sexta-feira, 22 de março de 2013

Desagravo a Salvador Allende (com motivação extra para não ler Veja)


   
     Salvador Allende Gossens (1908-1973), presidente do Chile entre 1970 e 1973, é um dos estadistas do século XX mais difamados pela mídia conservadora latino-americana.  Seus detratores não cessam de "descobrir" novas mazelas em seu governo e novas taras em sua personalidade no intuito de justificar a extinta ditadura de Pinochet, beneficiar eleitoralmente a direita chilena contemporânea  e/ou proclamar a necessidade de alinhamento ideológico de toda a região com as  forças mais retrógradas e elitizantes do Hemisfério Norte.   
       Provavelmente dispondo de um bom patrocínio, o historiador chileno Víctor Farias é um dos agentes mais ativos neste processo.  Ele publicou, em 2005, o livro Salvador Allende: Antisemitismo y eutanasia, vastamente traduzido e divulgado.  A obra, como o título indica, se destina a caracterizar o biografado como racista e adepto de práticas de extermínio.  
        Ninguém se surpreenderá com o fato de que, no Brasil, a revista Veja tenha sido um dos canais de promoção do livro de Farías.  Na edição de 8 de junho de 2005, o notório pasquim do udenismo tardio trouxe uma reportagem da qual Allende emerge como monstro genocida.  Emprestando ares de veracidade à farsa, foi construída uma versão deturpada do trabalho Higiene mental y delincuencia, apresentado pelo falecido presidente chileno ao se graduar em Medicina no ano de 1933.  Para dar sustentação a um discurso anticomunista rasteiro e fabricar uma associação inteiramente forçada entre o pensamento do jovem Allende e o nazismo, a redação de Veja distribuiu entre seus argumentos frases isoladas da tese, arrancando-as de seu contexto original.
         O procedimento descrito, na verdade, não difere muito do método empregado por Víctor Farías para compor seu livro.  Porém, enquanto Farías era desmascarado pelos admiradores de Salvador Allende nos países de língua espanhola, que apontaram suas falácias e manipulações praticamente linha por linha, no Brasil, salvo grave e até desejável engano da minha parte, prevaleceu a mistificação.    Portanto, penso que um desagravo em português com quase oito anos de atraso ainda terá serventia.  Na pior das hipóteses, algumas centenas de pessoas perceberão o nível de credibilidade que se pode conferir à imprensa burguesa.
      Limito-me a extrair dois recortes: no primeiro, Allende é acusado de relacionar o pertencimento étnico de ciganos e judeus à prática de determinados crimes; no segundo, escassas linhas divididas por dois parágrafos são exibidas como prova de uma homofobia radical e associada a tendências totalitárias.                       





         A montagem parece impecável, mas somente se ignorarmos que a tese está disponível na Internet, com texto integral, apresentação e notas: 

http://www.salvador-allende.cl/Documentos/1939-49/MemoriaSAG.pdf

           Notamos de imediato que Veja, ao reproduzir a passagem supostamente racista do trabalho de Allende, ocultou um trecho anterior, no qual fica evidente que o autor se referia ao  pensamento do médico e criminologista italiano Cesare Lombroso (1835-1909). 


       Verificando as notas impressas no final da tese, temos as referências completas de uma tradução de Lombroso publicada na Espanha.  O que fica provado, então, é que o panfletário na época encarregado dos assuntos latino-americanos pela família Civita, no mínimo, copiou desavisadamente um material estrangeiro produzido de maneira totalmente desonesta.


          Mais grave ainda é constatarmos que Veja, tal como Víctor Farías, omitiu a conclusão de Salvador Allende, que não se mostrava convencido de que o fator raça influía sobre a delinquência no "mundo civilizado"




           A tentativa de pintar Allende como um exterminador potencial de gays também cai no ridículo.  A afirmativa de que a homossexualidade é vista na tese como doença procede, mas  estamos diante de um senso comum dos anos 1930.  O fato em si em nada auxilia os conservadores, que ao menos para consumo externo continuam proclamando, até os dias atuais, que a personalidade homossexual constitui uma patologia. Além disto, o parágrafo anterior, só para variar omitido, demonstra que os homossexuais que Allende pretendia "curar" seriam pessoas levadas à prática homossexual por distúrbios endócrinos.  Mesmo que saibamos há muito que ninguém é gay por falta de testosterona, não existe no texto qualquer manifestação de intolerância.  
   


       
      Pelo contrário: Allende expôs em seguida citações de dois autores, Asúa e Marañón, que recriminam as possíveis punições ao homossexualismo, tido como um problema orgânico e não como falha de caráter.  Dificilmente o faria se desejasse confinar os "doentes" em campos de concentração ou unidades de reeducação.







      O publicista de direita, partindo de uma rejeição visceral à igualdade, se vê obrigado a procurar episódios discriminatórios na trajetória de pessoas de esquerda ou contradições no igualitarismo destas, para se encaixar no papel do verdadeiro humanista.  O resultado, em regra, é o que vimos acima.     


quinta-feira, 21 de março de 2013

O racismo brasileiro, nem sempre tão velado



       
       Hoje retorno às imagens da página "Orgulho Eurodescendente" que salvei por meio do print screen.  Ressaltei na postagem anterior as contradições do administrador em sua inútil pretensão de fugir à qualificação de racista.  Agora, apresento uma pequena parte das pérolas do racismo brasileiro que ele permitiu que fossem gravadas naquele espaço, apesar de alertar seguidas vezes que não toleraria "porcarias".  A tarefa poderia ter sido cumprida até por um bom aluno do Ensino Fundamental, pois o próprio "Orgulho" facilita as coisas ao incensar a memória dos ultrarracistas confederados do Sul dos Estados Unidos.  A vinda de uma parte deles para o Brasil é apresentada de forma simplória como uma estratégia para fazer progredir a agricultura brasileira, passando ao largo dos compromissos entre forças escravagistas dos dois países.




