terça-feira, 5 de agosto de 2014

Ainda sobre a Palestina: desconstruindo outras mentiras de Joseph Katz


 
         
         Retorno à crítica, iniciada ontem, de um texto de Joseph Katz, reproduzido no site de Matheus Zandona Guimarães, repleto de fraudes e distorções sobre a História da Palestina:

http://ensinandodesiao.org.br/artigos-e-estudos/historia-e-significado-de-palestina-e-palestinos/

          Fazendo uso de argumentos falaciosos, Katz pretende induzir o leitor a acreditar não apenas que toda a Palestina sob mandato britânico estaria destinada à construção de um Estado judeu, como também a vizinha Jordânia.  A instauração de um Israel ampliado, desta maneira, teria sido inviabilizada somente pela perversidade do colonialismo inglês.       

A Declaração Balfour, de 1917, confirmada pela Liga (ou Sociedade) das Nações, comprometeu o governo britânico aos princípios que “o governo de vossa majestade vê com favor o estabelecimento, na Palestina, de um Lar Nacional Judaico, e fará uso de seus melhores recursos para facilitar a materialização deste objeto (…)”. Ficou então determinado o controle britânico sobre toda a região e que a área seria aberta à criação de assentamentos judaicos. Também determinou-se que os direitos de todos os seus habitantes (já residentes na região) seriam preservados e protegidos. O Mandato Britânico na Palestina originalmente incluía tudo o que é hoje a Jordânia, bem como o que hoje é Israel e os territórios entre eles. No entanto, quando o “protégé” britânico Emir Abdullah foi forçado a abandonar seu domínio hashmaíta na Arábia, os britânicos criaram para ele uma região alternativa para seu reino, localizada ao leste do rio Jordão. Não havia nenhum nome árabe para a região, assim os ingleses a chamaram de “além do Jordão”, ou “Trans-Jordânia”; posteriormente apenas “Jordânia”. Com esta manobra política, que violava todas as regras estipuladas pela Declaração Balfour e pelo Mandato Britânico, os ingleses retiraram 75% da região destinada a ser o “Lar dos Judeus”, como havia declarado a rainha. Não foi permitido que nenhum judeu habitasse na região da Trans-Jordânia (ou Jordânia). Menos de 25% permaneceu da Palestina original do Mandato Britânico, destinado aos “assentamentos judaicos” prometidos pelos ingleses. Além disso, eles restringiram a imigração judaica na região e impuseram restrições quanto ao local onde os judeus poderiam trabalhar, viver, construir ou plantar. Na verdade, as regiões mais deploráveis da então Palestina britânica foram destinadas aos judeus, como os pântanos da Galiléia e as regiões infestadas de malária como Jafa e Tel-Aviv.
           Entretanto, Alan Palmer, em sua obra sobre a decadência do poderio turco, deixa evidente que  a ideia da unidade entre as terras situadas a leste e oeste do Jordão após a Primeira Guerra é falsa, visto que nem mesmo o controle inglês sobre ambas as partes foi determinado na mesma ocasião.   

Quando a Liga [das Nações] começou a funcionar, o Iraque, a Palestina e, mais tarde, a Transjordânia se tornaram mandatos ingleses, enquanto após renhida discussão entre Paris e Londres, a França recebeu o mandato da Síria e do Líbano¹. 

           Outro especialista na História do Oriente Médio, mencionado em meu artigo anterior, reforça a ideia de que a margem leste do Jordão não estava incluída no plano de criação do Estado judeu:
Ao sul da área do mandato francês, na Palestina e na terra a oeste dela, a Grã-Bretanha manteve o mandato.  Devido à obrigação assumida na Declaração Balfour e repetida no mandato, de facilitar a criação de um lar nacional judeu, os britânicos governavam a Palestina diretamente; mas a leste dela, estabeleceu-se um Principado da Transjordânia, governado por outro filho de Husayn, 'Abdullah (1921-51), sob mandato britânico mas sem obrigação em relação à criação do lar nacional judeu². 

