sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Esclarecimentos à população de Itaguaí e aos leitores do blog História & Política

Vila de Itaguaí, vista pela inglesa Maria Graham em 1823
          
        Fui surpreendido na manhã de hoje por um ataque sem motivação ideológica (ao que tudo indica), vindo de um endereço inesperado.  Jupy Junior, do jornal Atual, editado na cidade fluminense de Itaguaí, citou meu nome numa matéria em que critica de forma contundente a administração daquele município.  Embora não me acuse da prática de qualquer crime, o texto conduz, sem dúvida, a interpretações que sugerem minha participação em esquema de superfaturamento de serviços e/ou favorecimento ilícito.  Transcrevo na íntegra as palavras daquele jornalista, às quais julguei indispensável uma pronta resposta.      


GRANA ALTA: Ao leitor desavisado pode parecer que a cidade de Itaguaí é um mar de prosperidade em meio a uma turbulenta crise nacional e mundial. A quem argumenta “quando nunca estivemos em crise?” deve-se dizer imediatamente: “gastos públicos exigem cobranças públicas”. Pois bem, em Itaguaí, a prefeitura gasta como quer, em que quer, e nada parece demover o governo municipal da determinação de comprar, comprar e contratar. Fica difícil justificar, então, a contratação por mais de R$ 77 mil de um historiador – Gustavo Alves Cardoso Moreira – para, segundo texto do Jornal Oficial número 384, “fotografar, editar e transcrever partes textuais que constam nos livros de editais da Câmara Municipal, livros de termos de juramentos da Câmara Municipal e do livro de alistamento de eleitores do município de Itaguaí”. O contrato, cuja reprodução ilustra esta página – tem validade de um ano. Vale dizer que o historiador vai receber R$ 6,43 mil mensais. Não há qualquer justificativa para a contratação de um historiador de fora da cidade quando há vários professores de história da rede municipal, poderia argumentar um outro leitor. Pois bem. Há mais que precisa ser explicado pela prefeitura, embora o ATUAL venha, sem sucesso, requisitando esclarecimentos que são ignorados pela Secretaria Municipal de Cultura (Secom).

        Jupy Junior, apesar ter reproduzido o contrato para seus leitores, na melhor das hipóteses não o leu; na pior, simplesmente não entendeu as cláusulas de pagamento.  Não receberei "R$ 6,43 mil mensais".  O prazo de um ano é uma estimativa (realista) que admite "prorrogação, mantidas as demais cláusulas do contrato e assegurada a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro". Minha remuneração será dividida em três parcelas, condicionadas à conclusão de cada etapa da empreitada.  Posso afirmar, resumindo a situação, que enquanto os trabalhos estão em pleno curso, não embolsei sequer um centavo.
      O jornalista, na ânsia de atingir o governo local por todos os meios ao seu alcance, sem se preocupar com os danos morais que venha a causar a terceiros, incorreu em pelo menos uma grave omissão.  Não vou chamá-lo de desonesto.  Prefiro acreditar que se satisfez com informações superficiais, e desta maneira ignora que conforme o Termo de Referência 1283/2014 deverei, além de "fotografar, editar e transcrever", produzir uma "contextualização histórica" dos livros em questão.  Atuei como professor concursado em escolas municipais do Rio de Janeiro, Duque de Caxias e Maricá, e poderia redigir muitas laudas sobre as qualidades dos profissionais que, enfrentando diariamente as mazelas mais assustadoras da sociedade brasileira, conseguem ensinar.  Entretanto, os serviços mencionados no contrato exigem, em primeiro lugar, total familiaridade com a caligrafia típica do século XIX, qualificação ausente, por certo, do currículo da maioria; em segundo, a referida contextualização e a própria compreensão de boa parte dos manuscritos estão relacionadas ao estudo sistemático da História do Brasil Império, que empreendi em meus cursos de mestrado e doutorado.
        Enganos à parte, reconheço que Jupy Junior soube me irritar, quando empregou a lamentável expressão "historiador de fora da cidade".  Contra seu acesso de bairrismo, que já seria inadequado nos primórdios de Itaguaí, então habitada e governada por portugueses categorizados como "brasileiros adotivos", direi primeiro que no início da República, na ocasião em que esteve em pauta a extinção do município, coube ao carioca João Curvelo (ou Cruvello) Cavalcanti, ao lado do itaguaiense Antônio de Oliveira Freitas, a luta política contra aquela proposta¹.  Por consideração aos meus leitores e amigos, aos do Jornal Atual, e a todos os moradores de Itaguaí, exibirei também uma defesa contra a eventual versão de que sou um perverso forasteiro que surgiu do nada para saquear o Erário municipal.  A inexigibilidade de licitação, estabelecida no contrato, se baseia em diversos fatos cuja comprovação não demanda muito esforço:

1- Durante meu curso de mestrado, realizado no biênio 2004/2005 na Universidade Federal Fluminense (UFF), estudei com profundidade aspectos da vida política e da economia de Itaguaí no século XIX.  Os interessados têm acesso direto à dissertação que resultou destas pesquisas em:


2- Ampliei vistas, no doutorado, a todo o Sul fluminense.  Porém, Itaguaí, em minha tese, defendida em março deste ano, continuou a merecer partes específicas, localizáveis a partir do Índice do trabalho, acessível no link: http://www.historia.uff.br/stricto/td/1558.pdf.  Posso, portanto, sem qualquer abuso ou distorção de linguagem, me definir como um professor doutor especializado na História da região geográfica que abrange Itaguaí.

3- Fui o redator da maior parte do livro Itaguaí, a cidade do Porto (coletânea de nossas memórias), publicado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Itaguaí em 2010.

      
       Embora meu nome conste na ficha técnica como pesquisador-colaborador, escrevi a Introdução (páginas 6 e 7), a sequência denominada História Política, Econômica e Demográfica de Itaguaí (páginas 9 a 97) e os textos avulsos Rua Amélia Louzada (página 110) e Cruvello Cavalcanti (página 111).  Qualquer dúvida a este respeito será eliminada pela comparação com os trabalhos acadêmicos citados acima, mas acrescento ainda que guardo no meu exemplar da obra um testemunho da ex-secretária de Cultura, além de ter autografado os que foram distribuídos na tarde do lançamento do livro, na Casa de Cultura (fotos abaixo). 




4- Fui palestrante e participei da organização dos diversos Encontros de Memória que ocorreram no Teatro Municipal no final da década passada.  Além de disponibilizar ao público os trabalhos que apresentei (devidamente arquivados na Biblioteca da Casa de Cultura), convidei para aqueles eventos especialistas de alto gabarito, mestres e doutores, que não somente expuseram seus saberes para a plateia como também proporcionaram a Itaguaí uma visibilidade positiva.     







5- Apresentei, em congressos regionais de História, comunicações de pesquisa relacionadas a Itaguaí.




       Apesar da rapidez com que dados ingressam e desaparecem da Internet, é fácil encontrar online alguns textos de minha autoria que dizem respeito, total ou parcialmente, a Itaguaí. 






         O jornal O Extra, em edição especial de 2 de julho de 2011, me conferiu destaque em matéria sobre a  História de Itaguaí. 




            
        Os processos que levam à formação de opinião são complexos e cheios de subjetividade, e não me espantarei se Jupy Junior, mesmo depois desta exposição, prosseguir me apontando como alienígena, paraquedista ou algo do gênero.  Mas seria melhor, na minha opinião, que se dedicasse mais a mostrar o que sabe fazer, excluindo panfletos mal fundamentados.                  