     Abaixo de uma reportagem sobre a Islândia, um dos seguidores da comunidade, Alexandre Fernandes, lamenta o fato de existirem habitantes não brancos na aprazível ilha, ainda que poucos.  



          Lucas Hans deplora sem disfarce a resistência oferecida por britânicos e franceses ao nazismo.  Isto teria frustrado o projeto de uma Europa completamente branca.  Ele relaciona o desenvolvimento material da Alemanha de Hitler ao perfil étnico de sua população.  Alguém talvez queira avisá-lo de que os alemães contemporâneos continuam vivendo na maior economia do continente tendo ao lado milhões de turcos em todas as atividades produtivas, mas creio que se trata de uma missão de resultado duvidoso.      



      Para Kevin Campos, os brancos da África do Sul e do Zimbabwe, supostamente marginalizados por comunistas perversos, deveriam imigrar em bloco, reforçando o componente racial "ariano" de outros Estados. 


                                                                   


      O mesmo Kevin endossa as palavras de ordem  de Filipe Milos contra a miscigenação entre brancos e não brancos.





             Rafael Shevchenko, em um dos tópicos destinados à apreciação das beldades femininas brancas, faz objeção à colagem da foto de uma moça que, na sua opinião, não é caucasiana o suficiente para figurar na dita seleção.  Descobrimos então, com certa surpresa, que os nascidos entre Porto Seguro e São Luís, bem como os que com eles se parecem fisicamente, estão automaticamente desclassificados do segmento branco. 






         Jair Santana, além de naturalizar o fato de negros serem alvo preferencial de batidas policiais, prega a submissão de todos aos parâmetros de uma "civilização branca".  Aos negros inconformados, oferece a imigração para a África ou para o Haiti.  


                                                     
      Em comentário sobre a militância negra norte-americana, Yuri Vankovich revela a sobrevivência do lugar comum segundo o qual todos os africanos, antes do tráfico de escravos para a América, eram selvagens que viviam pelados em aldeias de tipo Neolítico.  Contra toda lógica, ele afirma que a liberdade dos negros do continente americano é uma dádiva do homem branco.  Arrematando o discurso, Sylvio Ker reproduz o argumento da volta para a África, encontrável em várias publicações da comunidade.   



                                                             
       Para Márcio Henriques, a capacidade de superar contextos desfavoráveis como a escravidão confere a alguns povos o direito talvez natural a uma "supremacia".  De maneira incrivelmente sincera, apesar do primitivismo ideológico, a miscigenação entre brancos e não brancos é definida como "procriação mal planejada".



       Não formularei denúncia contra qualquer um destes perfis, os quais suspeito que nem sejam verdadeiros em sua totalidade.  Penso que eles já desempenharam com a eficiência necessária o papel de advogados de auto-acusação.  Resta, portanto, a alegação de que são perseguidos por uma militância de esquerda intolerante.  Deixo ao leitor o julgamento sobre quanta solidariedade merecem...   


quarta-feira, 20 de março de 2013

Direita, fascismo e racismo: uma conexão brasileira


A democracia contemporânea funda-se sobre o princípio pelo qual todos os indivíduos são considerados titulares de direitos inalienáveis, independentemente da raça, do patrimônio e do gênero (ou sexo) e, portanto, pressupõe a superação das três grandes discriminações (racial, patrimonial e sexual) ainda vivas e vitais à véspera de outubro de 1917. 

(Domenico Losurdo.  Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje.  Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 99/100)


        Encontro em excursão despretensiosa pela Internet uma página do Facebook denominada "Orgulho Eurodescendente", cujas propostas declaradas são o culto às realizações materiais e espirituais dos povos europeus e de seus descendentes e a denúncia das situações de racismo contra pessoas brancas.  Seu administrador, no  provável intento de desvincular o movimento dos grupos neonazistas ou similares, expõe uma suposta rejeição ao proselitismo racista, especialmente se associado à violência física.         




         Na postagem que copio abaixo, escolhida entre muitas possibilidades, o caráter direitista da "comunidade" é evidenciado no mais puro estilo Alborghetti.  Os marxistas não apenas são convidados a ficar de fora do combate à "eurofobia" como também se tornam suspeitos de viver em permanente estado de alucinação química.       




          A máscara democrática do "Orgulho" não resiste a uma investigação superficial.  Um link compartilhado com os seguidores no último Ano Novo revela a previsível simpatia pelo partido neofascista francês Front National, fundado pelo notório racista Jean-Marie Le Pen.  


     O administrador, em trecho de protesto contra "acusações injustas", deixa ainda mais óbvia uma filosofia de matriz fascista.  Ele se vangloria de localizar suas raízes familiares nas populações que historicamente estiveram "no domínio", tal como os mussolinianos que enalteciam as campanhas de conquista e recordavam a grandeza do Império Romano, toscamente relacionado à monarquia italiana das primeiras décadas do século XX.   



      "Orgulho Eurodescendente" também é bastante sincero nas convicções belicistas.  Podemos notar em diversas publicações a fascinação por armas e guerreiros, em particular cruzados e participantes da conquista da América.  Nesta imagem, vemos a mistificação que vincula a personalidade militarista a um determinado sangue.    


