quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Um pouco sobre degredados e colonizadores


       

        A premissa de que "O Brasil não dá certo, não funciona, por ter sido colonizado por degredados" é um dos principais suportes, senão a base argumentativa, da corrente de opinião (digamos assim) definida por alguns como "a turma do racismo contra".  A tese carece, obviamente, de sustentação com base na historiografia contemporânea; mais ainda, do respaldo das historiografias "antigas", cujos autores, em boa parte, produziam suas obras impulsionados pelo ufanismo.  Isto não impede que continue a reunir adeptos, inclusive entre pessoas instruídas.
            Folheando O Globo de 22 de novembro de 2014, tive a desagradável surpresa de ver o excelente escritor Carlos Eduardo Novaes endossando o mito, nos trechos finais de um texto até então instigante sobre corrupção.  Transcrevo na íntegra suas palavras, que além da velha referência à "escória da Península Ibérica" recuperam o mote nada recente de que "merecíamos colonizadores melhores".                               

"Foram os portugueses, porém, que disseminaram a prática da corrupção.  Diferentemente dos peregrinos ingleses que desembarcaram na América do Norte para se fixarem e construírem uma nova vida, os portugueses que vieram atrás de Cabral eram uma escória, um bando de renegados e desterrados que só queriam se aproveitar deste terreno baldio sem ninguém, para enriquecer e voltar à terrinha. Pois foram eles que se encarregaram de fiscalizar o contrabando do pau-brasil, aves, ouro e especiarias contra a Coroa Portuguesa.  Não podia dar certo.  Mas aqueles aventureiros portugueses estabeleceram um padrão de rapinagem que de lá para cá só fez se aprimorar.  Durma com uma corrupção dessas!" 

         Não ignoro que o espaço de uma matéria de sete ou oito parágrafos, destinada a causar impacto no caderno de ideias de um jornal de grande circulação, é insuficiente para o desenvolvimento ideal de determinados temas.  Calculo também que Novaes pretendia, muito mais do que ser historicamente exato e inspirar questões do ENEM, investir contra a tolerância do brasileiro médio (inclusive seus leitores) para com a roubalheira generalizada que se estende, sem dúvida, desde fases remotas da História do país.  Julgo, porém, que um formador de opinião precisa ser mais cauteloso antes de proferir sentenças que nada esclarecem e apenas alimentam o pior gênero de Sociologia de botequim. 
       Breves momentos de recurso à lógica são o bastante para desconstruir o lugar comum segundo o qual "nosso" colonizador típico era o degredado.  Embora corriqueira na monarquia portuguesa da Idade Moderna, a aplicação da pena de degredo não ocorria somente na direção da terra do pau-brasil. Houve degredados em Goa e nas demais dependências do Estado da Índia,  em Angola, Moçambique, Guiné, nas ilhas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe.    Partindo-se do princípio de que não haveria razão para padrões totalmente diferenciados de ocupação permanente na Ásia, na América e na África, tratando-se em regra de possessões tropicais, seria necessário, para viabilizar o projeto de povoar com os criminosos, que Portugal dispusesse do maior contingente de bandidos do planeta.  Mesmo assim, é impossível acreditar, como Novaes aparentemente indica, que "renegados" e "desterrados" teriam preferência na distribuição dos cargos públicos mais prestigiados ou que conferissem maiores oportunidades de enriquecimento. Muita coisa pode ser dita, a partir de incontáveis fontes, sobre a corrupção na América Portuguesa, mas a mera presença de grupos de indivíduos banidos passa longe de constituir a chave da explicação de tal fenômeno.  
        Observemos uma situação específica.  Luiz Alberto Moniz Bandeira descreveu desta maneira o estabelecimento do Governo Geral em meados do século XVI:                                                                                                         
Tomé de Sousa chegou à Bahia de Todos os Santos em 29 de março de 1549, comandando três naus- Salvador, Conceição e Ajuda, duas caravelas- Rainha e Leoa- e um bergantim – S. Roque.  Levara “320 pessoas de soldo, em que iam muitos oficiais de todos os ofícios”, algumas dezenas de degredados, e acompanhado fora por seis sacerdotes da Companhia de Jesus e vários fidalgos, entre os quais Rodrigo de Argollo, nomeado provedor da Fazenda da Bahia, e Diogo Moniz Barreto, que desempenharia o cargo de provedor do Hospital e depois (1554), o de alcaide-mor da cidade do Salvador, além de seu criado, Garcia D’Ávila, então com 21 anos, homem d’armas, que ele designara, “por sentir que é apto”, almoxarife da cidade e dos seus termos, bem como da alfândega¹.