Nota:

1- Honório Lima.  Notícia histórica e geográfica de Angra dos Reis.  Angra dos Reis: Prefeitura Municipal, 1972, p. 252.        
                  
            




quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Um pouco sobre degredados e colonizadores


       

        A premissa de que "O Brasil não dá certo, não funciona, por ter sido colonizado por degredados" é um dos principais suportes, senão a base argumentativa, da corrente de opinião (digamos assim) definida por alguns como "a turma do racismo contra".  A tese carece, obviamente, de sustentação com base na historiografia contemporânea; mais ainda, do respaldo das historiografias "antigas", cujos autores, em boa parte, produziam suas obras impulsionados pelo ufanismo.  Isto não impede que continue a reunir adeptos, inclusive entre pessoas instruídas.
            Folheando O Globo de 22 de novembro de 2014, tive a desagradável surpresa de ver o excelente escritor Carlos Eduardo Novaes endossando o mito, nos trechos finais de um texto até então instigante sobre corrupção.  Transcrevo na íntegra suas palavras, que além da velha referência à "escória da Península Ibérica" recuperam o mote nada recente de que "merecíamos colonizadores melhores".                               

"Foram os portugueses, porém, que disseminaram a prática da corrupção.  Diferentemente dos peregrinos ingleses que desembarcaram na América do Norte para se fixarem e construírem uma nova vida, os portugueses que vieram atrás de Cabral eram uma escória, um bando de renegados e desterrados que só queriam se aproveitar deste terreno baldio sem ninguém, para enriquecer e voltar à terrinha. Pois foram eles que se encarregaram de fiscalizar o contrabando do pau-brasil, aves, ouro e especiarias contra a Coroa Portuguesa.  Não podia dar certo.  Mas aqueles aventureiros portugueses estabeleceram um padrão de rapinagem que de lá para cá só fez se aprimorar.  Durma com uma corrupção dessas!" 

         Não ignoro que o espaço de uma matéria de sete ou oito parágrafos, destinada a causar impacto no caderno de ideias de um jornal de grande circulação, é insuficiente para o desenvolvimento ideal de determinados temas.  Calculo também que Novaes pretendia, muito mais do que ser historicamente exato e inspirar questões do ENEM, investir contra a tolerância do brasileiro médio (inclusive seus leitores) para com a roubalheira generalizada que se estende, sem dúvida, desde fases remotas da História do país.  Julgo, porém, que um formador de opinião precisa ser mais cauteloso antes de proferir sentenças que nada esclarecem e apenas alimentam o pior gênero de Sociologia de botequim. 
       Breves momentos de recurso à lógica são o bastante para desconstruir o lugar comum segundo o qual "nosso" colonizador típico era o degredado.  Embora corriqueira na monarquia portuguesa da Idade Moderna, a aplicação da pena de degredo não ocorria somente na direção da terra do pau-brasil. Houve degredados em Goa e nas demais dependências do Estado da Índia,  em Angola, Moçambique, Guiné, nas ilhas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe.    Partindo-se do princípio de que não haveria razão para padrões totalmente diferenciados de ocupação permanente na Ásia, na América e na África, tratando-se em regra de possessões tropicais, seria necessário, para viabilizar o projeto de povoar com os criminosos, que Portugal dispusesse do maior contingente de bandidos do planeta.  Mesmo assim, é impossível acreditar, como Novaes aparentemente indica, que "renegados" e "desterrados" teriam preferência na distribuição dos cargos públicos mais prestigiados ou que conferissem maiores oportunidades de enriquecimento. Muita coisa pode ser dita, a partir de incontáveis fontes, sobre a corrupção na América Portuguesa, mas a mera presença de grupos de indivíduos banidos passa longe de constituir a chave da explicação de tal fenômeno.  
        Observemos uma situação específica.  Luiz Alberto Moniz Bandeira descreveu desta maneira o estabelecimento do Governo Geral em meados do século XVI:                                                                                                         
Tomé de Sousa chegou à Bahia de Todos os Santos em 29 de março de 1549, comandando três naus- Salvador, Conceição e Ajuda, duas caravelas- Rainha e Leoa- e um bergantim – S. Roque.  Levara “320 pessoas de soldo, em que iam muitos oficiais de todos os ofícios”, algumas dezenas de degredados, e acompanhado fora por seis sacerdotes da Companhia de Jesus e vários fidalgos, entre os quais Rodrigo de Argollo, nomeado provedor da Fazenda da Bahia, e Diogo Moniz Barreto, que desempenharia o cargo de provedor do Hospital e depois (1554), o de alcaide-mor da cidade do Salvador, além de seu criado, Garcia D’Ávila, então com 21 anos, homem d’armas, que ele designara, “por sentir que é apto”, almoxarife da cidade e dos seus termos, bem como da alfândega¹.

      Percebe-se que os degredados, que aliás não ficavam impossibilitados de exercer seus respectivos ofícios, representavam uma nítida minoria ante os trabalhadores qualificados que acompanhavam o governador.  Além disto, os principais empregos já estavam destinados, desde a saída da metrópole, a homens tidos como nobres.  Convém nos lembrarmos, em seguida, do papel que cabe à pobreza em quase todos os movimentos migratórios.  O superpovoado norte de Portugal legou ao Brasil, desde cedo, vastas levas de camponeses que atravessavam o Atlântico em busca da sobrevivência.  Conforme João Fragoso,          

No século XVI, as pressões demográficas sobre a terra e as fomes recorrentes transformaram a região de Entre Douro e Minho numa área caracterizada pela contínua “fuga de gentes”.  Fugas, primeiro para as ilhas do Atlântico e depois, em função das dificuldades econômicas e sociais, para outras partes, em especial o Brasil².

            Outra ressalva se faz necessária: nem todos os degredados eram meliantes incorrigíveis ou tipos antissociais.  Geraldo Pieroni, que estudou os processos do Santo Ofício que resultaram em degredo para o Brasil, elaborou o quadro exposto logo abaixo³.  Destaco que o termo "falsidades", segundo o mesmo autor, se referia ao enquadramento por falso testemunho, a que se expunham, entre várias possibilidades, os cristãos-novos que supostamente tinham mentido sobre suas práticas "judaizantes" ou tentado proteger parentes e amigos dos tentáculos da Inquisição.          




           Finalmente, deixo aos que insistem em construir fantasias a respeito de colonizadores alternativos, breve nota sobre uma das opções que foram colocadas, já no século XVI, à dominação portuguesa sobre o litoral brasileiro: 

Próximo do rei, amigo do Almirante Coligny e detentor de excelentes relações com destacados membros da nobreza, Villegaignon não teve dificuldades para angariar um vasto leque de contribuições- do Rei inclusive.  Essas dádivas permitiram ao cavaleiro de Malta armar uma esquadra de três navios de 200 toneladas, recrutar cerca de 600 homens- muitos dos quais nas prisões de Rouen e Paris- e partir para o Brasil4.  