     Mais uma vez investindo contra a esquerda, "Orgulho" enaltece o espanhol Hernán Cortés, aventureiro faminto por metais preciosos que agiu à revelia de seus superiores na invasão do Império Asteca.  Apesar de ter comandado a destruição de uma das maiores cidades de seu tempo, Tenochtitlán, Cortés é vendido como "herói civilizador". 




         O leitor que me acompanhou até aqui não se surpreenderá com a sintonia fina do indivíduo, não casualmente anônimo, com a ala mais reacionária do franquismo.  Ele publica uma poesia, aliás de péssima qualidade, ufanista a respeito das guerras empreendidas pela monarquia espanhola.  A referência à Reconquista como uma luta contra os infiéis dispensa comentários. 

                                                


      Como o que é péssimo continua sujeito a piora, "Orgulho" avança em sua faceta discriminatória.  Diante da descoberta das origens norte-africanas de Zenedine Zidane, ele simplesmente "cassa" a cidadania francesa do ex-jogador, "tão francês quanto um rato nascido em forno é um biscoito".
  



           Em outro ato falho,  adotando o modelo de discurso que os próprios panfletários direitistas classificam como "vitimismo", "Orgulho" se queixa da presumida perseguição contra os defensores da "cultura branca".  Poderíamos perguntar-lhe o que torna idênticos culturalmente um católico francês, um muçulmano de Sarajevo e um materialista russo do tipo Anatoly Karpov.  Até que os elementos que devem ser salvos dos "bárbaros" estejam claramente definidos, fica a impressão de que talvez certos brancos não façam parte da "cultura branca" idealizada. Porém, mais interessante é perceber o extremado racismo implícito na propaganda: sugere-se a proteção ao "sangue branco" (repulsa à miscigenação?), enquanto os judeus, ao que parece, são deslocados da condição de brancos.        

                                                   
         Finalizo, digamos assim, com a cereja do bolo.  Nestes parágrafos de autoria obscura divulgados pelo entusiasmado direitista, recria-se a fantasia de uma civilização egípcia inteiramente elaborada por caucasianos perfeitos.  A decadência da antiga nação dos faraós e o subdesenvolvimento do Egito contemporâneo são relacionados, sem rodeios, à progressiva infusão do sangue negro africano.   




            Ainda bem que "Orgulho Eurodescendente" não é racista.  Mesmo que fosse, eu pensaria duas vezes antes de dizê-lo, pois ele já adianta (ver quarta ilustração abaixo da capa) que contra calúnias apela de imediato à Justiça.  Espero, então, que aprecie meu recurso ao extraordinário europeu e incontestável caucasiano que é Domenico Losurdo. 

domingo, 17 de março de 2013

Estados Unidos e América Latina: os múltiplos desastres de uma relação desigual


                                                             Augusto César Sandino

Creen [los Estados Unidos] en la necesitad, en el derecho bárbaro, como único derecho: ‘esto será nuestro, porque lo necesitamos’.  Creen en la superioridade incontrastable de ‘la raza anglosajona contra la raza latina’.  Creen en la bajeza de la raza negra que esclavizaron y vejan hoy, y de la india, que exterminan.  Creen que los pueblos de Hispanoamérica están formados, principalmente, de indios e negros.  Mientras no sepan más de Hispanoamérica los Estados Unidos y la respeten más, - como con la explicación incesante, urgente, múltiple, sagaz, de nuestros elementos y recursos, podrían llegar a respetarla, - ¿pueden los Estados Unidos convidar a Hispanoamérica a uma unión sincera y útil para Hispanoamérica? ¿Conviene a Hispanoamérica la unión política y económica com los Estados Unidos?”

José Martí (1853-1895), em artigo de maio de 1891 sobre a Conferência Monetária Internacional ocorrida naquele ano em Nova York. 

         Esta postagem tem relação direta com o texto "Quem são os verdadeiros idiotas latino-americanos" que publiquei em 30 de julho do ano passado.
(http://gustavoacmoreira.blogspot.com.br/2012/07/quem-sao-os-verdadeiros-idiotas-latino.html
          Nestes últimos sete meses e meio, não parece ter arrefecido o ânimo dos milhões de liberais e conservadores latino-americanos que sonham com o alinhamento automático, na economia e na política externa, de seus respectivos países com os Estados Unidos, preferencialmente sob as teses do Partido Republicano.  Pelo contrário: muitos deles se mostraram eufóricos com a recente morte do presidente venezuelano Hugo Chávez Frias (1954-2013); alguns já se arriscam a prever as datas em que desmoronarão os governos de tendência nacionalista ou esquerdista existentes na região.
          Não tenho a pretensão, que seria bastante tola, de fazê-los virar as costas à sua Meca particular.  Apenas trago, para apreciação de um público mais amplo, outros episódios de um relacionamento cujos resultados, em regra, têm prejudicado desde o século XIX a parte que casualmente integramos.          
       
                                                                     (...)