        O repertório de balelas de Joseph Katz parece não conhecer limites: em um breve trecho, ele expõe duas teses no estilo que alguns reacionários gostam de rotular como "vitimismo":        
Em 1939, os ingleses decidem proibir toda imigração Judaica para a “Palestina”, algo que era constante desde o século XVIII na região. Esta proibição foi feita no momento em que os Judeus mais precisariam, uma vez que o Nazismo estava fortemente se estabelecendo na Europa e milhões de judeus estavam sendo perseguidos. Milhares que conseguiam escapar dos campos de concentração e tentaram ir para Israel, foram mandados de volta para o inferno, novamente para as câmaras de gás na Europa.
         A primeira sentença, tecnicamente falando, é  uma completa mentira: o rabino Dan Cohn-Sherbok, cuja obra também citei na matéria anterior, revela que, apesar da imposição de certas restrições, a administração britânica não suspendeu a imigração judaica para a Palestina; ao invés disto, foram estabelecidas cotas bastante significativas, se considerada a população total da região naquela época:    

Em 17 de março de 1939, dois dias depois de Hitler ocupar Praga, a conferência terminou sem que houvesse acordo entre as várias partes.  Em maio de 1939, um outro Documento Branco foi publicado, o qual designava as regras da separação e da criação de um Estado judaico.  Todavia, ele decretava que um Estado palestino seria criado em dez anos e que após cinco anos a imigração judaica não seria mais permitida, a não ser que os árabes palestinos aprovassem.  Apesar dessa tendência antijudaica, o Documento Branco permitia que mais 75 mil judeus se estabelecessem na Palestina durante o período de cinco anos e que a independência de um Estado palestino dependia de salvaguardas para a comunidade judaica³. 

            Mais deplorável ainda é o intuito de utilizar o Holocausto como apelo emocional para reforçar as razões que lhe faltam.  Os judeus perseguidos pelo nazismo em 1939 não poderiam ser devolvidos às câmaras de gás, simplesmente porque tais instalações não existiam.  Entraram em operação somente no segundo semestre de 1941, como notamos pela narrativa de Roderick Stackelberg (logo abaixo). É certo que, para qualquer observador europeu sensato que vivesse em 1939, um eventual genocídio dos judeus pelos nazistas seria uma possibilidade real, e até esperada.  Porém, carece de sentido insinuar que uma possível culpa das autoridades inglesas pelo extermínio de judeus praticado por alemães deveria ser reparada com a cessão de territórios habitados por árabes!     
Ao final do verão de 1941, experimentos com gás venenoso foram realizados pela SS em vários locais da Europa Oriental.  O monóxido de carbono já fora usado no programa clandestino de eutanásia, que tinha o codinome de T-14, dirigido por Philip Bouhler, da chancelaria do Führer, a partir de outubro de 1939.  Em diversas instituições para deficientes físicos e mentais, as mortes por gás ocorriam em câmaras especialmente construídas, com a aparência de chuveiros.  A experiência adquirida no programa de eutanásia foi aproveitada na guerra contra os judeus.  Câmaras de gás móveis, instaladas em caminhões fechados, foram usadas para matar as esposas e filhos de reféns judeus na Sérvia, em outubro de 1941.  No mesmo mês, começaram os preparativos para o uso de câmaras de gás móveis em Chelmno (que os nazistas chamavam e Kulmhof), 65 quilômetros a noroeste de Lodz, no território ocidental polonês, incorporado ao Reich como Warthegau.  Chelmno foi o primeiro dos seis centros nazistas de extermínio na Polônia a entrar em operação.  Mais de 150.000 judeus, a maioria do gueto de Lodz, foram mortos por gás em Chelmno, em 1942 4.  