Notas:

1- Ver O feudo.  A Casa da Torre de Garcia D’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 100.
2- Ver A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). In: O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII).  Orgs. João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 36).
3- Ver Banidos: a Inquisição e a lista dos cristãos-novos condenados a viver no Brasil.  Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 50. 
4- Ver Jean Marcel Carvalho França.  Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1531-1800.  Rio de Janeiro: EdUERJ; José Olympio, 1999, p. 19.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Carta ao pregador do terceiro turno




                        Nota publicada no site do Clube Militar sobre a última eleição presidencial


Desafortunado coxinha,

          Quando você proclamou, em 27 de outubro, a nulidade das eleições presidenciais a partir da montagem de quinta categoria que simulava uma zerésima impressa com 400 votos para Dilma, conseguiu me causar um pouco de tédio e irritação, ainda que sua atitude fosse até certo ponto previsível.  Seria possível que alguém não percebesse os números mal alinhados, o zero único conferido a Aécio (enquanto todas as outras cifras tinham quatro algarismos), a discrepância entre os tais 400 votos e a falta de registro dos votos nominais?  Estaríamos diante de um caso de paralisia temporária das atividades mentais, provocada pelo choque com a derrota do PSDB, ou de mera desonestidade, apesar do seu habitual discurso moralista?      


            

         Opto pela primeira alternativa, pois na sequência dos acontecimentos nem você, nem o produtor da canalhice, nem qualquer dos seus divulgadores voltou para explicar como os componentes da mesa eleitoral, diante de um golpe tão primário, deixariam de exigir a troca da urna, mesmo que todos fossem petistas roxos escolhidos por um TRE de igual cor. Algum presidente de seção, funcionário público de carreira (com rara exceção), seria desmiolado o suficiente para subscrever a zerésima viciada e enviá-la ao tribunal?  Imaginemos por dois minutos que sim.  Calculemos que a seção tivesse 450 eleitores habilitados e que 370 houvessem comparecido, apenas 150 deles votando em Dilma Rousseff. Concedo-lhe o handicap porque, conforme a sua versão, Aécio ganhou e foi roubado!  Desta maneira, encerrada a votação Dilma estaria com 550 votos computados, contra 370 votos nominais.  Que grande gênio, dentro da junta encarregada pela totalização, realizaria o milagre do fechamento das contas absurdas?             Tentando reforçar uma tese que já era delirante, você, nos dias que se sucederam, espalhou pelas redes sociais depoimentos gravados de um punhado de pessoas que em princípio não conseguiram votar, apresentando-os como prova irrefutável de que a eleição foi corrompida. Encarei o fato, desta vez, como parte do seu completo desconhecimento do que seja o processo eleitoral em um país com mais de 200 milhões de habitantes.  Desde os tempos de Pedro I, eventualmente Souza chega ao local determinado para a votação, assina como se fosse Sousa e vota inadvertidamente em seu lugar. Meia hora depois vem Sousa, em carne, osso e documentos diversos, e não exerce seu direito constitucional porque, para todos os efeitos formais e legais, já o fez.       
         Eu mesmo, numa das vezes em que exerci a presidência de uma seção eleitoral na Região dos Lagos fluminense, passei pela desagradável experiência de impedir por acidente o voto de uma eleitora. Logo antes dela, outra mulher votou e, ao invés de sair da área demarcada pelo lado oposto ao que tinha entrado, permaneceu no mesmo lugar, admirando a máquina branca e seus botões.  Sem notar, digitei o número do título da próxima da fila e liberei o acesso à urna. A antecessora, achando que seu voto ainda não havia sido registrado, reprisou-o e apertou a tecla "confirma", gerando de imediato uma confusão. Pensei que poderia enfrentar complicações judiciais, até que funcionários do TRE, comparecendo ao local, explicaram para mim e para a cidadã lesada que aquele tipo de erro era bastante comum, que não havia nada a ser feito e que a votação deveria prosseguir normalmente.  Embora estivéssemos no interior, onde os fiscais dos partidos costumam ser mais desconfiados e aguerridos, ninguém me lançou a suspeita de tirar voto de X para dá-lo a Y.
       É lógico que não estou afirmando que o "nosso" sistema eleitoral funciona inteiramente à prova de fraudes, mas nem uma criança esperta acreditaria que trambiques esparsos envolvendo troca de identidades, impugnação de eleitores e outras situações excepcionais resultariam na diferença de mais de 3,4 milhões de votos imposta por Dilma a Aécio.  Aceite, portanto, até para deixar de se expor à chacota geral da nação, a obviedade de que a coligação de interesses e ideias materializada na candidatura de Dilma Rousseff obteve mais apoio popular do que a outra, formada em torno da figura de Aécio Neves. 
      Talvez nem valesse a pena escrever os cinco parágrafos anteriores se o problema estivesse limitado à eleição propriamente dita.  Entretanto, você decidiu ir além, e por caminhos tortos. Ofertou-me, e ao país inteiro, um precipício com três bordas: pela primeira, retornaríamos a um regime como o que foi estabelecido em 1964; pela segunda, o Exército entraria em cena somente para derrubar Dilma, cassar os direitos políticos dos integrantes da esquerda e, dois ou três meses depois, gerenciar um pleito "democrático" em que Aécio não enfrentaria concorrentes reais; pela terceira, que indica a medida da sua generosidade, ocorreria apenas o afastamento de Dilma e a posse de Michel Temer, devidamente intimado a governar com o programa econômico tucano debaixo do braço; em suma, tudo menos o PT: até as demais forças que, ao longo dos últimos doze anos, sustentaram os governos petistas. 
        Sabendo de antemão que a democracia, no seu entender, tem como pré-requisitos básicos a subordinação de elementos "inferiores" aos "superiores" e a resignação de todos à influência do Capital, não cairei na ingenuidade de gastar retórica para desconstruir ideias tão arraigadas. Mas quero, apesar de tudo, trazer para sua reflexão certos dados de realidade.
        Os coronéis e generais de hoje, que eram jovens nos tempos das presidências de Figueiredo e Sarney, viram toda a responsabilidade moral sobre as torturas, assassinatos e cassações praticados pelos agentes da ditadura ser depositada nos ombros de seus predecessores e chefes. É verdade que vários historiadores especialistas em Brasil República se referem aos anos compreendidos entre 1964 e 1985 como o período da "Ditadura Civil-Militar".  Todavia, para minha infelicidade (e dos demais), historiadores não costumam alcançar muito êxito na dissolução de lugares comuns repetidos exaustivamente em toda parte, ao longo de décadas. O cidadão pouco escolarizado, nas ruas e nos bares, e o cidadão letrado, nos jornais e nas revistas, continuam a empregar a expressão Ditadura Militar, pura e simplesmente. Enquanto isso, muitos dos filhos dos civis que participaram da articulação do golpe, contribuíram com dinheiro e logística para a eficácia do aparato repressivo e doaram milhões para as campanhas eleitorais da ARENA, recebendo em troca vantagens de toda natureza, constroem para seus pais, na mídia, a aura póstuma de bons democratas, defensores da liberdade e filantropos.
     Não desconheço que oficiais militares, em determinado gênero de piadas, são submetidos a caricaturas que desqualificam sua inteligência, mas quase todos, e sobretudo os que ascendem aos postos mais altos, ingressam na carreira através de concursos disputados e realizam estudos de nível universitário, sendo obrigados a uma constante atualização de conhecimentos.  Torna-se difícil, "meu" iludido coxinha, crer que eles queiram servir como massa de manobra para gente como você, que reproduz nas redes sociais as teorias conspiratórias do Lobão, admira Danilo Gentili como campeão dos direitos individuais, dorme tarde para se solidarizar com o canto do exílio de um Diogo Mainardi e identifica em Olavo de Carvalho a maior liderança intelectual do século vigente. Mesmo que você, acompanhado por vinte ou trinta dos seus correligionários, desenhe tarjas pretas com guache na própria cara e grite ridículas palavras de ordem noite e dia, durante meses, perto da entrada de algum quartel, a tropa não sairá da caserna, exceto talvez para enxotá-lo.  Ninguém em sã consciência pretende se tornar, na velhice, alvo da execração pública e vilão solitário em manual escolar.  Este filme eles já conhecem.
      Para finalizar, faço meus pedidos: cerre seus ouvidos quando meus correligionários mandarem-no apreciar uma gestão de direita no Paraguai ou uma intervenção militar em Burkina Faso.  Confesso que já sugeri, no calor de mais de uma briga, que reacionários e deslumbrados fossem lavar pratos e privadas em Miami, mas ignore até as minhas palavras, se qualquer dia sobrar para você.  Uma eleição nacional não pode dispensar a sua presença.  Que graça terá a disputa presidencial de 2018 sem um coxinha de estimação fazendo eco aos planos infalíveis de Merval Pereira para devolver Brasília ao tucanato?  Que será da nossa combatividade se faltarem os seus compartilhamentos das carrancas de um Arnaldo Jabor próximo dos oitenta anos? Como vamos nos animar a bater em um saco de pancadas tão roto quanto o PSDB sem você para nos dizer que Geraldo Alckmin é a reserva moral do Brasil e único homem capaz de salvá-lo?  Fique.            
                  