       A Guerra de Secessão norte-americana (1861-1865) repercutiu expressivamente na vizinha Cuba, ainda sob domínio da Espanha.  Cubanos como os irmãos Federico e Adolfo Cavada, engajados  no exército nortista, adquiriram a experiência militar que depois utilizariam na luta pela independência da ilha.  Outro veterano, o americano Henry Reeve, conhecido como "El Inglesito", alcançaria a patente de general entre os rebeldes cubanos, mesmo após perder a força das pernas logo que desembarcou em Cuba, em um choque armado no qual foi baleado por soldados espanhóis.
        Durante a Guerra de Secessão, as autoridades espanholas, que mantinham a escravidão na colônia caribenha, reconheceram os estados escravagistas do Sul como potência beligerante.  Baseando-se nesta circunstância recente, o fazendeiro Carlos Manuel de Céspedes (1819-1874), líder que comandou os autonomistas cubanos no início da Guerra dos Dez Anos (1868-1878), solicitou ao presidente americano Ulysses Grant (1822-1885) que também reconhecesse a beligerância de suas forças.
       O governo dos Estados Unidos não reconheceu a beligerância do exército de Céspedes.  Pelo contrário: vendeu à Espanha canhões e outros armamentos empregados na repressão ao movimento independentista.  Exilados chegaram em grande número a cidades como Tampa, Key West, Baltimore, Nova York e Filadélfia, onde pouco podiam fazer além de sensibilizar a opinião pública norte-americana em favor de Cuba. 
       Na mesma época, ocorreram negociações secretas no sentido de efetivar a venda da ilha aos Estados Unidos pela cifra de cem milhões de dólares.  Um dos possíveis envolvidos era Moses Taylor, fundador do National City Bank de Nova York, cuja fortuna derivava principalmente de seus negócios cubanos.  A descoberta da tramoia causou enorme escândalo em Madrid.  Uma de suas consequências foi o assassinato do general Joan Prim (1814-1870), ex-presidente do Conselho de Ministros de Espanha.     

                                                                       (...)

        A intervenção norte-americana foi um elemento constante na História da Nicarágua.  Logo em 1854, o aventureiro sulista William Walker (1824-1860), chefiando tropas mercenárias, se valeu de uma situação de guerra civil para tomar o poder.  Os nicaraguenses só recuperaram sua autonomia três anos mais tarde.  Após a queda de Walker, presidentes conservadores se sucederam em Manágua até 1893, quando uma revolução liberal levou ao governo o general José Santos Zelaya (1853-1919).
          Zelaya adotou políticas modernizantes e incentivou o desenvolvimento da cafeicultura, mas se afastou politicamente dos Estados Unidos quando, na escolha da área que deveria dar lugar a um canal entre o Atlântico e o Pacífico, seu país foi preterido em prol do Panamá.  Em 1909, tropas norte-americanas desembarcaram na Nicarágua, depuseram Zelaya e devolveram o poder aos conservadores.  Com a eclosão de revoltas contra o presidente conservador Adolfo Díaz (1875-1964), houve uma nova ocupação a partir de 1912.  Em 1914, os Estados Unidos impuseram à Nicarágua o tratado Bryan-Chamorro, pelo qual o primeiro país adquiria o direito perpétuo de construir um canal no segundo. 
           Saindo os marines em 1925, recomeçou a guerra civil; no ano seguinte, voltaram os norte-americanos, desta vez obrigados a enfrentar uma guerrilha popular cujo nome mais importante foi o de Augusto César Sandino (1895-1934).  A potência ocupante organizou e equipou uma Guarda Nacional que, além de promover o assassinato de Sandino e sustentar por mais de quatro décadas a ditadura da família Somoza, participou da derrubada de Jacobo Árbenz (1913-1971) na Guatemala (1954) e das invasões da Baía dos Porcos em Cuba (1961) e da República Dominicana em 1965.
            Em 1977, às vésperas da Revolução Sandinista, 65% dos nicaraguenses eram analfabetos, a expectativa média de vida não passava de 35 anos e a mortalidade infantil atingia o espantoso índice de 200 por mil.            

                                                                       (...)     

        Adoecendo o general Roberto Eduardo Viola (1924-1994) no final de 1981, os grupos militares que lhe eram contrários instalaram na presidência da Argentina o comandante em chefe do Exército, Leopoldo Fortunato Galtieri (1926-2003).  Integrante da linha-dura do regime, Galtieri visitara recentemente os Estados Unidos, sendo bem recebido pelos funcionários do governo Reagan, que buscavam novos aliados para sua política externa então em fase de implementação.  O militar argentino, em troca do aval ao seu projeto de poder, prometeu um alinhamento incondicional com os norte-americanos, inclusive nos conflitos da América Central.   Contribuindo com armamentos e assessores para a guerra suja naquela parte do continente, o governo argentino conseguiu dos republicanos o fim das sanções impostas pela administração Carter diante das sucessivas violações dos direitos humanos na Argentina. 
           No começo de abril de 1982, forças argentinas ocuparam as ilhas Malvinas, invadidas pela Inglaterra em 1833.  O governo Galtieri calculou erroneamente que diante do fato consumado só restaria a definição de um novo status quo por meio de negociações.  Os Estados Unidos, a princípio, buscaram apaziguar os dois aliados.  O secretário de Estado Alexander Haig (1924-2010) propôs a retirada militar argentina e o estabelecimento de uma gestão tripartite no arquipélago (incluindo os próprios americanos) como condições para o início do diálogo.  
        Galtieri tentou pressionar os Estados Unidos acionando a Organização dos Estados Americanos (OEA), onde a Argentina contava com a solidariedade dos demais países latino-americanos.  Invocou também o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), antes utilizado pelos norte-americanos para mobilizar seus vizinhos contra o Eixo e contra Cuba.  A definição se deu no sentido oposto.  Iniciado o ataque britânico contra as ilhas, o governo Reagan abandonou a mediação, enquanto o Senado dos Estados Unidos aprovava sanções contra a Argentina e oferecia apoio logístico à Grã-Bretanha.  Em 14 de junho de 1982 a ditadura argentina se viu forçada a apresentar sua rendição, contabilizando mais de 700 mortos e desaparecidos e quase 1.300 feridos.  
      