         Adiante, Katz se queixa de que o rápido aumento da população árabe, por ele compreendida, sem dúvida, como intrusa, derivaria de uma suposta imigração ilegal.  Poderíamos, a princípio, contestar seus juízos de valor, quando tenta estabelecer o que seria imigração ilegal em uma área sujeita a relações de protetorado.  Por que, afinal, a vinda de judeus da Rússia, da Polônia e de outras partes da Europa para a Palestina seria mais justificável do que a simples mudança de árabes de um lado para o outro do Jordão?  Esta reflexão se torna mais oportuna na medida em que sabemos que para Katz a identidade palestina é um engodo!  Além disto, se projetássemos, talvez, uma taxa de crescimento demográfico em torno de 3% para os árabes palestinos ao longo da primeira metade do século XX, nada incompatível com sua alta natalidade, chegaríamos a um resultado final até superior ao do histriônico propagandista!     
Mas ao mesmo tempo em que os britânicos proíbem a imigração judaica, eles permitem ou ignoram a imigração ilegal de milhares de árabes da Jordânia (chamada de Palestina Oriental), Síria, Egito e de várias partes do norte da África. Em 1939, Winston Churchill declara que “…longe de serem perseguidos, os árabes invadiram a região e se multiplicaram…!” Estatísticas exatas da população da região na época são problemáticas, mas sabe-se que em 1947 o número de árabes ao oeste do Jordão triplicou em comparação a 1900.
         Calculo, em contrapartida, o que pensavam os palestinos já engajados na luta contra o sionismo desde os tempos do esfacelamento do Império Otomano, a respeito da possibilidade de se converterem numa minoria em consequência de um processo migratório deflagrado a partir da Europa e contra a sua vontade, conforme depreendemos destas informações de Albert Hourani:

Na Palestina, a aquisição de terra para imigrantes judeus europeus, que começara durante fins do século XIX, continuou dentro do novo sistema de administração estabelecido pela Grã-Bretanha como governo mandatário.  A imigração judia foi encorajada, dentro de limites determinados em parte pela estimativa governamental do número de imigrantes que o país podia absorver num dado momento, e em parte pelo volume de pressão que os sionistas ou árabes podiam aplicar sobre o governo em Londres.  A estrutura da população do país mudou muito nesse período.  Em 1922, os judeus contavam cerca de 11% de uma população total de três quartos de milhão, sendo o resto sobretudo muçulmanos e cristãos de língua árabe; em 1949, formavam mais de 30% de uma população que duplicara5. 
        Associando dados de Hourani e Dan Cohn-Sherbok, concluímos que os judeus, no curto intervalo de menos de uma geração, compreendido entre 1926 e 1948, quintuplicaram seus efetivos na Palestina.  Só nos resta, assim, formular a pergunta: que mal houve na multiplicação dos árabes por três, salvo a adoção de uma perspectiva francamente racista?    
Depois da imigração maciça da Polônia e da Rússia em 1925, relativamente poucos judeus chegaram à Palestina.  Entre 1926 e 1931, a população judaica aumentou apenas de 149.640 para 174.606.  Ao mesmo tempo, a população árabe saltou de 675.450 para 759.700  [6]. 
Contra isso [a diminuição do número de estrangeiros em países árabes], houve uma grande movimentação de judeus tanto da Europa quanto do Oriente Médio e Magreb para o novo Estado de Israel, cuja população judia aumentou de 750 mil em 1948 para 1,9 milhão em 1960  [7]. 
      Merece registro, igualmente, a tentativa desastrada de mostrar as nações árabes como irmãs desprovidas de solidariedade, explícita em um parágrafo que beira a estupidez: 
Após o término da Guerra [de 1948] e a vitória de Israel, os árabes que permaneceram se tornaram cidadãos de Israel, e os que abandonaram suas casas esperando a destruição dos judeus foram rejeitados pelos países árabes das fronteiras onde estavam refugiados. Egito, Jordânia, Síria e Líbano fecharam suas portas para seus irmãos árabes, dando início ao que conhecemos hoje como os “Refugiados Palestinos”.
     O naufrágio cognitivo é berrante: se todos os vizinhos tivessem fechado as fronteiras aos palestinos expulsos, como eles teriam se transformado em refugiados? Não importando o juízo que façamos da "inteligência" de Katz, o fato é que as estatísticas mais uma vez insistem em desmenti-lo.   Albert Hourani lembra que os palestinos se abrigaram na Jordânia em quantidade tão grande que suplantaram a própria população do país fronteiriço, o que, aliás, não representa novidade para os leitores e telespectadores de jornais que acompanham as notícias do Oriente Médio. Dan Cohn-Sherbok confirma que a Jordânia foi o refúgio principal dos palestinos desalojados.         