           



                

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Desagravo a João Ubaldo Ribeiro


       

       Ainda garoto, no final da adolescência, aprendi a gostar da obra literária de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014).  Para ser bem preciso, comecei a admirar o autor mesmo antes de lê-lo. Certa vez, ouvi minha mãe, que havia comprado o livro Viva o Povo Brasileiro, contar para pessoas conhecidas alguns trechos da trama, iniciada numa Bahia que acabava de repelir a invasão holandesa de 1624. Nada comentei, mas fiquei fascinado com os cacos da narrativa e decidi me atirar àquela leitura de imediato.  Ideia das melhores: mergulhei durante semanas no universo ficcional de um extraordinário construtor de diálogos e de imagens de época.  Foi uma experiência tão marcante que logo ao sair da casa paterna, em 1990, adquiri outro exemplar, para não precisar pedir emprestado quando quisesse repetir a "viagem".  Tenho-o em mãos agora, amarelado nas bordas e com o estado da encadernação exigindo cuidado no manuseio.
         Resgato estes episódios do século passado porque no final da tarde de ontem, prolongada artificialmente pelo horário de verão, me deparei com uma das piores deturpações de discurso que já pude atestar.  Os leitores assíduos não se surpreenderão ao constatar que a coisa partiu do editor de mais uma das comunidades racistas do Facebook, até então ignorada por mim, cuja denúncia agora recomendo com fervor:                



           
        As sentenças exibidas na rede social foram copiadas com exatidão do livro: na edição que utilizo para conferir,  impressa pela Nova Fronteira em 1984, figuram nas páginas 244 e 245.  O fabricante da farsa, entretanto, esconde maliciosamente o fato de que as citações supremacistas integram um diálogo entre três personagens, o milionário Amleto Henrique Ferreira-Dutton (que as proferiu), o monsenhor Bibiano Lucas Pimentel e o major Francisco Gomes Magalhães, padrinho do filho caçula do primeiro.  A sórdida versão neonazista, ao invés de indicar o uso da ficção, atribui as opiniões discriminatórias ao próprio João Ubaldo, cuja biografia não permite a mais leve insinuação deste gênero.
        Senti-me na obrigação de trazer de pronto estas explicações ao público mais amplo que seja possível atingir, antes que pessoas impulsivas, talvez até agindo de boa fé, saiam pelo mundo apontando o criador do Caboco Capiroba e do Nego Leléu como um "escritor racista". Mas devo ir além do desmascaramento e da denúncia: de uma parte anterior de Viva o Povo Brasileiro, situada nas páginas 235-236, extraio esta cena desconcertante:     

      Mordiscando um brioche, Amleto pensou que já chegava a bandeja com os rins, ao ouvir passos atrás de si, na direção da porta da cozinha.  Virou-se em antecipação alegre, fechou uma carranca logo em seguida.
-Que é que estás a fazer aqui hoje?  Logo hoje?  Já não te disse para não vires aqui a não ser quando te chame?  Que queres hoje, não tens tudo arranjado?
      Uma mulher pequena, mulata escura, cabelos presos no cocoruto por dois pentes de osso, se deteve, fez menção de que ia voltar para a cozinha, terminou em pé diante dele, as mãos encolhidas no colo.
-Eu não vim atrapalhar. - disse. - Podes ficar sossegado.
       Amleto levantou-se, pareceu não conseguir conter a impaciência, cobriu os olhos com as mãos, ficou muito tempo assim.
-Dona Jesuína - falou, como se estivesse repetindo à força alguma coisa que o molestava muito. -Dona Jesuína, que quer a senhora, Dona Jesuína?  Que mais quer que diga, que mais quer que fale, que mais quer que dê?
-Chamas-me de Dona Jesuína e estamos sós.
-Pois claro que te chamo Dona Jesuína, pois claro que tive de habituar-me a isto, pois claro!
-Mas disseste que só me chamarias assim quando nos visse ou ouvisse alguém.
-Está certo, está certo, disse-te isto.  Mas que há de mais em que te chame respeitosamente de Dona Jesuína, pois que és Dona Jesuína, não te chamas Jesuína?
-Jesuína sou, mas também sou tua mãe.

      Sim: caso tivesse existido como homem de carne e osso, o baiano Amleto Ferreira (chamava-se somente assim antes de enriquecer e impor à sociedade o sobrenome do pai inglês que não o registrou), filho de mãe liberta, seria um quase perfeito ancestral ideológico do tipo "humano" que ficou conhecido, no anedotário político brasileiro, como white pardo.  Com uma diferença fundamental: embora não houvesse chegado aos bancos universitários do Império e devesse sua fortuna a golpes jurídico-financeiros, Amleto sobressai ao longo da história de João Ubaldo como líder nato, inteligente e perspicaz.  Imagino sem dificuldade o desprezo que revelaria ao ver bandos de pós-adolescentes tapados e desempregados crônicos de várias idades que, quando robustos, vão às ruas para bater em travestis e provocar briga com punks, e quando mais franzinos, ou medrosos, despejam toneladas de esgoto não tratado na Internet, através de fakes. Certamente resmungaria por cima do ombro: -Rebotalho, horda!
     Protejamos a imagem do grande João Ubaldo Ribeiro.  Quanto aos racistas, Polícia Federal neles! É o único argumento que entendem.        


terça-feira, 28 de outubro de 2014

Um pouco sobre as "culpas dos nordestinos"