Referências:

José A. Benítez.  El pensamiento revolucionario de hombres de nuestra América.  La Habana: Editora Política, 1986.
Manuel Moreno Fraginals.  Cuba/Espanha, Espanha/Cuba: uma história comum.  São Paulo: Edusc, 2005, p. 300 a 306.
Jean Sellier.  Atlas des peuples d'Amérique.  Paris: La Découverte, 2006, p. 154.
Héctor H. Bruit.  Revoluções na América Latina.  São Paulo: Atual, 1988, p. 92 a 94.
Luis Alberto Romero.  História contemporânea da Argentina.  Rio de Janeiro; Zahar, 2006, p. 217 a 223.       

sexta-feira, 15 de março de 2013

Os muitos felicianos e seu deplorável mito camítico

     

        A polêmica acerca da nomeação do pastor Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados ocupou um espaço significativo no noticiário impresso e televisivo das últimas semanas, além de provocar milhares de manifestações pela Internet.  Pouco ou nada tenho a acrescentar às críticas dirigidas ao exótico parlamentar, sobretudo quando o próprio invoca em sua defesa (!) o depoimento de Silas Malafaia que exponho abaixo: 

http://www.marcofeliciano.com.br/noticia/113/a-carta-aberta-de-pastores-que-acaba-ajudando-aqueles-que-nos-odeiam-pr-silas-comenta.html


         Descobrimos, desta maneira, que impedir a contratação de gays numa empresa não é homofobia.  Afinal, não é preciso surrar os semelhantes para tomar esta "providência".  Na mesma linha, adquirimos o conhecimento de que é impossível que descendentes de negros discriminem outros negros; Malafaia, provavelmente, "lava o sangue" de Nina Rodrigues e Oliveira Vianna, entre muitos antigos profetas do racismo científico.
       Mas agora deixo de lado as pretensões de absolvição de Marco Feliciano, que terá o imerecido direito de produzir um vasto repertório de gafes antes de ser arrancado da citada comissão.  O que importa é que, ainda que nenhum racista brasileiro se assuma como tal em público, encontramos sem grande dificuldade a difusão da mitologia discriminatória que foi atribuída ao deputado federal.  O velho mito camítico que já serviu para justificar o apartheid, a segregação étnica nos Estados Unidos e (em proporção bem menor) a escravidão no Império do Brasil.      
          Numa revista virtual de estudos bíblicos vemos um texto, suposta tradução de trabalho do pastor Forrest Keener, que claramente identifica os povos africanos e de uma parte do Oriente Médio como a descendência  amaldiçoada de Cão (ou Cam), filho de Noé.  Com intenções mais do que óbvias, põe-se em negrito a palavra preto.  Sob o ridículo arrazoado, há um questionário que  em uma das perguntas se destina a fixar a posição geográfica da maldição:

http://www.estudosnovotempo.com.br/sem-cao-e-jafe/




          Outro site, intitulado Palavra Prudente, traz considerações semelhantes a partir do mesmo Keener.  Sem qualquer sutileza, fala-se de uma "perpétua diferença racial", estabelecida em prejuízo dos "povos negros":



           No site da Fundação Betel temos outra versão, pela qual somente um dos filhos de Cão, Canaã, seria portador da maldição extensiva aos descendentes.  Porém, o termo Cão é apontado como sinônimo de preto (também com destaque!), em contradição com Forrest Keener, para quem o nome de Cuxe, irmão de Canaã, teria este significado.  Em suma, os amaldiçoados nunca perdem a qualidade de "pretos":  



Noé era canal de Deus na terra,era autoridade de Deus na terra.
Por que Noé amaldiçoou Canaã e não Cão? Hipóteses:
- Talvez porque Deus tivesse abençoado Cão ( Gn 9: 1), e a benção não poderia ser removida.
Nm 23: 20 - "Eis que recebi mandado de abençoar; pois ele tem abençoado, e eu não o posso revogar."
- Talvez porque Canaã seria motivo de vergonha para seu pai (Cão) assim como Cão foi vergonha para seu pai Noé. O que Cão fez para Noé, Canaã faria para Cão.
- Acima de tudo, porém, a maldição de Noé foi profética. As bençãos e maldições dos patriarcas eram profecias.
Noé não foi a causa da maldição, ele simplesmente profetizou, foi boca de Deus.
Os filhos de Noé - ( a origem das nações )
Cão = preto ou quente
Sem = nome
Jafé = expansão
Cão - seus descendentes : Canaã - os que habitavam a Palestina; Pute ( Líbia ); Mizraim ( Egito ); Cuxe ( Etiópia ).
As práticas cananitas e de seus descendentes, eram totalmente idólatras e imorais.
Os descendentes de Canaã foram os povos expulsos da terra prometida, por sua rebeldia a Deus. 


     
          Um blog editado por seguidores da Assembleia de Deus aparentemente estende a maldição de Cão a todas as populações não brancas, inclusive os índios americanos.  Naturaliza-se a escravidão antiga e moderna e passa-se a mensagem quase explícita de que é necessário submeter os muçulmanos do Oriente Médio ("assírios", "babilônios" e "egípcios") aos "filhos de Jafé":
           

              http://igrejaemvilafelizpilar.blogspot.com.br/p/noe-era-descendente.html


           Já na página de mórmons cujo endereço também copio é explicada uma pretendida tolerância quanto ao ingresso de negros na igreja, tendo-se em vista o fim recente da praga bíblica.  Entretanto, o autor derrapa de forma bastante comprometedora pouco antes de chegar ao resumo-conclusão, ao afirmar sem meias medidas que os filhos de pele branca de casais "interraciais" escaparam do estigma da maldição:  

 http://apologeticamormon.blogspot.com.br/2010/10/o-sacerdocio-para-os-negros.html




