domingo, 23 de setembro de 2012

Devassando o imperialismo (IV)



                  Inspirado pela leitura de Immanuel Wallerstein, recupero uma série que iniciei há cerca de quatro meses.  Por razões óbvias, praticamente toda a direita ocidental contemporânea  se empenha, senão na negação das atrocidades e do caráter destrutivo das colonizações, ao menos na minimização destes aspectos, aos quais procura confrontar os avanços tecnológicos relacionados àqueles processos e uma presumida elevação moral das populações dominadas, por meio do contato com as doutrinas originárias das nações colonizadoras.  
         A tentativa de reabilitação das antigas metrópoles nada tem de gratuita ou de surpreendente.  A crença dos direitistas, assumida ou envergonhada, em noções como "necessidade de aristocracia", "organização meritocrática" ou mesmo "ordem natural das sociedades" fatalmente conduz, por extensão, à legitimação das hierarquias entre países, regiões, blocos econômicos e culturais.  Nesta perspectiva, caberia aos Estados Unidos e a seus principais aliados europeus, na atualidade, a manutenção de um status quo fundamentado na defesa a todo custo do sistema capitalista, na relativização da soberania dos países não ocidentais e/ou subdesenvolvidos e no direito de intervenção contra regimes rebeldes ou "traidores".  
           É fácil identificar a incoerência e a hipocrisia por trás do discurso mencionado.  Condena-se a associação entre Estado e religião oficial no Irã, mas não na Arábia Saudita, dócil quanto à presença militar da OTAN no Oriente Médio.  Exalta-se um suposto caráter especial dos povos anglo-saxônicos quando estes triunfam na concorrência industrial, enquanto o crescimento das exportações chinesas é atribuído a práticas comerciais desonestas.  As vitórias eleitorais dos partidos conservadores da América Latina são saudadas como expressão da vontade popular; quando prevalecem forças esquerdistas, nacionalistas ou reformistas, ressurgem espantalhos dos tempos da Guerra Fria.  
               Entretanto, não nos faltam dados que demonstram que a tutela das potências capitalistas ocidentais sobre vastas porções do mundo, embora tenha invocado ao longo de séculos, infalivelmente, as virtudes civilizatórias dos ocupantes, na verdade encobre interesses econômicos e ambições individuais que não recuam ante o genocídio para sua concretização.  Recorro mais uma vez a bibliografia bastante acessível para recordar, em seis estações, a distância entre as promessas e a realidade do imperialismo.               
  
1-Argélia, década de 1840- Terra arrasada contra as forças autonomistas:

Bugeaud devastou a colônia, e em 1842, por exemplo, mandou queimar tudo o que havia entre Miliana e Cherchell.  "Não se combate, incendeia-se", escreve, de seu lado, Saint-Arnaud.  "Queimam-se todos os aduares, todas as aldeias, todos os casebres... Quantas mulheres e crianças, refugiadas nas neves do Atlas, morreram de frio e de miséria... Devasta-se, saqueia-se, destroem-se as casas ... os incêndios que ainda ardem indicam-me a marcha da coluna...".  Bugeaud acobertou, com sua autoridade, o general Pélissier que matou asfixiados pela fumaça mil árabes nas grutas de Dahra em 1845.
Ele acabou derrotando Abd el-Kader, venceu o filho do sultão do Marrocos que fora socorrê-lo (batalha de L'Isly, 1844) e não queria saber das admoestações de Paris, horrorizada pela repercussão de tais devastações.  Bugeaud inaugurou essa tradição de que um general, em além-mar, deve agir a seu bel-prazer, sem se preocupar com seu governo.  Este, porém, o fez duque d'Isly, "por ter dado a Argélia à França".
(Marc Ferro.  História das colonizações: das conquistas às independências, séculos XIII a XX.  São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 105-106) 

2-China, fins da década de 1850- O vandalismo como arma de intimidação:

Os aliados decidiram então marchar sobre Pequim.  Ao atingirem Tung-Tchiu, situada nos arredores da capital, novas negociações foram entabuladas por intermédio do Príncipe Kong, irmão mais novo do imperador, que no curso do período seguinte viria a ser o grande estadista manchu.  Tendo fracassado as negociações preliminares, os exércitos aliados avançaram até o Palácio de Verão, a esplêndida residência que Chien Lung mandara construir sobre um lago.  Aí, a soldadesca aliada retomou a tradição de vandalismo que já se manifestara no Pagode de Porcelana, em Nanquim: o palácio que, segundo as palavras do comandante francês Montauben, "era de uma riqueza e de uma beleza sem igual na Europa", foi submetido sistematicamente à pilhagem pelos oficiais. 
Mas o insaciável Lorde Elgin, após ter entrado em Pequim, ordenou que se tocasse fogo a todos esses "esplendores" que os próprios conquistadores haviam considerado "difíceis de descrever".  Elgin imaginava, candidamente, que o incêndio do Palácio de Verão impressionaria os orientais e deixaria aos chineses um duradouro pavor dos europeus.
(K. M. Panikkar.  A dominação ocidental na Ásia.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 139)

3-Cuba, século XIX- O racismo comum às sociedades coloniais:

Assim que se abriu a Ilha a uma grande migração branca, e chegaram milhares de jovens ibéricos  e canários buscando trabalho, o domínio negro [sobre certas profissões] revelou sua verdadeira face.  A sociedade, radicalmente racista, preferia o trabalho branco ao trabalho negro, isso dito nos termos da época.
Um caso paradigmático foi o dos cocheiros: em 1830 todos eram negros.  Em 1860 todos são espanhóis ibéricos ou canários.  Ou seja, não somente se substituiu o negro, mas também o criollo branco.  Algo semelhante ocorreu com os músicos: numa sociedade rica onde as orquestras e em geral os conjuntos de música popular eram bem apreciados, os negros e mulatos praticamente monopolizaram o ofício.  Nisso, ademais, eram ajudados por um certo preconceito.  Ser aficcionado à música era uma demonstração de espírito seleto, de vocação artística; mas viver da música, fazendo da arte um ofício para diversão alheia era, de acordo com as normas brancas da época, uma atividade degradante.  Por isso todos os grupos musicais que atuaram em Cuba, até meados do século, em festas particulares e em sociedade, eram integrados por negros.  Por volta de 1847, organizou-se uma orquestra de brancos em Havana e anunciou-se nos jornais e panfletos como uma extraordinária novidade.
Mediante todos esses recursos que impunham obstáculos ao trabalho livre tratou-se de, e em grande parte conseguiu-se, minar a vida econômica da que poderíamos chamar de uma classe média mulata e negra.
(Manuel Moreno Fraginals.  Cuba/Espanha, Espanha/Cuba: uma história comum.  Bauru: Edusc, 2005, p. 229)  

4-Vietnã, 1885- "Pacificação" por meio da expansão dos cemitérios:  

Quando os franceses deram assalto à cidadela de Huê, que abrigava os palácios imperiais onde a corte residia, os relatórios mencionaram os massacres (1500 vietnamitas mortos, contra 11 franceses), incêndios e pilhagens da cidade.  Os palácios, os arquivos, a biblioteca, toda uma preciosa herança cultural, foram reduzidos a cinzas.  Até generais serviram-se deles: "Tal pilhagem a frio, que durou dois meses, ultrapassa em muito ... a do Palácio de Verão de Pequim".
Ao cabo da conquista e da "pacificação" do norte e do centro do Vietnã, que duraram de 1883 a 1896, esses países foram palco de uma verdadeira catástrofe demográfica.  Foi preciso esperar 1910-1920 para que a população deles retomasse um crescimento normal.
(Pierre Brocheux.  O colonialismo francês na Indochina.  In: O livro negro do colonialismo/org. Marc Ferro.  Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 403)   

5-África Ocidental Francesa, século XIX- Um império construído sobre relações escravistas:

Como acontecia em relação à utilização de escravos nos exércitos coloniais britânicos, os franceses também dependiam de escravos para os seus tirailleurs senegaleses, bem como para seus auxiliares.  Como os franceses nunca tinham tido mais do que 4.000 soldados na África Ocidental, a conquista do Sudão Ocidental dependia de recrutas africanos, de modo que- assim como em outros lugares- uma força incluindo muitos ex-escravos conquistou a África para os colonialistas.  Em certo sentido, os franceses criaram uma força escrava que lembrava os antigos guerreiros escravos tyeddo derrotados pelos reformadores muçulmanos no século XIX.  Mesmo quando o compromisso francês com a abolição tornou-se mais firme- apesar de ações individuais de administradores-, o exército francês continuou a recrutar escravos, quase como se o exército estivesse ligado a alguma tradição arcaica que os oficiais franceses convenientemente não compreendiam.  Esse atavismo era levado a extremos.  Até mesmo em 1891, o commandant em Kita podia relatar ao seu superior que alguns dos escravos- principalmente mulheres, capturados durante as campanhas militares estavam sendo distribuídos aos soldados, como parte do salário: "Eu vou distribuir os escravos de modo a ter menos bocas para alimentar.  Naturalmente manterei um certo número para os nossos homens, que estará disponível para eles após a campanha: pode contar a eles para estimulá-los um pouco.  Assim como os engagés à temps e as villages de liberté, a escravidão era adaptada às ambições coloniais sempre que possível; apenas a propaganda mudava, de modo a disfarçar a exploração colonial com a linguagem da abolição.
(Paul Lovejoy.  A escravidão na África: uma história de suas transformações.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 384)      

6-Iraque, século XX- Bombas, gases e cordas contra os que ousam desafiar o Império: 

As três primeiras décadas do regime monárquico-imperial foram um desastre sem atenuantes para o povo local.  O custo da imposição do regime colonial e de uma monarquia vinda de fora foi elevado: o uso de armas químicas e do poderio aéreo provocou 98.000 baixas.  E havia ainda a selvagem repressão política em casa, simbolizada pelos enforcamentos públicos: um dos que assim foram tratados foi o líder comunista Fahd.  O número de pessoas mortas no período 1920-48 foi altíssimo quando comparado, por exemplo, com a Índia colonial.  E as avaliações críticas do domínio britânico do Iraque não se confinaram aos escritores nacionalistas ou esquerdistas.  O balanço apresentado por Elie Kedourie, historiador que não ficou famoso por sua simpatia pelos impérios, foi, neste caso, totalmente negativo.  Kedourie descreveu o Iraque hashemita como um despotismo baseado no poder de coerção do Império Britânico e que inaugurou um período "cheio de derramamento de sangue, traição e rapina", cujo fim estava "implícito em seu início".
(Tariq Ali.  Bush na Babilônia.  Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 69)    












sábado, 22 de setembro de 2012

Pela igualdade, contra um universalismo etnocêntrico

          

            A luta entre o universalismo europeu e o universalismo universal é a luta ideológica central do mundo contemporâneo e o resultado será fator importantíssimo para determinar como será estruturado o sistema mundo futuro, no qual entraremos nos próximos vinte e cinco a cinquenta anos.  Não podemos deixar de tomar partido.  E não podemos recuar para uma posição supraparticularista  na qual invocamos a validade equivalente de todas as ideias particularistas apresentadas no mundo inteiro.  Afinal, o supraparticularismo não passa de uma rendição disfarçada às forças do universalismo europeu e aos poderosos do momento, que buscam manter o seu sistema mundo não democrático e não igualitário.  Se quisermos construir uma alternativa real ao sistema mundo vigente, teremos de encontrar o caminho para enunciar e institucionalizar o universalismo universal: um universalismo possível de conseguir, mas que não se concretizará de modo automático ou inevitável.
(Immanuel Wallerstein.  O universalismo europeu: a retórica do poder.  São Paulo: Boitempo, 2007, p. 27) 