      Percebe-se que os degredados, que aliás não ficavam impossibilitados de exercer seus respectivos ofícios, representavam uma nítida minoria ante os trabalhadores qualificados que acompanhavam o governador.  Além disto, os principais empregos já estavam destinados, desde a saída da metrópole, a homens tidos como nobres.  Convém nos lembrarmos, em seguida, do papel que cabe à pobreza em quase todos os movimentos migratórios.  O superpovoado norte de Portugal legou ao Brasil, desde cedo, vastas levas de camponeses que atravessavam o Atlântico em busca da sobrevivência.  Conforme João Fragoso,          

No século XVI, as pressões demográficas sobre a terra e as fomes recorrentes transformaram a região de Entre Douro e Minho numa área caracterizada pela contínua “fuga de gentes”.  Fugas, primeiro para as ilhas do Atlântico e depois, em função das dificuldades econômicas e sociais, para outras partes, em especial o Brasil².

            Outra ressalva se faz necessária: nem todos os degredados eram meliantes incorrigíveis ou tipos antissociais.  Geraldo Pieroni, que estudou os processos do Santo Ofício que resultaram em degredo para o Brasil, elaborou o quadro exposto logo abaixo³.  Destaco que o termo "falsidades", segundo o mesmo autor, se referia ao enquadramento por falso testemunho, a que se expunham, entre várias possibilidades, os cristãos-novos que supostamente tinham mentido sobre suas práticas "judaizantes" ou tentado proteger parentes e amigos dos tentáculos da Inquisição.          




           Finalmente, deixo aos que insistem em construir fantasias a respeito de colonizadores alternativos, breve nota sobre uma das opções que foram colocadas, já no século XVI, à dominação portuguesa sobre o litoral brasileiro: 

Próximo do rei, amigo do Almirante Coligny e detentor de excelentes relações com destacados membros da nobreza, Villegaignon não teve dificuldades para angariar um vasto leque de contribuições- do Rei inclusive.  Essas dádivas permitiram ao cavaleiro de Malta armar uma esquadra de três navios de 200 toneladas, recrutar cerca de 600 homens- muitos dos quais nas prisões de Rouen e Paris- e partir para o Brasil4.  


Notas:

1- Ver O feudo.  A Casa da Torre de Garcia D’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 100.
2- Ver A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). In: O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII).  Orgs. João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 36).
3- Ver Banidos: a Inquisição e a lista dos cristãos-novos condenados a viver no Brasil.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 50. 
4- Ver Jean Marcel Carvalho França.  Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1531-1800.  Rio de Janeiro: EdUERJ; José Olympio, 1999, p. 19.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Carta ao pregador do terceiro turno




                        Nota publicada no site do Clube Militar sobre a última eleição presidencial


Desafortunado coxinha,

          Quando você proclamou, em 27 de outubro, a nulidade das eleições presidenciais a partir da montagem de quinta categoria que simulava uma zerésima impressa com 400 votos para Dilma, conseguiu me causar um pouco de tédio e irritação, ainda que sua atitude fosse até certo ponto previsível.  Seria possível que alguém não percebesse os números mal alinhados, o zero único conferido a Aécio (enquanto todas as outras cifras tinham quatro algarismos), a discrepância entre os tais 400 votos e a falta de registro dos votos nominais?  Estaríamos diante de um caso de paralisia temporária das atividades mentais, provocada pelo choque com a derrota do PSDB, ou de mera desonestidade, apesar do seu habitual discurso moralista?      


