane Lucia
Colussi. A Maçonaria gaúcha no século
XIX. Passo Fundo: Ediupf, 1998, p. 34-35.
[iii] Cf. Alexandre Mansur
Barata. Luzes e sombras: a ação da
Maçonaria Brasileira (1870-1910).
Op. cit, p. 31-32.
[iv] Idem, p. 56.
[v] Ver Antônio do Carmo
Ferreira. O Areópago de Itambé: A Maçonaria
Revolucionária no Brasil. Londrina: A Trolha, 2001, p. 11, 24, 29 e 39.
[vi] Idem, p. 29-30.
[vii] Ibidem, p. 24.
[viii] Apud Eliane Lucia
Colussi. A Maçonaria gaúcha no século
XIX. Op. cit., p. 85.
[ix] Ver Alexandre Mansur
Barata. Luzes e sombras: a ação da Maçonaria Brasileira (1870-1910). Op. cit., p. 59.
[x] Idem, p. 59/60.
[xi] Ibidem, p. 60-61.
[xii] Ver Cecília Helena de
Salles Oliveira. Sociedade e projetos
políticos na província do Rio de Janeiro.
In: Independência: História e Historiografia/org. István Jancsó. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p. 509-510.
[xiii] Ver Arcy Tenório
D’Albuquerque. A Maçonaria e a
Independência do Brasil. Rio de
Janeiro: Editora Espiritualista, s/d., p. 137.
[xiv] Cf. Eliane Lucia
Colussi. A Maçonaria gaúcha no século
XIX. Op. cit. p. 89.
[xv] Ver Alexandre Mansur
Barata. Sociabilidade maçônica e
Independência do Brasil. In:
Independência: História e Historiografia/org. István Jancsó. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005, p. 680-681.
[xvi] Ver Eliane Lucia
Colussi. A Maçonaria gaúcha no século
XIX. Op. cit. p. 303.
[xvii] Ver Alexandre Mansur
Barata. Sociabilidade maçônica e
Independência do Brasil. Op. cit., p. 687.
[xviii] Ver Eliane Lucia
Colussi. A Maçonaria gaúcha no século
XIX. Op. cit. p. 91.
[xix] Ver Alexandre Mansur
Barata. Sociabilidade maçônica e
Independência do Brasil. Op. cit., p. 686-687.
[xx] Apud Antonio Carlos
Jucá de Sampaio. Famílias e negócios:
a formação da comunidade mercantil carioca na primeira metade do setecentos. In: Conquistadores e negociantes; Histórias
de elites no Antigo Regime nos trópicos, América lusa, Séculos XVI a
XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, p. 250.
[xxi] Ver João Fragoso. Nobreza principal da terra nas repúblicas
de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira: Rio de Janeiro,
séculos XVII a meados do século XVIII.
In: O Brasil Colonial, volume 3 (ca. 1720- ca. 1821). Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2014,
p. 173.
[xxii] Ver Ilmar Rohloff de
Mattos. O Tempo Saquarema: a formação
do Estado imperial. São Paulo:
Hucitec, 1990, p. 50-51.
[xxiii] Cf. Marcos
Alvisi. Magistrados e Negociantes na
corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio. Rio de Janeiro: Jurídica do Rio de Janeiro:
FAPERJ, 2008, p. 47.
[xxiv] Ver Tâmis Parron. A política da escravidão no Império do
Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, p. 47-48.
[xxv] Cf. Pedro Henrique
Pedreira Campos. Nos caminhos da
acumulação: Negócios e poder no abastecimento de carnes verdes para a cidade do
Rio de Janeiro (1808-1835). São
Paulo: Alameda, 2010, 101-102.
[xxvi] Ver Manolo
Florentino. Em costas negras: uma história
do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro; séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.
183-184.
[xxvii] Ver Jaime
Rodrigues. O infame comércio:
propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1808-1850). Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2000,
p. 127.
[xxviii] Encontrada em Maria
Elisabete Vieira. O envolvimento da
Maçonaria Fluminense no processo de emancipação do Reino do Brasil (1820-1822)
(Dissertação de Mestrado). Porto Alegre:
UFRGS, 2001, Anexo 3. Disponível
em http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/21840/000339269.pdf?...0.
[xxix] Ver Manolo
Florentino. Em costas negras: uma
história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro; séculos
XVIII e XIX. Op. cit., p. 254 a 256.
[xxxi] Ver Gazeta do Rio de Janeiro, 3 de
abril de 1816.
[xxxii] Idem, edições de 13 de agosto de 1817 e 15 de
outubro de 1817.
[xxxiv] Ver João Fragoso. Homens de grossa aventura: acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998,
p. 353.
[xxxv] Cf. Manolo Florentino. Em costas negras: uma história do tráfico
de escravos entre a África e o Rio de Janeiro; séculos XVIII e XIX. Op. cit., p. 242-244.
[xxxvi] Ver Diário
do Rio de Janeiro, 21 de junho de 1824, p. 4.
[xxxvii] Ver https://bibliot3ca.wordpress.com/historia-do-gob/,
consultado em 19 de outubro de 2016.
[xxxviii] Ver Octaciano Nogueira
e João Sereno Firmo. Parlamentares do
Império. Brasília: Centro Gráfico do
Senado Federal, 1973, p. 151-152.
[xxxix] Cf. Jaime
Rodrigues. O infame comércio:
propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil
(1808-1850). Op. cit., p. 71-72.
[xl] Idem, p. 52-53.
[xli] Cf. Octaciano Nogueira
e João Sereno Firmo. Parlamentares do
Império. Op. cit., p. 332-333.
[xlii] Maria Elisabete
Vieira. O envolvimento da maçonaria
fluminense no processo de emancipação do reino do Brasil (1820-1822)
(dissertação de mestrado). Op. cit., p. 104.
[xliii] Cf. Ver Tâmis
Parron. A política da escravidão no
Império do Brasil, 1826-1865. Op.
cit., p. 63.
[xliv] Idem, p. 74 a 76.
[xlv] Maria Elisabete
Vieira. O envolvimento da maçonaria
fluminense no processo de emancipação do reino do Brasil (1820-1822)
(dissertação de mestrado). Op. cit., p.
48-49.
[xlvi] Cf. Jaime
Rodrigues. O infame comércio:
propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil
(1808-1850). Op. cit., p. 74-75.
[xlvii] Apud Jaime Rodrigues. O
infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para
o Brasil (1808-1850). Op. cit., p.
45-46.