        Tão logo o país tomou ciência da reeleição de Dilma Rousseff, começou a se repetir, em escala ampliada, um fato lamentável já verificado desde a divulgação das primeiras pesquisas de opinião sobre a eleição presidencial: manifestações escancaradas de preconceito contra nordestinos e (secundariamente) nortistas.  Tanto nas ruas de cidades das demais regiões, quanto (principalmente) na Internet, pudemos assistir ao espetáculo de natureza fascistoide de milhares de criaturas enraivecidas que cuspiam (e permanecem cuspindo) impropérios contra os "atrasados", "ignorantes" e "parasitas" que teriam impedido a vitória de uma modernidade (para lá de duvidosa) representada pela candidatura do playboy tucano.  
       Os clichês negativos associados aos nordestinos são tão velhos, no mínimo, quanto a existência do Brasil como Estado nacional, quando todas as terras acima do Espírito Santo eram classificadas como "O Norte".  Eles incorporam, em boa parte, a discriminação de viés socioeconômico, na medida em que os naturais do Nordeste são identificados com segmentos da população que se dedicam, no Sudeste e no Sul, a serviços não especializados ou mesmo informais; por outro lado, há neste fenômeno uma inegável vertente racista.  O homem nordestino, conforme um lugar comum muito difundido, seria o "brasileiro típico", um "não branco genérico", descendente em proporções indistinguíveis de portugueses, africanos e índios, portador dos defeitos que outros lugares comuns, construídos ao longo de séculos, imputaram aos mestiços dos mais variados tipos.
       O preconceito contra o Nordeste, sem dúvida, é irmão gêmeo univitelino do espírito de colonizado.  Repudiar o nordestino, apontá-lo como inferior, querer segregá-lo em guetos ou "deportá-lo" para o lugar de onde veio, são formas mais ou menos conscientes de renegar a própria brasilidade, contrapondo a ela o sentimento de pertencer a um Primeiro Mundo idealizado.  Interrompo aqui, porém, minhas considerações sociológicas.  Mais importante do que isto é apresentar aos descerebrados que perdem seu tempo amaldiçoando as próximas dez gerações de "paraíbas" e "baianos" um conjunto de dados reais, resultante da apuração das urnas em 26 de outubro:                 


.Em Divinópolis (MG, 152.058 eleitores inscritos, 126.734 votos válidos), Dilma Rousseff teve 55,49% dos votos válidos.
.Em Betim (MG, 267.320 eleitores, 208.312 votos válidos), Dilma teve 56,21%.
.Em Juiz de Fora (MG, 392.216 eleitores, 294.485 votos válidos), Dilma teve 63,34%.
.Em Ribeirão das Neves (MG, 185.431 eleitores, 141.242 votos válidos), Dilma teve 54,97%.
.Em Montes Claros (MG, 254.845 eleitores, 200.043 votos válidos), Dilma teve 62,05%.
.Em Ibirité (MG, 104.659 eleitores, 81.157 votos válidos), Dilma teve 60,62%.
.Na cidade histórica de Ouro Preto (MG, 58.347 eleitores, 44.914 votos válidos), Dilma teve 60,62%. 
.Em Patos de Minas (MG, 105.064 eleitores, 79.403 votos válidos), Dilma teve 50,70%.  
.Em Uberaba (MG, 218.859 eleitores, 166.964 votos válidos), Dilma teve 57,60%.
.Em Barbacena (MG, 96.392 eleitores, 73.971 votos válidos), Dilma teve 64,13%. 
.Em Uberlândia (MG, 462.387 eleitores, 355.878 votos válidos), Dilma teve 56,49%.
.Em Teófilo Ottoni (MG, 102.769 eleitores, 71.168 votos válidos), Dilma teve 57,51%.
.Na cidade universitária de Viçosa (MG, 54.674 eleitores, 41.696 votos válidos), Dilma teve 66,77%.
.Em Diadema (SP, 324.890 eleitores, 244.095 votos válidos), Dilma teve 53,85%.
.Em Hortolândia (SP, 138.585 eleitores, 103.590 votos válidos), Dilma teve 56,69%.
.Em Ferraz de Vasconcelos (SP, 120.731 eleitores, 88.323 votos válidos), Dilma teve 51,13%.
.Em Francisco Morato (SP, 112.572 eleitores, 81.426 votos válidos), Dilma teve 59,35%. 
.Em Itapevi (SP, 143.098 eleitores, 106.043 votos válidos), Dilma teve 55,73%.
.Em Itaquaquecetuba (SP, 213.849 eleitores, 158.410 votos válidos), Dilma teve 52,81%.
.Em Cubatão (SP, 95.161 eleitores, 71.202 votos válidos), Dilma teve 55,45%. 
.Em Serra (ES, 288.867 eleitores, 212.821 votos válidos), Dilma teve 55,36%.
.Em Cariacica (ES, 250.818 eleitores, 189.309 votos válidos), Dilma teve 53,49%.  
.Em Campos dos Goytacazes (RJ, 354.630 eleitores, 237.048 votos válidos), Dilma teve 54,67%.
.Em Volta Redonda (RJ, 220.895 eleitores, 161.447 votos válidos), Dilma teve 55,81%. 
.Em Nova Iguaçu (RJ, 573.714 eleitores, 384.432 votos válidos), Dilma teve 63,87%.
.Em Duque de Caxias (RJ, 620.477 eleitores, 420.217 votos válidos), Dilma teve 69,06%.
.Em Barra Mansa (RJ, 132.298 eleitores, 96.692 votos válidos), Dilma teve 55,32%.
.Em Belford Roxo (RJ, 319.962 eleitores, 217.464 votos válidos), Dilma teve 74,82%.
.Em Itaboraí (RJ, 164.992 eleitores, 114.112 votos válidos), Dilma teve 72,61%.
.Em Macaé (RJ, 150.802 eleitores, 96.515 votos válidos), Dilma teve 57,21%.
.Em Magé (RJ, 172.917 eleitores, 116.164 votos válidos), Dilma teve 65,60%.
.No município do Rio de Janeiro (4.832.846 eleitores, 3.201.055 votos válidos), Dilma teve 50,79%.
.Em São Gonçalo (RJ, 678.229 eleitores, 454.760 votos válidos), Dilma teve 68,03%.
.Em São João de Meriti (RJ, 364.099 eleitores, 240.341 votos válidos), Dilma teve 65,99%. 
.Em Nilópolis (RJ, 129.561 eleitores, 92.321 votos válidos), Dilma teve 61,34%.
.Em Rio Grande (RS, 151.561 eleitores, 114.348 votos válidos), Dilma teve 65,52%.
.Em São Leopoldo (RS, 162.652 eleitores, 125.348 votos válidos), Dilma teve 51,68%.
.Em Alvorada (RS, 141.929 eleitores, 104.186 votos válidos), Dilma teve 50,67%.
.Em Canoas (RS, 238.835 eleitores, 189.769 votos válidos), Dilma teve 52,02%.
.Em Viamão (RS, 166.973 eleitores, 123.957 votos válidos), Dilma teve 52,69%.
.Em Sapucaia do Sul (RS, 102.964 eleitores, 79.972 votos válidos), Dilma teve 60,63%.
.Em Pelotas (RS, 253.200 eleitores, 190.192 votos válidos), Dilma teve 54,62%.
.Em Várzea Grande, segundo município mais populoso de Mato Grosso (180.173 eleitores, 136.414 votos válidos), Dilma teve 58,52%.
.Em Corumbá (MS, 69.936 eleitores, 49.022 votos válidos), Dilma teve 56,35%.
.Em Águas Lindas de Goiás (GO, 77.611 eleitores, 56.654 votos válidos), Dilma teve 59,17%.
.Em Valparaíso de Goiás (GO, 72.911 eleitores, 53.905 votos válidos), Dilma teve 53,30%. 