Na Jordânia, havia uma situação semelhante, de um regime ansioso por ajuda contra perigos externos- dos vizinhos árabes, e também de Israel- mas sob pressão da opinião pública nacionalista.  Depois de 1948, o país ficou com uma maioria de palestinos, que encaravam Israel como seu principal inimigo e vigiavam para ver algum sinal de que o país fazia concessões aos israelenses8. 
Quando a segunda trégua foi estabelecida [1948], mais de meio milhão de refugiados árabes tinha fugido do território israelense.  Embora alguns tivessem sido expulsos, um grande número, inclusive a liderança palestina árabe, partiu por conta própria.  A maioria dos refugiados foi para a Jordânia9.  Outros escaparam para a Faixa de Gaza. 

          Ainda por intermédio de Cohn-Sherbok, constatamos que havia mais de três milhões de palestinos na década de 1960, para frustração dos lunáticos que insistem em negar a existência de uma nação palestina.  Daquele contingente, quase a metade vivia, por efeito dos deslocamentos forçados em maior ou menor grau, em  outros países árabes. 
Depois da Guerra dos Seis Dias, havia quase o mesmo número de palestinos vivendo sob o domínio israelense (1,6 milhão), quanto os que viviam fora do Estado de Israel (1,5 milhão).  Desses que viviam fora de Israel, 644 mil residiam na Jordânia (Margem Oriental); 288 mil, no Líbano; 183 mil, na Síria; 39 mil, no Egito; 194 mil, no Kuwait; 59 mil, na Arábia Saudita; 35 mil no Iraque; e 67 mil, em outros países10. 

            Prosseguirei no tema, avaliando algumas de suas repercussões na política brasileira. 

Notas:

1- Alan Palmer.  Declínio e queda do Império Otomano.  São Paulo: Globo, 2013, p. 247.
2- Albert Hourani. Uma história dos povos árabes.  São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 321.  
3- Dan Cohn-Sherbok.  Uma perspectiva judaica.  In: O conflito Israel-Palestina: para começar a entender...  São Paulo: Editora Palíndromo, 2005, p. 54.  
4- Roderick Stackelberg.  A Alemanha de Hitler: origens, interpretações, legados.  Rio de Janeiro: Imago, 2002, p. 311.
5- Albert Hourani.  Uma história dos povos árabes.  São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 325.
6- Cohn-Sherbok, p. 54. 
7- Hourani, p. 377. 
8- Idem, p. 367  
9- Cohn-Sherbok, p. 66.
10- Idem, p. 79.






segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Falácias sobre a Palestina