         Conheço de longa data a vocação de certos conservadores para distorcer as palavras alheias.  Declaro então, com veemência, que esta postagem não é um libelo antievangélico.   Preciso também dizer que para cada um destes discursos escatológicos localizei dezenas de explanações de líderes religiosos que negam categoricamente qualquer validade ao mito camítico.   Quem desejar lê-las, precisa apenas colocar na busca do Google o nome de Marco Feliciano, que em regra recebe dos autores os adjetivos que lhe são devidos.  
        Todavia, esta denúncia é pertinente e muito atual.  Milhares de brasileiros negros "aprendem" que são netos distantes de criaturas danadas.  Convenientemente, não lhes prometem as chamas eternas, o que afastaria numerosos dizimistas, mas lhes induzem à submissão.  Milhares de brasileiros brancos "aprendem" que devem manter a hierarquia étnica como obediência a uma determinação divina, o que é extremamente nocivo à cidadania.  Por extensão, fica subentendido que um país formado por tantos amaldiçoados está condenado à subalternidade na política internacional.  
            Combatamos o mito camítico sempre e onde estiver, inclusive com as armas do Código Penal para quem incorrer em pregações racistas!   


terça-feira, 5 de março de 2013

O "homem comum" como sujeito da História


        
                                 Estátua de Raimundo Gomes localizada em Caxias, no estado do Maranhão

      Apesar de atuar como professor da rede pública estadual do Rio de Janeiro há treze anos, nunca havia postado, em quase um ano de edição deste blog, um texto composto para uso didático. Decido fazê-lo hoje motivado por uma inquietação recorrente.  Em alguns almoços atravessados por diálogos políticos, meu prezado amigo Alexandre Soares, entomologista do Museu Nacional, se queixou de ter sido apresentado na juventude a uma História do Brasil sem espaço para o confronto interno e marcada pela enganosa perspectiva de harmonia entre as diversas classes sociais.  Isto aconteceu pela primeira vez quando mencionei a guerra civil conhecida como Cabanagem, ocorrida na Amazônia durante a segunda metade da década de 1830, como o processo mais sangrento da política interna brasileira.  Soares não apenas me declarou que jamais ouvira falar na Cabanagem, como também confessou que outras rebeliões daquele período, como a Sabinada e a Balaiada, para ele eram simples termos praticamente desprovidos de conteúdo, meras recordações de leituras antigas e bastante superficiais.  Sobre a Guerra dos Farrapos sabia um pouco mais, circunstância facilmente explicável pelo espaço romanceado que este último conflito por vezes ocupa na mídia. 
         Alexandre é um homem culto, dedicado há mais de trinta anos ao estudo da Biologia, fluente em inglês a ponto de ter publicado na Inglaterra um livro naquele idioma sobre a sua especialidade, interessado em várias disciplinas.  Não gosto de chutes estatísticos, mas penso que posso dizer, a partir do exemplo exposto, que mais de 95% dos brasileiros desconhecem por completo o que foi a Cabanagem.  Não duvido sequer que a maioria dos paraenses e amazonenses compartilhe esta ignorância com o restante da população, mesmo que vivam nas mesmas municipalidades em que aconteceram os referidos combates e massacres.
       O esquecimento das rebeliões regenciais pelos brasileiros letrados e iletrados me traz à memória uma frase do historiador Boris Fausto sobre a sociedade da Primeira República, que transcrevo abaixo:

"[...]o voto não era obrigatório e o povo, em regra, encarava a política como um jogo entre os grandes ou uma troca de favores". (História do Brasil.  São Paulo: Unesp, 1998, p. 262)

       Excetuada a questão da obrigatoriedade do voto, a observação de Fausto, desgraçadamente, permanece atual.  Tendo residido por quase vinte anos na Região dos Lagos fluminense, que não cabe de forma exata na definição de grotão, pude perceber no cotidiano os severos obstáculos impostos ao "homem comum" como partícipe de processos decisórios.  As oligarquias municipais, não raro divididas em bandos rivais por razões das mais variadas e em regra inconfessáveis, atuam em conjunto para impedir que até a mais débil associação de moradores disponha de autonomia em suas reivindicações.  Os poucos indívíduos que ousam questionar as relações de poder tradicionais são confrontados com a lembrança de antigos laços de dependência de seus pais e avós perante "coronéis" eventualmente ainda vivos.  Por vezes, a ameaça de demissão de um parente, contratado pela municipalidade ou por empresa da família do suposto ofendido, é suficiente para calar o "rebelde"; em outras ocasiões, apela-se para a intimidação física. 
        Aos entraves impostos à participação popular, no sentido amplo e verdadeiro da expressão, inclusive na política "paroquial", soma-se o desconhecimento dos numerosos episódios da História do Brasil em que o "homem comum" decidiu tomar em mãos o próprio destino, desafiando abertamente seus opressores. Um deles foi a Balaiada, iniciada no Maranhão, com ramificações para outras províncias do que então se entendia como o Norte do país.
       Compus a adaptação abaixo contemplando uma turma do 1º ano do Ensino Médio, para a qual o planejamento pedagógico inclui a apreensão do papel do homem comum como sujeito ou agente da História. A leitura será realizada hoje à noite e espero que motive boas reflexões. Apresento meus agradecimentos à historiadora piauiense Claudete Dias, que não conheço pessoalmente, mas que viabilizou o trabalho com seus conhecimentos sobre o tema.                        
    