         
       A desintegração do bloco soviético no início da década de 1990, entre outros efeitos colaterais, elevou os Estados Unidos à posição de "superpotência remanescente", em tese capaz de impor pela força seus interesses em todas as partes do planeta, sobretudo nos países desprovidos de armas nucleares.  A euforia temporária que tomou conta dos liberais e conservadores de variados matizes fez com que muitos considerassem não apenas a possibilidade do fim da História, associada à vitória definitiva do capitalismo laissez-faire, como também a virtual adesão de todas as sociedades, de boa ou má vontade, aos valores e às práticas econômicas do Ocidente.  A aproximação entre a administração Yeltsin e os ex-inimigos da OTAN  levou analistas políticos e chefes de Estado a vislumbrarem o mundo sob a liderança de uma Europa ampliada, cujos limites se estenderiam dos Urais à Califórnia, ou ainda de San Francisco a Vladivostok.
              Os acontecimentos subsequentes derrubaram em larga margem este otimismo.  A eclosão de algumas guerras civis na África obrigou os arautos do fim da História a remodelarem sua teoria, limitando o quadro idealizado às nações ocidentais mais desenvolvidas.  Os desdobramentos do caso Rodney King forçaram-nos a aceitar que mesmo naquelas poderiam ocorrer "retrocessos".  O esgotamento do modelo representado na América Latina por dirigentes como Alberto Fujimori, Fernando Collor, Carlos Menem e Carlos Salinas, acompanhado pela constante recusa dos eleitorados europeus em abrir mão de direitos sociais duramente conquistados, dissolveu as ilusões de uma pretendida unanimidade ideológica de tipo thatcherista.
             A pax americana não se caracterizou pela ausência de conflitos, mas sim por consecutivas intervenções militares norte-americanas, com maior ou menor solidariedade europeia, contra governos unilateralmente classificados como párias da ordem mundial.  A França, com menos visibilidade midiática, exerce um neocolonialismo quase explícito no continente africano.  Não faltam, no outrora denominado Primeiro Mundo, defensores teóricos das invasões, que ao sabor das conveniências podem ser justificadas por um suposto apoio ao terrorismo, violações dos direitos humanos, risco à integridade de minorias ou mesmo pelo desrespeito a relações econômicas apresentadas como "naturais".
         Porém, devemos admitir que tal posição não constitui exclusividade de imperialistas perversos do Hemisfério Norte.  A cada crise diplomática, verificamos que abundam nas sociedades latino-americanas, africanas e asiáticas elementos que de bom grado recorreriam a um poder externo irresistível para respaldar seus interesses, mesmo contrariando a vontade da maioria e prejudicando de maneira irreversível as estruturas de seus respectivos Estados nacionais. 
         Não sou entusiasta de Barack Obama, nem subestimo a eficiência dos democratas norte-americanos no cumprimento da agenda imperial.  Todavia, seria tarefa das mais fáceis encontrar nas redes sociais brasileiros e habitantes de países vizinhos que se deleitariam, e não fazem segredo disto, em ver um governo republicano, talvez controlado pelo Tea Party, promover um ataque direto contra Cuba, instalar bases militares no Paraguai, apoiar uma deposição dos sandinistas na Nicarágua, financiar ESGs e IBADs em versão pós-moderna no Cone Sul e bombardear a Venezuela chavista, não necessariamente nesta ordem.  Sonham com uma "Idade Média" alternativa, integralmente dirigida pelo mercado e marcada pela imposição do que Wallerstein define como universalismo europeu a todas as populações, pela via da indústria do entretenimento ou ao som de bombas inteligentes contra os grupos irredutíveis.  Sabem que funcionariam como subalternos, feitores ou capitães do mato de seus próprios povos, mas receberiam, em contrapartida, o reconhecimento enquanto aristocracia local, instalando uma dominação completa, sem constrangimentos e sem concessões táticas, sobre as classes trabalhadoras.  
             A denúncia do imperialismo é sempre atual, a menos que um dia as relações internacionais se tornem igualitárias em todos os campos.  Porém, tem igual importância o combate aos colonizadores "de dentro", os que gostariam, sob o pretexto da vinculação incondicional a uma presumida civilização superior, de subjugar os "bárbaros" em nome de um processo civilizatório que, como sabemos pelo balanço histórico das colonizações, estranhamente jamais se completa.  É preciso alijá-los de todo e qualquer poder efetivo.     
                                   
                      









    

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Ainda sobre o discurso do medo