O autor do blog, em foto de 2007, expressa seu apoio à causa palestina

       
       Eu começava a alinhar os argumentos que formariam este artigo, em minha sala de jantar, quando me deparei com a figura de Heraldo Pereira, do Jornal Nacional, repetindo em horário nobre frases visivelmente traduzidas do noticiário "metropolitano" sobre o "grupo radical Hamas". Não pude deixar de recordar, com certa dose de ironia e também de  irritação, que há cerca de duas décadas "nossa" mídia burguesa classificava o atual chefe de governo de Israel, Benjamin Netanyahu, como um político extremista, partidário da colonização israelense na Cisjordânia. Netanyahu mudou, desde então? Compreendi, naqueles instantes, a motivação dos arroubos retóricos de Paulo Henrique Amorim contra Pereira, em episódios relativamente recentes que tiveram desdobramentos na Justiça.
     Paremos, agora, de perder tempo com o entediante jornalista conservador, que na verdade apenas cumpre à risca o que lhe ordenam os Marinhos, com prováveis ajustes pontuais de autoria de Ali Kamel, para encontrar nosso foco na detestável orientação seguida por todos os grandes jornais impressos e televisivos do país no que diz respeito ao Oriente Médio.  Não obstante as atrocidades que venha a cometer, qualquer governo israelense é tratado como uma entidade responsável e respeitável que reage de pronto às agressões de "extremistas", "radicais" e "terroristas"; mesmo que propósitos segregacionistas ou genocidas embutidos nas ações militares israelenses sejam condenados por uma maioria esmagadora da comunidade diplomática internacional, milhões de salas de jantar de todos os municípios brasileiros são quase diariamente invadidas por versões em que prevalecem as cínicas desqualificações do governo norte-americano contra os protestos árabes, europeus, africanos, asiáticos e latino-americanos. Com frequência, tais matérias são encerradas com informações que remetem a uma mensagem bastante óbvia: não importando o mérito de suas políticas contra os palestinos, Israel contará com o apoio dos Estados Unidos e sempre vencerá.
          Levando em consideração a correlação de forças vigente, é válido perguntar o que pode um blogueiro de esquerda, ou ainda todo o conjunto dos blogueiros de esquerda, atuando de maneira coordenada, contra interesses tão claramente hegemônicos no hemisfério ocidental.  Um artigo no História & Política, diria um detrator ou um simples observador desinteressado, não tem contra os ecos do Jornal Nacional sequer o impacto de um míssil Qassam; é algo como uma pequena pedra atirada contra uma divisão de tanques.  Entretanto, digo eu que é uma pedra que merece ser atirada, mesmo que alerte somente algumas centenas de pessoas contra a desinformação predominante.               
       Partindo da percepção do caráter tendencioso da cobertura midiática, devo destacar que em diversos espaços da Internet o respaldo a Israel, muitas vezes associado a uma visão religiosa "guerreira", assume feições ainda mais selvagens. Estabeleço, em um primeiro momento, contraponto a um artigo que localizei no site de Matheus Zandona, cuja redação é atribuída a Joseph E. Katz, que combina uma série de balelas e distorções da realidade para convencer os leitores de que os israelenses são os legítimos donos de toda a Palestina, e até de outras regiões vizinhas, e os palestinos intrusos sem identidade:        
http://ensinandodesiao.org.br/artigos-e-estudos/historia-e-significado-de-palestina-e-palestinos/

       Katz e seu divulgador Zandona tentam, a princípio, difundir a noção de que após a Diáspora judaica a Palestina se transformou em uma espécie de "terra de ninguém", pronta a receber de volta, em lugar indeterminado do futuro, seu "povo escolhido":      
           
“Palestina” nunca foi o nome de uma nação ou estado. É na verdade um termo geográfico utilizado para designar uma região abandonada ao descaso desde o século II d.C. 

         Tamanha falácia provocaria, logo de entrada, a fúria de qualquer especialista no estudo dos impérios Romano e Bizantino.  A ideia de que uma região tão estratégica do Mediterrâneo Oriental, limítrofe com Egito e Síria e aproximada por mar da Grécia e da Ásia Menor, tenha ficado abandonada ou despovoada após a destruição da autonomia dos judeus por Roma é no mínimo ridícula.  Avançando um pouco mais na linha do tempo, percebemos através destas linhas de Albert Hourani que, ao ser conquistada pelos árabes, a Palestina cedo se converteu em uma área de enorme importância para o Islã:            

Os lugares santos dos judeus e cristãos ainda tinham poder sobre a imaginação dos novos governantes: 'Umar visitou Jerusalém depois que ela foi capturada, e Mu'awiya ali foi proclamado califa.  Então, na década de 690, ergueu-se a primeira grande edificação a afirmar que claramente que o Islã era distinto e ia perdurar.  Foi o Domo da Rocha, construído no local do Templo judeu em Jerusalém, agora transformado num haram muçulmano; seria o ambulatório para peregrinos em torno da rocha onde, segundo a tradição rabínica, Deus intimara Abraão a sacrificar Isaac¹.