          

O “homem comum” como sujeito histórico: o caso da Balaiada

         O vaqueiro Raimundo Gomes Vieira Jutahy, cafuzo nascido na província do Piauí, trabalhava como capataz para o padre Inácio Mendes, dono de uma fazenda de gado próxima à Vila da Manga, no Maranhão.  Ele passava por este lugar conduzindo uma boiada, em certo dia do final de 1838, quando vários de seus companheiros, inclusive um irmão, foram presos.  O irmão seria acusado de homicídio, numa das táticas que o governo local utilizava para recrutar homens à força.
Os ministros da Marinha e da Guerra, entre 1837 e 1840, ordenavam com frequência que fossem trazidos homens de todas as províncias para servir na Artilharia da Marinha e na Cavalaria do Exército.  Os recrutados, depois de embarcados em navios comerciais, seguiam para o Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco.  No Piauí e no Maranhão, o recrutamento atingia as famílias pobres de caboclos, mulatos e outros mestiços, sendo os brancos geralmente poupados.  A possibilidade de ida para os chamados “matadouros do sul” causava imenso pavor entre os camponeses locais.
 Raimundo Gomes tentou libertar seu irmão apelando às autoridades municipais, mas não foi atendido. Dias mais tarde, o jornal Crônica Maranhense noticiou que uma “partida de proletários”, formada por no máximo quinze homens, tinha atacado o quartel do destacamento da Vila da Manga, soltando os presos, roubando o armamento, prendendo o ajudante que estava no local e obrigando o subprefeito a fugir.  O líder do grupo, Raimundo Gomes, lançou em seguida um manifesto no qual exigia o restabelecimento dos poderes do juízes de paz, autoridades eleitas, e a demissão dos prefeitos e subprefeitos, cuja existência não era prevista pela Constituição.
            O manifesto correu toda a província, e o governo estabelecido em São Luís destacou duzentos homens da tropa de linha para prender os rebeldes.  Enquanto isso, o grupo de Raimundo Gomes cruzava os povoados vizinhos a Manga, crescendo com o apoio da população sertaneja.  Outras cadeias foram invadidas e mais presos libertados.  Em abril de 1839, dois mil homens ocuparam a Vila do Brejo e outros mil rumaram para Parnaíba, no Piauí, onde o movimento contava com simpatizantes. Em maio, um exército com seis mil componentes cercou a principal cidade do interior do Maranhão, Caxias.  Um de seus chefes, fazendeiro em Campo Maior, no Piauí, atendia pelo imponente nome de Lívio Lopes Castelo Branco; outros eram conhecidos como Milome, Mulungueta e Caboclo Coque.  Depois de dois meses de sítio, Caxias caiu.
            A rebelião ficaria conhecida como Balaiada, nome que derivou do apelido de Manoel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio.  Mulato livre, filho de camponeses e fabricante de cestos, ele se aliou a Raimundo Gomes quando um oficial legalista violentou sua mulher e suas filhas.  Mal sabia ler, mas logo se tornou um dos principais líderes do movimento e teve participação importante na conquista da cidade de Caxias. 
            Os balaios contaram com o reforço de guerreiros indígenas das serras situadas entre o Piauí e o Ceará, além de outros que habitavam o interior do Maranhão.  No decorrer das lutas, receberam a adesão de quilombolas.  Liderados por Cosme Bento das Chagas, que fugira da senzala e da cadeia, três mil escravos rebeldes se concentravam nas matas maranhenses de Codó e na costa entre Barra do Tutoia e Priá.  Considerado um mero bandido pela “boa sociedade” da província, Cosme adotava o título de Tutor e Imperador das Liberdades.  Distribuía cartas de alforria aos escravos e tentou criar uma escola de ler e escrever no quilombo da Lagoa Amarela, situado na comarca do Brejo.
Os rebeldes eram numerosos, mas possuíam armamento muito inferior ao das forças do governo, fato que os obrigava a adotar táticas de guerrilha.  A partir de setembro de 1840, enfraquecidos, os balaios se escondiam em serras e caatingas fechadas.  Perseguido no Maranhão por forças vindas do Piauí, Raimundo Gomes entrava em fazendas, matava os proprietários e soltava os escravos.  Reunindo-se na localidade maranhense de Pacoti, duzentos balaios tomaram uma fazenda e libertaram seus cativos, que construíram quilombos nas florestas próximas.
A repressão à Balaiada trouxe grande prestígio para o coronel Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias, que assumiu a presidência e o Comando das Armas da província do Maranhão em fevereiro de 1840. Manoel Ferreira, o Balaio, já havia morrido.  Ferido gravemente na cidade de Caxias, em outubro de 1839, não resistiu à gangrena.  Raimundo Gomes, esgotado por dois anos de guerra e reconhecendo a superioridade militar das tropas imperiais, acabou por aceitar a anistia do imperador. Cosme Bento das Chagas, combatido pelo próprio Luís Alves de Lima, que marchou contra o quilombo por ele governado, foi ferido, capturado e processado na Justiça, recebendo doze acusações e sendo condenado à morte em abril de 1842. 
Lívio Lopes Castelo Branco, como outros homens instruídos que participaram da Balaiada, afastou-se do movimento ao notar que os balaios radicalizavam suas posições e que seria impossível qualquer acordo com as autoridades.  Refugiou-se no Ceará, continuando a ser perseguido por forças cearenses, pernambucanas e paraibanas.  Preso, teve o benefício da anistia em agosto de 1840, mas recusou-se a assinar um documento que o proibia de ingressar novamente no Piauí e foi embarcado para o Rio.  Retornou à província de origem em 1842, com a Balaiada já extinta, e passou a se dedicar à imprensa, fundando vários jornais.  
(Adaptado de Claudete Maria Miranda Dias. Balaios e bem-te-vis: a guerrilha sertaneja. Teresina: Instituto Dom Barreto, 2002)    

sexta-feira, 1 de março de 2013

Um país que homenageia seus campeões escravagistas

      
                           Joaquim Octavio Nébias (1811-1872), parlamentar paulista contrário à Lei do Ventre Livre 