Representação da cerimônia de Bois Caiman (1791), que precedeu a Revolução Haitiana
             
         A instrumentalização do medo como catalisador de votos não foi, obviamente, uma descoberta de Regina Duarte.  As pessoas da minha faixa de idade que acompanharam em 1988 os trabalhos da Constituinte talvez se lembrem de José Sarney declarando à imprensa que a radicalização dos parlamentares de esquerda ameaçava as instituições. Pouco depois, no intuito de afugentar votos lulistas, Fernando Collor pediria ao eleitorado nacional que não deixasse o Brasil se transformar num barril de pólvora.  Os octogenários interessados em política se recordarão, sem dúvida, da ojeriza dos colarinhos brancos às mobilizações de trabalhadores que caracterizaram os meados do século XX. 
             Podemos ir muito longe na genealogia destas posturas.  Afinal, a defesa da ordem em sociedades oligárquicas depende em parte nada desprezível da difusão do terror entre  as várias categorias de possuidores.  Alguns temeram as multidões de cativos; outros, os negros sem maiores distinções; outros ainda, os pobres urbanos,  os retirantes, os índios, os ciganos, os favelados, os comunistas...
            Regina Duarte, se tivesse vivido no Brasil oitocentista, não disporia da chance de se manifestar sobre questões de terras em feiras rurais.  Todavia, este hipotético papel foi desempenhado com maestria por muitos "Régis", em numerosas circunstâncias.  Vamos a alguns deles, com o costumeiro recurso às obras sobre o século XIX.              
     
O francês de nome ignorado que atuou como informante da Coroa portuguesa no Brasil de 1822 e 1823, sobressaltado diante dos embates ideológicos em curso, fez o seguinte apelo aos habitantes livres do país:    

Finalmente: todos os brasileiros, e sobretudo os brancos, não percebem suficientemente que é tempo de se fechar a porta aos debates políticos, às discussões constitucionais?  Se se continua a falar dos direitos dos homens, de igualdade, terminar-se-á por pronunciar a palavra fatal: liberdade, palavra fatal e que tem muito mais força num país de escravos do que em qualquer outra parte.  Então toda a revolução acabará no Brasil com o levante dos escravos, que, quebrando suas algemas, incendiarão as cidades, os campos e as plantações, massacrando os brancos e fazendo deste magnífico império do Brasil uma deplorável réplica da brilhante colônia de São Domingos.
(citado em João José Reis.  Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista.  São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 91)

Três décadas mais tarde (1854), a comissão de cafeicultores que se reuniu no município fluminense de Vassouras continuava temendo os escravos, e em especial os que chegavam ao Sudeste através do tráfico interno:  

Se o receio de uma insurreição geral é talvez ainda remoto, contudo o das insurreições parciais é sempre iminente, com particularidade hoje que as fazendas estão se abastecendo com os escravos vindos do norte, que em todo o tempo gozaram de triste celebridade.  Insurreições parciais têm havido em diversos pontos e infelizmente não serão as últimas.  Dormir sobre o caso é uma imprevidência, que entrega-nos desarmados ao perigo, ou faz com que no momento dele se tomem providências desordenadas, insensatas e só próprias para infundirem e arraigarem no espírito dos escravos a convicção do susto e terror que nos causam.  Urge portanto adotar-se um complexo de medidas prudentes e moderadas, um sistema de cautela e vigilância que tenha em vista a segurança de uns, sem ao mesmo tempo despertar as suspeitas de outros.
(citado em Rafael de Bivar Marquese.  Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860.  São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 285)

Futuro barão do Rio Vermelho, José Félix da Cunha Meneses concentrava seus receios nas movimentações dos homens livres pobres, como vemos em um trecho da carta que escreveu em 1831 a Paulino José Soares de Souza, depois visconde do Uruguai:

Há seis mil armas de fogo e munição entregues nas mãos dos bons, porém se isto é capaz de conter a canalhacracia enfurecida é que eu não sei; e os efeitos do estado duvidoso que começa a aparecer de rusgas anunciadas para tal e tal dia, vai produzindo o que querem os malvados: a emigração de capitalistas, e a estagnação do comércio, e por consequência a falta de Rendas na Alfândega e outras Estações Públicas.
(citado em Ilmar Rohloff de Mattos.  O tempo saquarema: a formação do Estado imperial.  São Paulo: Hucitec, 1990, p. 123) 