         Pela narrativa do cristão árabe Amin Maalouf, pesquisador das Cruzadas, fica claro que, no início daquele processo histórico, o território palestino era regularmente povoado por comunidades muçulmanas que identificavam os europeus como invasores: 

Na Palestina, a maioria das cidades e das aldeias é evacuada pelos seus habitantes antes mesmo da chegada dos franj.  Em nenhum momento estes encontram uma verdadeira resistência, e na manhã de 7 de junho de 1099, os habitantes de Jerusalém já os podem ver aparecer ao longe, sobre a colina, perto da mesquita do profeta Samuel².

           Retornando a Hourani, somos informados de que no período sob domínio mameluco (após a expulsão dos cruzados) Jerusalém constituía um importante centro educacional do mundo islâmico: 

(...) a madrasa de Tankiziyya em Jerusalém, dotada durante o período mameluco, tinha quatro salões (iwan) que se abriam para um pátio central, um para o ensino do Hadith, outro da lei hanafita, outro do sufismo, enquanto o quarto era uma mesquita.  A dotação mantinha quinze estudantes da lei, vinte do Hadith e quinze do sufismo, e professores de cada assunto; os estudantes deviam dormir na madrasa, e havia também um asilo para doze viúvas³.

        Joseph Katz invoca, como se isto sustentasse o seu delírio, um parágrafo atribuído ao romancista Mark Twain, que aponta para a existência de uma Palestina quase desabitada em pleno século XIX:

“Não há sequer uma vila em toda a extensão do vale chamado Jezreel, nem mesmo em um raio de 50 Km. Viajamos quilômetros sem encontrar uma alma sequer. Nazaré está abandonada, Jericó é uma ruína que se desfaz; Belém e Betânia, na sua pobreza e humilhação, não é desejada por qualquer criação (…). Um país desolado cujo solo é bastante rico, mas é dado inteiramente a ervas inúteis (…) uma expansão silenciosa, pesarosa (…) uma desolação (…). Nunca vimos um ser humano durante todo o caminho. A Palestina encontra-se vestida em pano de saco e cinzas…”.
Mark Twain, “The Innocents Abroad”, 1867.

           Real ou fictícia, a narrativa de Twain não se mantém diante do quadro exposto por Alan Palmer, um dos maiores estudiosos do Império Otomano, a respeito da Palestina do século XIX, ainda sob controle turco: 


Em contraste com outras terras árabes no Levante e a despeito do perfil cosmopolita de Jerusalém, na virada do século [XX], a Palestina era invulgarmente homogênea, o povo com esmagadora maioria de fé sunita.  De modo geral, eram bons e e leais otomanos, e o sultão Abdulhamid se dispunha a ouvir seus representantes com especial simpatia, admitindo alguns árabes mais preparados em cargos de confiança em Yildiz.  Na Terra Santa, os árabes também eram um povo antigo, como os judeus.  Podiam alegar a descendência de comunidades que lá viviam por dez ou mais séculos, remontando, talvez, aos cananeus da Bíblia.  O governo otomano temia que, se milhares de aldeões judeus pobres da Rússia convergissem para aquela região tão sensível, provocariam um conflito permanente com os árabes e seriam um ônus para as colônias judias já existentes, algumas lá instaladas havia mais de trinta anos.  Portanto, quando, em 1891, Abdulhamid recebeu o primeiro pedido de notáveis árabes de Jerusalém para que acabasse com a imigração judia e a compra de terras, dispensou ao pedido atenta consideração4.  