         Esta amostra, à qual ainda poderíamos acrescentar um número expressivo de cidades médias e centros prósperos e/ou dotados de universidades, deixa claro que o triunfo de Dilma não se explica pelo "voto de cabresto dos nordestinos dependentes do Bolsa-Família" ou coisa que o valha.  Assim como a candidatura derrotada do PSDB, a aliança governista comportou uma vasta coalizão de interesses e ideias, à qual aderiram, em regra, os eleitores que desejam menos desigualdade, mais inclusão social, em todas as partes do Brasil. Atrasados e ignorantes, digo sem usar aspas, são os que tentam descarregar suas frustrações realimentando preconceitos ancestrais.    

domingo, 26 de outubro de 2014

Dia de eleição presidencial, dia de esmagar coxinhas


      Segundo o velho ditado, uma imagem vale mil palavras.  Não precisaríamos, de fato, sequer de uma curta legenda para descrever meu estado de espírito após a exuberante vitória da presidentA Dilma sobre o netinho mimado de São Tancredo em 26 de outubro de 2014.
    Todavia, como se trata de uma vitória coletiva, e do coletivo por excelência, devo dizer algumas palavras de pura euforia.  Menos de mil, prometo!

.Viva o trabalhador organizado!
.Viva o sertanejo nordestino!
.Viva o ribeirinho do Amazonas!
.Viva o povo dos morros e favelas do Rio!
.Vivam os quilombolas!
.Viva o funcionalismo progressista!
.Vivam os povos indígenas que lutam contra a força do latifúndio!
.Vivam os militantes secundaristas!
.Viva a intelectualidade de esquerda!
.Viva o Chico Buarque!
.Viva o Emicida!  
.Viva a Socialista Morena!
.Viva a Carta Capital! 
.Viva o gerente do Bradesco que vota no PT escondido!
.Vivam os ativistas anti-homofobia!
.Vivam os pais das classes C e D que estão colocando os filhos nas universidades!

       Considerando as involuntárias, porém inevitáveis lacunas, estendo minhas congratulações a qualquer pessoa que venha a se julgar excluída.  Por fim, segue um breve recado para "o lado de lá", sem pretensão de originalidade: -Lobão, cumpra o que prometeu: vá embora do Brasil, e de preferência leve o Guilherme Fiúza, o Danilo Gentili, o Roger Moreira (sou contra o terrorismo, mas jogo um carro-bomba em quem inventar que é meu parente), o Merval Pereira e o Dado Dolabella.  Saiam pelo aeroporto de Cláudio!     

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Sobre a importância de reeleger Dilma Rousseff



     
       Após o estouro da "onda Marina", poucas semanas antes do desafio das urnas, a candidatura de Aécio Neves, que até então patinava nas pesquisas eleitorais com índices em torno de 20%, ou mesmo abaixo, cresceu com rapidez.  Os 33,55% dos votos válidos alcançados por Aécio em 5 de outubro de 2014 representaram surpresa para muitos dos eleitores tucanos do tipo mais otimista. É certo que as imprecisões do discurso da candidata do PSB, a relativa fragilidade de suas bases políticas e seu despreparo para a batalha retórica que caracteriza todas as disputas para a Presidência da República contribuíram para aquela reviravolta.
      Entretanto, só podemos explicar a velocidade com que se deu o processo a partir da constatação de que, tendo no horizonte o inevitável naufrágio de Marina e a chance real de uma vitória de Dilma Rousseff já no primeiro turno, o poder econômico e as instituições de viés conservador, em sua quase totalidade, se articularam com eficiência no propósito de concentrar votos em Aécio.  Esta movimentação, algo discreta, não apenas levou o ex-governador de Minas Gerais ao segundo turno, com uma larga vantagem sobre a terceira colocada, como ainda logrou o sucesso, inédito desde pelo menos a eleição de Fernando Collor, de unificar a direita.
  Salvo raríssima exceção, liberais, anarcocapitalistas, liberais conservadores, conservadores autoritários, separatistas, monarquistas e fascistas declarados, com o reforço de um punhado de socialdemocratas verdadeiros, hoje cerram fileiras com o PSDB.  Seria ingenuidade ver nesta aglutinação apenas o objetivo comum de remover Dilma do Planalto, ou mesmo de interromper o "ciclo de governo" petista, expressão já utilizada em algumas edições do horário eleitoral. Organizada, sem dúvida, por forças cujo alcance se estende a todo o território nacional, a ascensão de Aécio obrigatoriamente se vinculou a um bom número de compromissos programáticos, procurando contemplar interesses variados e hierarquizados conforme o peso econômico e político de cada setor.
        Apesar do entusiasmo demonstrado por uma parte da extrema direita com as modificações ocorridas no Congresso, o fato é que tanto Dilma quanto Aécio conseguiriam, com facilidade, formar uma maioria parlamentar.  Não obstante os triunfos de reacionários boquirrotos como Jair Bolsonaro e Marco Feliciano, houve um significativo esvaziamento das legendas mais identificadas com a herança da ditadura civil-militar, o PP e o DEM, contradizendo os delírios dos saudosistas da era dos presidentes-generais, sempre prontos a se declararem porta-vozes de uma certa maioria silenciosa, de existência bastante discutível.
         Parece acontecer, no momento em que escrevo estas linhas, uma debandada parcial do eleitorado de Aécio, determinando, para o próximo domingo, tendência favorável à reeleição de Dilma.  Não é hora, entretanto, de euforia para a esquerda, mas sim de redobrar esforços para assegurar uma ampla vitória; ao inverso do que Aécio alega na televisão, o inimigo não é ele, mero playboy de meia idade, político profissional (no pior sentido do termo), senador sem causas, que deve a carreira, em sua maior parte, a um fenômeno bastante disseminado em nosso país: o nepotismo/filhotismo; é o conjunto das forças que se somaram ao PSDB.  
         Valendo-se do inevitável desgaste que se impõe ao PT pela circunstância de ocupar há doze anos a Presidência, a direita está preparada, em caso de vitória, para executar um vasto programa definido por retrocessos na área social. Um eventual governo Aécio não seria simples reedição dos anos FHC, mas uma reformulação daquelas políticas com o acréscimo de vários pontos da agenda de grupos de pressão ultraconservadores; em tal conjuntura, poderíamos esperar, além da compressão da massa salarial, pesados ataques aos movimentos sociais e ao sindicalismo, sustentados por um discurso oficial hipócrita repleto de chavões como "austeridade", "ordem" e "defesa da família".     
          Sob a perspectiva oposta, porém, a esperada reeleição, se confirmada no final de semana, deve causar enormes prejuízos à direita.  Caso seja batido pela quarta vez consecutiva, o PSDB verá a descrença em seu projeto de poder atingir até a militância mais entusiasmada.  Recém-derrotado, mesmo com tantos recursos à sua disposição, Aécio dificilmente obterá uma segunda chance em 2018, diante do tucanato paulista.  Este, por sua vez, tem contra si altos índices de rejeição na maioria dos estados. Atentemos para a quase ausência de FHC na campanha ora em curso,  enquanto Lula, mesmo aparentando saúde frágil, esteve com assiduidade ao lado de Dilma. Poucas coisas agradariam mais à esquerda brasileira do que ter como oponentes, daqui a quatro anos, as desgastadas figuras que atendem pelas alcunhas de Picolé de Chuchu e Zé Pedágio.  Restaria à direita, talvez, trabalhar desde já na construção de um novo Collor, ou de um novo Jânio.  
        Manter o PSDB fora do Planalto, contudo, não seria o principal benefício da vitória de Dilma. Negando nas urnas um mandato a Aécio, o eleitor brasileiro deixa uma mensagem nítida: a de que repele o status quo, as relações de exploração e dominação historicamente construídas; ao contrário, mais uma vez, do que pretendem os arautos do mito do "povo pacífico e ordeiro", sempre pronto a dar assentimento e celebrar a liderança dos seus algozes.  O  cidadão comum sabe que Aécio Neves tem sido ao longo de 2014 o candidato preferido dos banqueiros, dos industriais, dos latifundiários, dos magnatas do comércio varejista, dos donos das empresas de ônibus, das faculdades particulares e dos órgãos da grande imprensa; dos clubes, sociedades e federações em que se reúnem os representantes destes segmentos.  O voto em Dilma, se não for a própria negação do princípio da "necessidade de aristocracia", é, em hipótese mais modesta, um atestado do desprezo do brasileiro médio pelos aristocratas que temos, progressivamente incapazes até de vender ilusões.                         
      