No distante ano de 1838, os redatores do Correio Mercantil, periódico de Salvador, pareciam invocar a ação das autoridades contra os folguedos populares, vistos enquanto fator de desordem:

Na noite de 29 passado, um estrepitoso batuque lá para as bandas do Engenho da Conceição e Fiaes, levou  o susto e o terror a imensas famílias daquelas circunvizinhanças, que, já recolhidas e em profundo descanso, se ergueram espavoridas pelos gritos horrendos da turba, tornada mais retumbante e dissonora pelo "trinado" de que usam acompanhar o seu alarido batendo com a palma da mão na boca, servindo-lhe mais de "baixo" um tambor ou zabumba.  Esta "lícita" folia, sustentou-se até depois das 2 horas da madrugada do dia 30, com grande e perene inquietação de numerosas famílias, que, sobressaltadas, a cada momento pareciam ver aproximar-se aquela infernal malta.
(citado em João José Reis.  Tambores e temores: a festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX. In: Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura.  Campinas: Unicamp, Cecult, 2002, p. 121)

O já mencionado Paulino, na posição de ministro da Justiça, manifestaria seu horror aos contingentes sertanejos, supostamente mergulhados na barbárie:

Essa população que não participa dos poucos benefícios da nossa nascente civilização, falta de qualquer instrução moral e religiosa, porque não há aí quem lha administre, imbuída de perigosas ideias de liberdade, desconhece a força das leis, e zomba da fraqueza das autoridades, todas as vezes que vão de encontro aos seus caprichos.  Constitui ela, assim, uma parte distinta da sociedade do nosso litoral e de muitas de nossas povoações e distritos, e principalmente por costumes bárbaros, por atos de ferocidade, e crimes horríveis se caracteriza.
(Paulino José Soares de Souza.  Relatório do Ministério da Justiça, 1841, p. 19.  Citado em Ilmar Rohloff de Mattos.  O tempo saquarema, p. 34)  

         Muitas semelhanças podem ser apontadas entre os reacionários de hoje e os senhores de escravos do Império extinto.  Mas o seu alegado medo não é somente uma tática para agregar simpatizantes apáticos ou dispersos.  Ainda que rejeitem a mudança, eles reconhecem que a sociedade, além de extremamente desigual, é discriminatória e repleta de mecanismos perpetuadores da injustiça, e que uma ampla maioria tem razões de sobra para perder a paciência.       
         Oponhamos ao seu medo um projeto de igualdade, de inclusão, no sentido mais amplo da palavra, e a confiança na participação popular.                      









segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Mais terras para a direita ruralista

        
          Retornando à blogosfera, percebi que nas últimas semanas muitos editores, como Sakamoto, Argemiro Borges, Saraiva e Luis Nassif, fizeram comentários a respeito da participação de Regina Duarte no evento denominado 45ª Expoagro, que ocorreu na cidade sulmatogrossense de Dourados.  Segundo todas as versões, ao falar para os ruralistas ela lhes apresentou solidariedade contra a demarcação de terras indígenas na região.  
            Imediatamente procurei o provável contraponto, fosse um desmentido da própria Regina ou uma defesa elaborada por terceiros.  Após dezenas de tentativas infrutíferas, localizei a notícia sob um ângulo favorável à atriz, porém muito semelhante nos aspectos mais essenciais:            