          Ainda sobre o período otomano, é relevante esta nota de Albert Hourani a respeito de Solimão, O Magnífico, que reinou durante o século XVI: 

Também na cidade santa de Jerusalém, o sultão Suleiman deixou sua marca, nos azulejos das paredes externas do Domo da Rocha, e nos grandes muros que cercavam a cidade5.

           O mesmo autor fornece alguns dados sobre a inclusão da Palestina na administração formal dos territórios turcos:

As províncias sírias de Alepo, Damasco e Trípoli tinham de ser controladas diretamente, devido às suas receitas, ao lugar de Alepo no sistema internacional de comércio, ao de Damasco com um dos centros a partir dos quais se organizava a peregrinação, e ao de Jerusalém e Hebron como cidades santas (Jerusalém, lugar de onde se acreditava que o Profeta ascendera ao Céu em sua viagem noturna; Hebron, o túmulo do patriarca Abraão)6.

      O palestino Dawoud El-Alami nos revela o perfil demográfico da região em uma determinada altura do século XIX: o percentual de judeus, nativos e/ou emigrados, era inferior até ao dos cristãos de língua árabe: 

Por volta de 1888, a Palestina estava dividida em três Sanajek (distritos) principais.  O Sanjak de Jerusalém, que compreendia a metade sul do país e era, por causa de sua importância, governado diretamente por Constantinopla.  Os outros dois Sanajek, Nablos e Akka, eram parte da Vilayet de Beirute.  A Jordânia constituía uma parte da Vilayet da Síria, com Damasco como capital.  Nessa época, a população da Palestina nesses três distritos era de aproximadamente seiscentos mil habitantes, dos quais cerca de 10% eram cristãos, 4% judeus e a maioria era de muçulmanos sunitas7.


       Os números de El-Alami são compatíveis com as cifras indicadas por Alan Palmer para um período imediatamente posterior:

Na época em que o Kaiser Wilhelm II visitou os três vilayets [províncias] que geograficamente constituíam a Palestina, a população árabe superava a judia na proporção de dez para um8.

                                                                        (...)

Na Palestina, a população judia cresceu de apenas 24 mil em 1880 (quase metade do número de judeus em Londres) para 49 mil em 1903 e 90 mil na eclosão da Primeira Guerra Mundial, quando, na mesma região, se admitia existirem 500 mil árabes.  Em 1882, tão logo começou a imigração em larga escala, as autoridades otomanas adotaram medidas para impedir a entrada de judeus vindos da Rússia e doutras partes da Europa pelos portos de Latakia, Beirut, Haifa e Jaffa9.


        Mesmo se expondo a fáceis desmentidos, Katz e seu papagaio brasileiro prosseguem no falseamento da História:   

O mito atual é que estes árabes há muitos séculos já estavam estabelecidos na Palestina, até que vieram os judeus e os “desalojaram” em 1948. Mas na verdade a imigração recente de árabes para a Palestina foi que “desalojou” os judeus. 

           Contra isto, basta o depoimento do rabino Dan Cohn-Sherbok, cujos argumentos em livro já referenciado nas notas formam um contraponto aos do palestino El-Alami: 


Simultaneamente, povoamentos judeus continuavam a ser criados na Palestina.  Em 1914, um grupo do Hovevei Zion da Rússia fundou Nahalat Yehuda (A Herança de Yeruda), ao norte de Rishon le-Zion. Nessa fase, havia aproximadamente noventa mil judeus vivendo na Terra Santa, dos quais 75 mil eram imigrantes. Nos anos que se seguiram à criação do Fundo Nacional Judeu no início do século, quarenta e três colônias tinham sido criadas com uma população de 120 mil.  A maioria dessas pessoas que tinha emigrado para a Palestina era da Rússia e da Romênia- eles trabalhavam a terra como fazendeiros ou como trabalhadores agrícolas ou eram empregados como lojistas, artesãos ou operários.  Em contraste, o número de árabes na Palestina era de cerca de meio milhão10.