                                        


          

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Treze motivos para votar 13


        

     São praticamente incontáveis as matérias que, no mundo virtual, enumeram as razões para que os brasileiros sensatos não votem em Aécio Neves e nos demais candidatos do PSDB presentes no segundo turno das eleições de 2014.  Eu mesmo, desde o ano passado, fiz contribuições esparsas à literatura deste gênero.  Hoje, contudo, devo ir além: não basta mostrar que os tucanos e seus aliados são elitistas, fisiológicos, entreguistas, mentirosos e falsos moralistas; apresento, assim, uma breve agenda positiva, com treze argumentos sucintos, entre muitos que poderiam ser listados, para justificar meu voto em Dilma Rousseff para a Presidência da República.     

1- A expansão da rede universitária federal terá prosseguimento, com a ampliação do número de matrículas e, muito provavelmente, com a criação de novas instituições de ensino.  

2- O ensino técnico também continuará a se expandir, beneficiando o setor industrial e até (curioso efeito colateral!) a própria coxinhada raivosa, que poderá recorrer a profissionais qualificados quando seus bens estiverem danificados, ao invés de pedir socorro, por falta de opção, à conhecida figura do "faço tudo, porém nada direito".

3- O ingresso de milhões de pessoas das classes C e D no ensino técnico e, principalmente, nas faculdades, fará diminuir a subserviência dos pobres ao tipo idealizado do "dotô" bem nascido. A senhora Cidadania agradece por antecipação.
    
4- Teremos mais quatro anos livres de economistas que gostariam de utilizar o Ministério da Fazenda para conter ou comprimir o crescimento real dos salários. 

5- A política externa brasileira tenderá a aprofundar suas diretrizes de independência, ao invés de retornar a um danoso alinhamento automático com os Estados Unidos. 

6- O campo das forças políticas progressistas receberá mais um impulso na América Latina, para desespero das minorias pró-oligárquicas que se apegam às relações tradicionais de poder.  

7- Com um pouco de sorte, assistiremos pela TV ao sepultamento do DEM ("Democratas"), que depois de funcionar durante décadas como a mais exuberante expressão do conservadorismo fisiológico no Brasil foi reduzido pelas urnas, em 2014, a 22 deputados federais.  Alijado do governo federal por mais um quadriênio, entrará em estado de inanição.

8- A revista Veja não será elevada ao posto de versão chula do Diário Oficial, e nem receberá auxílios oficiais quando sua crescente falta de credibilidade levá-la à situação de indigência. 

9- Jair Bolsonaro, Marco Feliciano e Coronel Telhada, bem como dúzias de seus imitadores com poucos ou nenhum voto, ficarão relegados à oposição, esvaziando as agendas da homofobia e da criminalização da pobreza.

10- Os direitos dos trabalhadores rurais sem terra, índios e quilombolas, mesmo que sujeitos a constantes enfrentamentos, não serão esmagados pelos lobbies dos que gostariam de transformar metade do país em plantação de soja e a outra metade em zona de pecuária extensiva. 

11- Os crimes cometidos pelos agentes da ditadura civil-militar inaugurada em 1964 continuarão vindo à tona, e nem mesmo a imprensa burguesa poderá impedir sua completa divulgação.

12- Manteremos na chefia do Estado uma mulher que não é nem filha, nem neta, nem mãe de políticos.  É um passo, mesmo que pequeno, contra o "filhotismo" e as "dinastias" eleitorais. 

13- Dilma Rousseff é apoiada por Chico Buarque de Holanda, Luís Fernando Verissimo, Ivan Lins, Paulo José, José Paulo Netto, Gilberto Gil, José de Abreu, Beth Carvalho, Marcelo Rubens Paiva, Osmar Prado, Leonardo Boff e Ivanir dos Santos, enquanto seu oponente conta com Lobão, Merval Pereira, Roger do Ultraje a Rigor, Luciano Huck, Rodrigo Constantino, Wanessa Camargo, Regina Duarte, Danilo Gentili, Augusto Nunes, Maitê Proença, Ronaldo Fenômeno e Silas Malafaia. Alguém precisa comentar? 

    



terça-feira, 14 de outubro de 2014

Para não dizer que não falei de eleições

       