            

         Opto pela primeira alternativa, pois na sequência dos acontecimentos nem você, nem o produtor da canalhice, nem qualquer dos seus divulgadores voltou para explicar como os componentes da mesa eleitoral, diante de um golpe tão primário, deixariam de exigir a troca da urna, mesmo que todos fossem petistas roxos escolhidos por um TRE de igual cor. Algum presidente de seção, funcionário público de carreira (com rara exceção), seria desmiolado o suficiente para subscrever a zerésima viciada e enviá-la ao tribunal?  Imaginemos por dois minutos que sim.  Calculemos que a seção tivesse 450 eleitores habilitados e que 370 houvessem comparecido, apenas 150 deles votando em Dilma Rousseff. Concedo-lhe o handicap porque, conforme a sua versão, Aécio ganhou e foi roubado!  Desta maneira, encerrada a votação Dilma estaria com 550 votos computados, contra 370 votos nominais.  Que grande gênio, dentro da junta encarregada pela totalização, realizaria o milagre do fechamento das contas absurdas?             Tentando reforçar uma tese que já era delirante, você, nos dias que se sucederam, espalhou pelas redes sociais depoimentos gravados de um punhado de pessoas que em princípio não conseguiram votar, apresentando-os como prova irrefutável de que a eleição foi corrompida. Encarei o fato, desta vez, como parte do seu completo desconhecimento do que seja o processo eleitoral em um país com mais de 200 milhões de habitantes.  Desde os tempos de Pedro I, eventualmente Souza chega ao local determinado para a votação, assina como se fosse Sousa e vota inadvertidamente em seu lugar. Meia hora depois vem Sousa, em carne, osso e documentos diversos, e não exerce seu direito constitucional porque, para todos os efeitos formais e legais, já o fez.       
         Eu mesmo, numa das vezes em que exerci a presidência de uma seção eleitoral na Região dos Lagos fluminense, passei pela desagradável experiência de impedir por acidente o voto de uma eleitora. Logo antes dela, outra mulher votou e, ao invés de sair da área demarcada pelo lado oposto ao que tinha entrado, permaneceu no mesmo lugar, admirando a máquina branca e seus botões.  Sem notar, digitei o número do título da próxima da fila e liberei o acesso à urna. A antecessora, achando que seu voto ainda não havia sido registrado, reprisou-o e apertou a tecla "confirma", gerando de imediato uma confusão. Pensei que poderia enfrentar complicações judiciais, até que funcionários do TRE, comparecendo ao local, explicaram para mim e para a cidadã lesada que aquele tipo de erro era bastante comum, que não havia nada a ser feito e que a votação deveria prosseguir normalmente.  Embora estivéssemos no interior, onde os fiscais dos partidos costumam ser mais desconfiados e aguerridos, ninguém me lançou a suspeita de tirar voto de X para dá-lo a Y.
       É lógico que não estou afirmando que o "nosso" sistema eleitoral funciona inteiramente à prova de fraudes, mas nem uma criança esperta acreditaria que trambiques esparsos envolvendo troca de identidades, impugnação de eleitores e outras situações excepcionais resultariam na diferença de mais de 3,4 milhões de votos imposta por Dilma a Aécio.  Aceite, portanto, até para deixar de se expor à chacota geral da nação, a obviedade de que a coligação de interesses e ideias materializada na candidatura de Dilma Rousseff obteve mais apoio popular do que a outra, formada em torno da figura de Aécio Neves. 
      Talvez nem valesse a pena escrever os cinco parágrafos anteriores se o problema estivesse limitado à eleição propriamente dita.  Entretanto, você decidiu ir além, e por caminhos tortos. Ofertou-me, e ao país inteiro, um precipício com três bordas: pela primeira, retornaríamos a um regime como o que foi estabelecido em 1964; pela segunda, o Exército entraria em cena somente para derrubar Dilma, cassar os direitos políticos dos integrantes da esquerda e, dois ou três meses depois, gerenciar um pleito "democrático" em que Aécio não enfrentaria concorrentes reais; pela terceira, que indica a medida da sua generosidade, ocorreria apenas o afastamento de Dilma e a posse de Michel Temer, devidamente intimado a governar com o programa econômico tucano debaixo do braço; em suma, tudo menos o PT: até as demais forças que, ao longo dos últimos doze anos, sustentaram os governos petistas. 