         Honestamente, Cohn-Sherbok admite que as migrações impulsionadas pelo sionismo não apenas incomodavam o governo otomano, como provocavam a reação articulada, inclusive no plano institucional, dos árabes da Palestina: 

Ansiosa com o influxo de colonos judeus, a população árabe começou a se engajar em atividades políticas.  Dois árabes de Jerusalém foram eleitos para o parlamento otomano em Constantinopla como anti-sionistas.  No verão de 1914, o governo turco impôs medidas rígidas para impedir a imigração judaica11.


          Ainda segundo Cohn-Sherbok, apesar do forte fluxo migratório era este o panorama demográfico da Palestina em 1918:

Por causa da guerra [A Primeira Guerra Mundial], toda a população da Palestina, inclusive os judeus, muçulmanos e cristãos, sofreu consideravelmente.  A população total caiu de cerca de oitocentos mil, em 1914, para 640 mil, sendo constituída de aproximadamente 512 mil muçulmanos, 66 mil judeus e 61 mil cristãos12.

       As fantasias da dupla Katz/Zandona parecem chegar ao ápice neste trecho, em que a imigração dos judeus europeus é apresentada como um grande benefício aos próprios árabes: 

A restauração da terra “desolada” e “não desejada” começou na segunda metade do século XIX, com os primeiros pioneiros judeus. O trabalho realizado por estes pioneiros criou novas e melhores condições e oportunidades, o que acabou por atrair outros imigrantes de várias partes do Oriente Médio, tanto árabes quanto outros.
            A propaganda falaciosa não resiste a cinco linhas de Albert Hourani:


Apesar da oposição do governo otomano e da crescente ansiedade entre parte da população árabe local, em 1914 a população judia da Palestina tinha aumentado para aproximadamente 85 mil, ou 12% do total. Cerca de um quarto deles assentara-se na terra, parte dela comprada por um fundo nacional e declarada propriedade inalienável do povo judeu, em que não se podiam empregar não judeus13.

            Os limites do progressismo dos colonos judeus, aliás, são reconhecidos por Dan Cohn-Sherbok: 


Durante os anos de 1920-21, houve graves dúvidas sobre a possibilidade de se fundar uma Pátria judaica conforme proposta na Declaração Balfour.  Embora [Herbert] Samuel buscasse criar instituições representativas na Palestina, a população judaica temia essas instituições, uma  vez que os judeus constituíam apenas 11% da população palestina.  Além disso, a taxa de natalidade dos árabes era mais alta do que a dos judeus.  Nessas condições, parecia certo que os árabes seriam maioria em qualquer instituição que fosse criada- e essa situação inevitavelmente prejudicaria o programa sionista14.

          Retomarei, o mais breve possível, reflexões que não podem ser desenvolvidas por completo no espaço de uma só postagem.  Peço aos fãs do blog que continuem divulgando, nesta fase em que a visibilidade das páginas virtuais não pagas permanece bastante reduzida.            


Notas
1- Albert Hourani.  Uma história dos povos árabes.  São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 46.
2- Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos árabes.  São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 54.
3- Hourani, p. 175. 
4- Alan Palmer.  Declínio e queda do Império Otomano.  São Paulo: Globo, 2013, p. 194/195.
5- Hourani, p. 246. 
6- Idem, p. 234.
7- Dawoud El-Alami.  Uma perspectiva palestina.  In: O conflito Israel-Palestina: para começar a entender... /Dan Cohn Sherbok e Dawoud El-Alami. São Paulo: Editora Palíndromo, 2005,  p. 122.
8- Palmer, p. 193.
9- Idem, p. 194.
10- Dan Cohn-Sherbok.  Uma perspectiva judaica.  In: O conflito Israel-Palestina: para começar a entender... /Dan Cohn Sherbok e Dawoud El-Alami. São Paulo: Editora Palíndromo, 2005,  p. 37-38.
11- Idem, p. 38.
12- Ibidem, p. 40.
13- Hourani, p. 292-293.
14- Dan Cohn-Sherbok, p. 43.