       O quantitativo da escravatura no Brasil, após a lei (de 1850) que impôs uma proibição efetiva ao tráfico negreiro, diminuiu continuamente.  Salvo raras municipalidades e mesmo assim em períodos específicos, os números somados das mortes e alforrias superaram, ano a ano, os nascimentos de crianças escravas.  Qualquer observador atento às estatísticas, no terceiro quartel do século XIX, seria capaz de prever o fim do cativeiro no país, ainda que a médio prazo.
     Entretanto, as cifras desfavoráveis não desanimaram os partidários do escravismo, que se mobilizaram, numa primeira etapa, para manter o debate sobre o processo de emancipação fora do Parlamento; quando isto se tornou inviável, lutaram para bloquear as medidas pró-abolição ou reduzir sua eficácia aprovando emendas favoráveis aos senhores de escravos.
       Durante os meses de julho, agosto e setembro de 1871, a Câmara dos Deputados e o Senado do Império assistiram ao que talvez tenha sido a maior batalha parlamentar ocorrida no Brasil, dela emergindo a chamada Lei do Ventre Livre.  Os filhos das mulheres escravas não mais acompanhariam a condição jurídica de suas mães, embora se vissem obrigados a prestar serviços aos proprietários delas até os 21 anos de idade.  Os senhores que abrissem mão desta prerrogativa poderiam, em troca de uma indenização de seiscentos mil-réis, determinar sua libertação formal aos oito anos. 
      O Parlamento brasileiro, naquela altura, era inteiramente dominado pelo Partido Conservador, ao qual pertencia o presidente do Conselho de Ministros (chefe de governo), o visconde do Rio Branco.  Mesmo assim, muitos membros das duas Casas parlamentares se rebelaram contra o que consideravam uma afronta à propriedade privada e, pelo menos no discurso,  uma irresponsabilidade política que resultaria no colapso da lavoura cafeeira, principal atividade econômica do país.  Não transcreverei aqui os longos debates de 1871.  Os que desejarem lê-los na íntegra podem facilmente iniciar uma busca com a expressão "Anais da Câmara", tendo acesso em poucos cliques aos velhos livros do Poder Legislativo.
     Conheço suficientemente a amplitude que a propriedade escrava alcançou no Brasil para  querer construir sobre o nome de cada homem que ao longo de sua vida herdou ou comprou um par de cativos a imagem de um vilão de novela como o Leôncio de A Escrava Isaura.  O que pretendo salientar é a existência, numa avançada altura do século XIX, de uma corrente política disposta a quase tudo para estender pelo maior tempo possível a existência da escravidão, agora restrita, no continente americano, ao Império bragantino e à colônia espanhola de Cuba.  Seus adeptos, na quase totalidade, pertenciam às províncias cafeicultoras do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo.  Não é difícil identificá-los nominalmente; os opositores do Ventre Livre, vencidos na Câmara por 61 a 35, constam de várias obras de referência.  Adotarei como fonte um parágrafo do historiador monarquista Brasil Gérson (1904-1981):

"Mas, dentre os votantes, quais os contrários de maior renome político? O Conde de Baependi, Belisário de Sousa, Ferreira Viana, Duque Estrada Teixeira, Paulino Soares de Sousa, Pereira da Silva, Diogo Pereira de Vasconcelos, Perdigão Malheiros, Andrade Figueira, Ferreira da Veiga (sucessor de Evaristo, também não abolicionista, na sua cadeira de deputado por Minas), Jerônimo Penido, Gama Cerqueira, Joaquim Nébias, Antônio Prado e Rodrigo Silva- e com a ressalva de que os dois últimos, conservadores paulistas, moderados, depois mudariam de atitude, e convertendo-se Rodrigo Silva, aliás, no próprio Ministro da Agricultura, em 88, do Gabinete João Alfredo, o da Lei Áurea, e Antônio Prado, futuro senador, no grande líder, com o jornalista Antônio Bento, do abolicionismo em São Paulo". (A escravidão no Império.  Rio de Janeiro: Pallas, 1975, p. 215) 

           
         Sublinhei os nomes de alguns daqueles deputados gerais para destacar que o Estado brasileiro foi pródigo em reconhecer seus presumidos serviços à nação, como notamos após uma breve busca de imagens, cujo resultado exponho abaixo:   

Rua Conselheiro Pereira da Silva, em Laranjeiras, cidade do Rio de Janeiro

                                                Rua Andrade Figueira, em Barra Mansa (RJ)


                                        Rua Conde de Baependi, no Flamengo, cidade do Rio de Janeiro

                                                                                
                                     
                                              Escola Técnica Ferreira Viana, no Rio de Janeiro


                                                                  Avenida Conselheiro Nébias, em Santos (SP) 

                                 
                                      
Rua Perdigão Malheiros, no bairro Coração de Jesus, em Belo Horizonte



                                                          


           O Império escravista, naturalmente, reconheceu o status de seus políticos escravagistas, mesmo que estes, em algumas circunstâncias, tivessem rejeitado certas razões de Estado.  Não existiam ainda as leis que impedem os poderosos de ser homenageados em vida, dando seus nomes a logradouros públicos ou a estabelecimentos sob gestão estatal.  Porém, a República que sucedeu à Monarquia decrépita reorganizando a ordem oligárquica não reparou tais distorções.  Os campeões do escravagismo permanecem nas placas de bairros nobres ou populares, cidades de variados tamanhos, ruas, avenidas e escolas públicas de todos os níveis.  O passado, como muitas vezes já foi dito, não conhece o seu lugar, e frequentemente se mostra incômodo.