        Sabendo de antemão que a democracia, no seu entender, tem como pré-requisitos básicos a subordinação de elementos "inferiores" aos "superiores" e a resignação de todos à influência do Capital, não cairei na ingenuidade de gastar retórica para desconstruir ideias tão arraigadas. Mas quero, apesar de tudo, trazer para sua reflexão certos dados de realidade.
        Os coronéis e generais de hoje, que eram jovens nos tempos das presidências de Figueiredo e Sarney, viram toda a responsabilidade moral sobre as torturas, assassinatos e cassações praticados pelos agentes da ditadura ser depositada nos ombros de seus predecessores e chefes. É verdade que vários historiadores especialistas em Brasil República se referem aos anos compreendidos entre 1964 e 1985 como o período da "Ditadura Civil-Militar".  Todavia, para minha infelicidade (e dos demais), historiadores não costumam alcançar muito êxito na dissolução de lugares comuns repetidos exaustivamente em toda parte, ao longo de décadas. O cidadão pouco escolarizado, nas ruas e nos bares, e o cidadão letrado, nos jornais e nas revistas, continuam a empregar a expressão Ditadura Militar, pura e simplesmente. Enquanto isso, muitos dos filhos dos civis que participaram da articulação do golpe, contribuíram com dinheiro e logística para a eficácia do aparato repressivo e doaram milhões para as campanhas eleitorais da ARENA, recebendo em troca vantagens de toda natureza, constroem para seus pais, na mídia, a aura póstuma de bons democratas, defensores da liberdade e filantropos.
     Não desconheço que oficiais militares, em determinado gênero de piadas, são submetidos a caricaturas que desqualificam sua inteligência, mas quase todos, e sobretudo os que ascendem aos postos mais altos, ingressam na carreira através de concursos disputados e realizam estudos de nível universitário, sendo obrigados a uma constante atualização de conhecimentos.  Torna-se difícil, "meu" iludido coxinha, crer que eles queiram servir como massa de manobra para gente como você, que reproduz nas redes sociais as teorias conspiratórias do Lobão, admira Danilo Gentili como campeão dos direitos individuais, dorme tarde para se solidarizar com o canto do exílio de um Diogo Mainardi e identifica em Olavo de Carvalho a maior liderança intelectual do século vigente. Mesmo que você, acompanhado por vinte ou trinta dos seus correligionários, desenhe tarjas pretas com guache na própria cara e grite ridículas palavras de ordem noite e dia, durante meses, perto da entrada de algum quartel, a tropa não sairá da caserna, exceto talvez para enxotá-lo.  Ninguém em sã consciência pretende se tornar, na velhice, alvo da execração pública e vilão solitário em manual escolar.  Este filme eles já conhecem.
      Para finalizar, faço meus pedidos: cerre seus ouvidos quando meus correligionários mandarem-no apreciar uma gestão de direita no Paraguai ou uma intervenção militar em Burkina Faso.  Confesso que já sugeri, no calor de mais de uma briga, que reacionários e deslumbrados fossem lavar pratos e privadas em Miami, mas ignore até as minhas palavras, se qualquer dia sobrar para você.  Uma eleição nacional não pode dispensar a sua presença.  Que graça terá a disputa presidencial de 2018 sem um coxinha de estimação fazendo eco aos planos infalíveis de Merval Pereira para devolver Brasília ao tucanato?  Que será da nossa combatividade se faltarem os seus compartilhamentos das carrancas de um Arnaldo Jabor próximo dos oitenta anos? Como vamos nos animar a bater em um saco de pancadas tão roto quanto o PSDB sem você para nos dizer que Geraldo Alckmin é a reserva moral do Brasil e único homem capaz de salvá-lo?  Fique.