http://www.newsbrasilcentral.com.br/imprime.php?id=19728

O vice presidente da Famasul, Eduardo Riedel fez coro aos oradores que o antecederam, falou da importância do trabalho da Famasul junto com os parlamentares no sentido de fortalecer as conversações em torno do seguro rural, da relação produtor/frigorífico e do embate por que atravessa o produtor com a questão fundiária. 
A atriz Regina Duarte, criadora de gado Brahman, que estava presente ao evento, foi lembrada por Eduardo “Num dos momentos mais delicados da política Brasileira a Regina Duarte tomou posição. Sua coragem deve servir de exemplo a todos nós”. 
Regina que fez a campanha presidencial de José Serra repetiu o jargão usado na época, quando ela dizia ter medo de um governo do PT. “Confesso que em Dourados voltei a sentir medo”, disse a atriz com referência às portarias da FUNAI (Fundação Nacional dos Índios) que prevê a criação de reservas nas regiões da Grande Dourados e Sul do Estado. Ela mostrou a sua preocupação com o desrespeito aos produtores. “O direito à propriedade é inalienável”, disse a atriz que também ouviu as preocupações do Sindicato Rural de Dourados destinada aos Quilombolas. 



          Pouco tenho a acrescentar às críticas que meus "antecessores" compuseram, a começar pela denúncia do recurso ao medo, que aparentemente constitui o argumento predileto de Regina Duarte.  Também não farei alusões aos interesses classistas de Regina ou ao racismo pessimamente disfarçado das correntes políticas que lhe são afins.  
        Prefiro me deter em questões que em regra são desconsideradas quando se discute, no Brasil, o acesso à terra por parte de índios, quilombolas e sem-terra, bem como o estabelecimento de áreas de preservação ambiental.  Desde os primórdios da organização do Estado brasileiro, os intelectuais oligárquicos aludem à necessidade de alinhar o país entre as "nações civilizadas", "adiantadas" ou "desenvolvidas".  Tal tendência, na segunda metade do século XX, mais de uma vez esteve associada a ideias como a de que "o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil".   
             Entretanto, outros pesos e medidas são empregados quando emergem na ordem do dia os direitos de segmentos desprivilegiados.  No caso da propriedade fundiária, a cada ocasião na qual o agronegócio se vê privado de áreas para sua expansão, por mais diminutas que sejam, um robusto conjunto de meios de comunicação leva ao público uma projeção de futuro marcada pela fome nas cidades e pela falência financeira do Brasil.
             Para indicar o caráter demagógico deste discurso, trago alguns dados ilustrados sobre países costumeiramente mencionados enquanto exemplos de sucesso na agricultura e na pecuária.  Podemos ver neste mapa da Austrália, cuja área equivale a mais de 80% da brasileira, que as terras pertencentes aos aborígines alcançam imensas proporções, e estão longe de se limitar às regiões desérticas.           




Notemos, simultaneamente, que a população indígena australiana é bastante inferior à brasileira:


A população aborígene está restrita a 366.436 indivíduos, representando menos de 1% da população australiana.

Na Nova Zelândia, as reservas destinadas aos maoris são menores.  Todavia, os 84.300 km² de áreas de conservação, em seus variados tipos, representam mais de 30% do território, que totaliza cerca de 270.000 km²:



In 2004, 8.06 million hectares were set aside in New Zealand for public conservation land. By the end of October 2007, a total of 8.43 million hectares were legally protected, which is an increase of 4.56 per cent.

        No Canadá, que também conta com menos índios do que o Brasil (e nenhum quilombola), as reservas indígenas são igualmente consideráveis em tamanho e, ao contrário do que se poderia supor, estão concentradas na Colúmbia Britânica (costa do Pacífico) e nas proximidades da fronteira com os Estados Unidos, e não nas zonas de geleiras.  Os povos indígenas recebem a  mesma denominação de "nações" que causa tanta histeria entre a direita brasileira: 





No Canadá existem quase 540 000 índios registrados ou pessoas que têm o status de índios (cerca de 1.8% do total da população do país). Quando é "registrado", o indivíduo é reconhecido sob a lei federal como índio, com certos direitos, privilégios e benefícios. Cerca de 55% dos índios registrados vivem em áreas específicas de terra, chamadas de reservas, demarcadas para o uso e benefício dos indígenas. Há mais de 2200 reservas espalhadas pelo Canadá para cerca de 605 Primeiras Nações. A maioria localiza-se em zonas rurais, muitas são isoladas e algumas não são habitadas.

        
         A crítica ao poder dos latifundiários e a desconstrução das falácias dos seus prepostos é sempre oportuna.