        Trabalhei por dez anos, precisamente entre agosto de 1989 e outubro de 1999, no antigo banco estatal do Rio de Janeiro, o BANERJ.  Calouro do último concurso público realizado para o preenchimento de vagas na instituição, tive lotação na agência Tijuca, situada na Praça Saenz Peña, onde fui escriturário do setor de compensação e, a partir de meados de 1991, caixa. Depois, passei pelas agências Visconde do Uruguai, em Niterói, e Maricá; estava emprestado à agência Itaboraí, sujeita a uma escassez transitória de pessoal, quando recebi um mais do que previsível bilhete azul.  Ganhava na ocasião mais do dobro do salário inicial de um garoto treinado para função idêntica na iniciativa privada.  
          Embora gostasse do que fazia, não entediarei o leitor com detalhes da rotina bancária.  O que pretendo recordar, objetivamente, é minha condição de testemunha e cobaia do processo que terminou, em setembro de 1997, com a venda do banco ao grupo Itaú, fruto de um leilão tão transparente que, no começo daquele ano, os jornais cariocas já anunciavam a presença de executivos ligados aos futuros gestores dentro da sede do BANERJ.
         Não me fixarei nos detalhes da privataria, expostos aos interessados em dezenas de links da Internet.  Quero destacar, mesmo que me acusem de usar um clichê surrado, que estamos diante do típico caso em que a vítima elege o próprio algoz.  Durante o período eleitoral de 1994 ouvi, com uma mistura de espanto e irritação, muitos colegas declararem seus votos para governador no tucano Marcello Alencar.  Gente em média bem mais velha do que eu, escaldada pelos ainda recentes ataques do governo Collor ao funcionalismo, mas crédula e sobretudo sensível ao movimento midiático que, após o rompimento de Alencar com Leonel Brizola, construiu para o primeiro a imagem de um administrador competente e responsável. Apesar da orientação de esquerda que predominava na representação sindical da categoria, não escasseavam entre os bancários os inevitáveis deslumbrados que se orientavam mais pelo orgulho de pertencer a uma presumida pequena burguesia do que pelas necessidades palpáveis de preservar poder aquisitivo e empregos.
          Tomado o Rio de Janeiro pela família Alencar, logo brotou em muitos banerjianos um arrependimento inútil.  Como braço direito de Marcello, despontava o sinistro almofadinha Sérgio Cabral, que dava mostras de extremo cinismo no comando da Assembleia Legislativa, enquanto preparava o terreno para sucessivas vitórias do poder econômico, entre elas a supressão do artigo da Constituição fluminense que estabelecia a obrigatoriedade da manutenção de um banco oficial. 
         Não me posicionarei como vítima.  Antes mesmo da demissão, comecei a trabalhar como professor da rede estadual de ensino, em matrícula no turno da noite.  Nos anos seguintes, consegui outros empregos e fiz o mestrado em História.  Sob diversos aspectos, minha vida melhorou, apesar do detestável embranquecimento da barba. Penso que o jornalista venezuelano de direita Carlos Rangel, se fosse vivo e de alguma forma pudesse ler esta crônica, diria que enfrentei um "estímulo traumático", expressão que empregava ao se referir às sociedades indígenas destroçadas pela colonização, porém contempladas (os sobreviventes, é óbvio) pelo privilégio de poderem se atirar de pernas e braços abertos no mundo dos vencedores. 
         O certo, porém, é que não faltaram vítimas, inclusive fatais, entre os banerjianos forçados a atravessar o quadriênio de Alencar e Cabral.  Quase diariamente corriam notícias sobre mais um bancário  internado com enfarte ou AVC.  Um colega de agência, que eu definiria como subchefe, sofreu uma isquemia em plena jornada de trabalho; por sorte, o sangue do coágulo jorrou inteiro pelo nariz, fazendo com que não tivesse sequelas aparentes.  Uma semana depois, ele estava de volta ao serviço, comendo torresmo no horário de almoço.  Lembro-me até hoje de suas palavras: -O banco comeu meu filé mignon, e agora terá que roer meus ossos! 
        Faltam-me, naturalmente, estatísticas sobre o tema, mas a experiência cotidiana nos deixava a impressão de que os mais atingidos pelos problemas cardiovasculares eram justamente os comissionados incumbidos das demissões, transferências e enquadramentos disciplinares.  Vi mais de um reacionário empedernido passar de uma situação de saúde invejável para a quase invalidez em curto espaço de tempo.    Uma coisa é fazer a apologia do chicote no plano retórico; outra é ser obrigado a empregá-lo sem intermediários contra seus companheiros de torcida, igreja, chope ou carteado. Enquanto tantos tombavam, de diversas maneiras, decidi vestir uma carapaça emocional e seguir resistindo, antes e depois da privatização, até encontrar uma alternativa eficaz de sustento. Embora com o espírito endurecido, admito que sentia muita raiva, talvez suficiente, se transformada em fluido e jogada no mar,  para interditar toda a orla da Barra da Tijuca. 
       Pelo menos uma vez, tentei afrontar a conjuntura desfavorável com ações concretas. Várias agências da cidade de Niterói haviam sido desativadas ou esvaziadas, e seus funcionários remanejados para a agência Visconde do Uruguai, na qual terminaram por se concentrar, se não me falha a memória, cento e vinte banerjianos.  O local era amplo, funcionava como uma grande pagadoria de empregados públicos, terceirizados e aposentados, além de captar um imenso volume de taxas e impostos, mas mesmo com a tecnologia da época não precisaria de mais de sessenta.  
         Vazara a informação, de uma forma que ignoro, de que ao final de determinada tarde 24 pessoas receberiam dispensa.  Embora adotasse uma atitude de distância das "cúpulas", eu julgava que pelo meu perfil avesso a intrigas e rixas domésticas ficaria a salvo.  Meus 28 ou 29 anos também ajudavam a manter frequência quase integral e uma excelente média de autenticações.  Sempre fui, ao longo da carreira, um caixa que os chefes de serviço apreciavam ter em suas equipes.  Mas, tendo em vista a situação dos demitidos (cujos nomes podíamos prever, com mínima margem de erro), me aproveitei de momentos estratégicos de esvaziamento da agência no horário de almoço para dar sumiço em todas as folhas de ponto.  A ideia era inviabilizar as demissões pela ausência de documentação. Não podendo fechar o ponto às cinco horas, os colegas tidos como integrantes da lista sairiam das dependências da Visconde, sem escalas, para o sindicato ou para consultórios médicos, dos quais retornariam todos, em passe de mágica, hipertensos ou surtados, sendo encaminhados para consecutivas licenças com vencimentos. Salvando 24 cabeças, ainda atrairia, sem dúvida, a fúria dos banqueiros contra seus "feitores" relapsos.   
         O plano individual e meio desastrado não funcionou: em menos de uma hora, a gerência deu por falta das folhas e interrompeu as tarefas de vários escriturários, que foram obrigados a datilografar segundas vias sob uma orquestra de impropérios.  Também tiveram início investigações para localizar "quem roubou as folhas de ponto".  A maioria dos encarregados da "repressão" especulava sobre quem, entre os notórios "condenados", seria o "terrorista", com exceção da mais inteligente, que me olhava fixamente e chegou a me pressionar no sentido de arrancar uma confissão.  Neguei tudo, é lógico, simulando susto e indignação.  Para minha surpresa real,  por volta das sete da noite, quando vagava pelo centro de Niterói ainda empregado e com incontáveis doses de cerveja no organismo, minha quase carrasca surgiu do nada e ao me cumprimentar beijou meus lábios, se afastando em seguida com expressão de criança travessa. Não precisamos resgatar os longínquos tempos da Conjuração Mineira para constatar que até os aparentemente mais convictos defensores da ordem podem ter seus instantes de rebeldia.
          Percorrendo os caminhos do Facebook, noto que várias figuras massacradas naquele tempo, submetidas ao desemprego ou obrigadas a se aposentar às pressas, em péssimas condições, curtem a revista Veja e fazem campanha para Aécio Neves.  Não me proponho a convencê-las de nada, até por senso de realidade, e nem as tratarei mal pessoalmente ou no mundo virtual.  Talvez hoje só lhes reste, para esconjurar a proximidade do proletariado tão temido, a recordação de que um dia estiveram na pequena burguesia.  Entretanto, também com base no citado senso de realidade, volto a indicar para todos os leitores, e em particular para os que vivem de salários, aposentadorias ou pensões, que

1-Os governos do PSDB, na era FHC, virtualmente congelaram os salários do funcionalismo.

2-A equipe econômica de Aécio Neves já deu indícios bastante consistentes de que pretende frear os aumentos reais do salário mínimo. As duas condições reunidas fatalmente pressionarão a massa salarial para baixo e o Índice de Gini para cima, quem sabe nos devolvendo aos tempos em que o Brasil disputava com Honduras, Serra Leoa e Botswana o troféu da pior distribuição de renda do planeta.

3-Apesar de Aécio prometer no horário eleitoral que corrigirá a tabela do Imposto de Renda pela inflação, vale recordar que o antigo secretário da Receita do tucanato, Everardo Maciel, constantemente se posicionava contra a correção e defendia a taxação de todos os proventos acima do salário médio, então irrisório.

4-Com a direita no comando do Planalto, governadores, prefeitos e empresários se sentiriam com as mãos mais livres para utilizar todo o aparato repressivo a seu dispor contra os trabalhadores, cujas margens de negociação, já ruins, seriam reduzidas a pó (com ou sem trocadilho, conforme o gosto de quem me honrou com a visita até aqui).


        Portanto, o que está em questão não é gostar ou não de Dilma Rousseff ou do petismo; eu mesmo só fui filiado ao PT durante dezoito meses, de 1994 a 1996, e me desliguei por não concordar com as atitudes personalistas de certas lideranças.  Estamos defronte da possibilidade de perder direitos básicos, sociais e trabalhistas, amargando também graves prejuízos financeiros.  Além disto, da indesejada combinação de Aécio na Presidência com um Congresso conservador e fisiológico, ambos beneficiados pela blindagem da mídia controlada pelas poucas famílias de sempre, derivaria um projeto de poder vigoroso, talvez mais difícil de desalojar do que a própria ditadura civil-militar iniciada em 1964.
         Salvem-se.  Votem 13.