"A falta de gente, que o afligia, mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação, contra o que não o indispunham, aliás, preconceitos de raça, apenas preconceitos religiosos- foi para o português vantagem na sua obra de conquista e colonização dos trópicos".
(Gilberto Freyre. Casa Grande & Senzala.)
"Não faltam eminentes autoridades contemporâneas que afirmem que os Portugueses nunca tiveram quaisquer preconceitos raciais dignos de menção. O que essas autoridades não explicam é a razão pela qual, nesse caso, os Portugueses, durante séculos, puseram uma tal tônica no conceito de 'limpeza' ou 'pureza de sangue' não apenas de um ponto de vista classista mas também de um ponto de vista racial, nem a razão por que expressões como 'raças infectas' se encontram com tanta frequência em documentos oficiais e na correspondência privada até o último quartel do século XVIII."
(Charles R. Boxer. O império marítimo português, 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 245)
A pintura Família Colonial, produzida por Jean-Baptiste Debret (1768-1848), é uma imagem irretocável da América Portuguesa no início do século XIX. Nela identificamos com facilidade as hierarquias de classe, gênero e etnia. À frente, portando sua espada e vestes de gala, um opulento senhor de escravos, seguido por duas filhas e esposa, todos socialmente brancos, apesar da tez morena. Imediatamente atrás, uma mulata, certamente escrava doméstica de confiança. Mais atrás, os escravos de pele negra, partindo dos adultos talvez nascidos no Brasil até chegar, no extremo, às crianças recém-trazidas da África.
Não nos faltam obras, fundamentadas em pesquisas longas e criteriosas, sobre as desigualdades étnicas que caracterizaram a colonização portuguesa em todos os campos da atividade humana. O próprio Gilberto Freyre, saudado por muitos como o principal teórico da "democracia racial", identifica em várias passagens de seus livros a existência de preconceitos de raça na sociedade colonial. Todavia, panfletários do século XXI, não raro se baseando em vulgarizações da obra de Freyre, reivindicam a validade do velho mito. Esta tendência nada tem de inocente. Idealizar uma colonização harmônica, na qual cor ou origem pouco importavam, leva a negar a existência de questões étnicas no Brasil contemporâneo e, por consequência, a necessidade da adoção de medidas para solucioná-las. Protege-se, desta forma, o status quo estruturado sobre diferenças de classe, gênero e etnia.
Retornemos aos nossos trabalhos de desmistificação. Numerosas leis portuguesas, aplicadas na metrópole e nas colônias, estabeleciam privilégios em favor dos brancos tidos como cristãos-velhos. Boxer destaca, em particular, as barreiras estabelecidas contra os descendentes de negros ou judeus, que em tese não deveriam ocupar cargos públicos¹; se em parte os mecanismos discriminatórios refletiam os preconceitos religiosos, como afirmou Freyre, percebe-se claramente a crença de que certos atributos negativos eram transmitidos pelo sangue, o que constituía, obviamente, racismo, ainda que com fundamentos diversos do racismo "científico" do século XIX.
A pintura Família Colonial, produzida por Jean-Baptiste Debret (1768-1848), é uma imagem irretocável da América Portuguesa no início do século XIX. Nela identificamos com facilidade as hierarquias de classe, gênero e etnia. À frente, portando sua espada e vestes de gala, um opulento senhor de escravos, seguido por duas filhas e esposa, todos socialmente brancos, apesar da tez morena. Imediatamente atrás, uma mulata, certamente escrava doméstica de confiança. Mais atrás, os escravos de pele negra, partindo dos adultos talvez nascidos no Brasil até chegar, no extremo, às crianças recém-trazidas da África.
Não nos faltam obras, fundamentadas em pesquisas longas e criteriosas, sobre as desigualdades étnicas que caracterizaram a colonização portuguesa em todos os campos da atividade humana. O próprio Gilberto Freyre, saudado por muitos como o principal teórico da "democracia racial", identifica em várias passagens de seus livros a existência de preconceitos de raça na sociedade colonial. Todavia, panfletários do século XXI, não raro se baseando em vulgarizações da obra de Freyre, reivindicam a validade do velho mito. Esta tendência nada tem de inocente. Idealizar uma colonização harmônica, na qual cor ou origem pouco importavam, leva a negar a existência de questões étnicas no Brasil contemporâneo e, por consequência, a necessidade da adoção de medidas para solucioná-las. Protege-se, desta forma, o status quo estruturado sobre diferenças de classe, gênero e etnia.
Retornemos aos nossos trabalhos de desmistificação. Numerosas leis portuguesas, aplicadas na metrópole e nas colônias, estabeleciam privilégios em favor dos brancos tidos como cristãos-velhos. Boxer destaca, em particular, as barreiras estabelecidas contra os descendentes de negros ou judeus, que em tese não deveriam ocupar cargos públicos¹; se em parte os mecanismos discriminatórios refletiam os preconceitos religiosos, como afirmou Freyre, percebe-se claramente a crença de que certos atributos negativos eram transmitidos pelo sangue, o que constituía, obviamente, racismo, ainda que com fundamentos diversos do racismo "científico" do século XIX.
A legislação que regia o clero lusitano acompanhava, com pouca variação, as normas racistas da administração secular. A Igreja, cujos registros de batismo, casamento e óbito eram documentos oficiais para o Estado, dispunha de amplos meios para negar o ingresso dos portadores de "sangue infecto" em suas fileiras. Em alguns casos, certamente, estas exigências foram amenizadas², o que nos remete a conveniências políticas e, sem dúvida, ao altíssimo grau de corrupção que se verificava na sociedade do império português.
Encontramos o mesmo quadro nas irmandades religiosas, nas quais prevaleciam as divisões por cor. As ordens destinadas aos brancos, além de alijar os indivíduos identificados como cristãos-novos, tomavam providências minuciosas para evitar que entre seus membros houvesse descendentes de negros e índios, ou aparentados com não-brancos pelo casamento³.
O exército colonial, também dividido por cor, compreendia regimentos de brancos, pardos e pretos. Somente os primeiros tinham acesso aos postos mais elevados do oficialato. István Jancsó, ao apresentar a composição das tropas baianas na época da conjuração de 1798, revela a sensação de injustiça presente entre os soldados "de cor"4.
O racismo estatal e paraestatal se refletia em larga margem nas demais relações sociais. Freyrianos e neofreyrianos, há muitas décadas, rendem glórias a uma suposta miscigenação livre, que teria suavizado ou mesmo eliminado a discriminação. Porém, nota-se que tal processo, no período colonial, foi uma via de mão única: se os homens brancos solteiros podiam viver em concubinato com índias, negras e mestiças, ou tê-las como amantes, se casados, contando com ampla tolerância de seus vizinhos, o mesmo não ocorria com relação a homens não-brancos, mesmo que livres, e mulheres brancas5.
Além disto, negras e mulatas, na prática, eram vistas como mulheres públicas. Muitos pretendiam dispor livremente dos seus corpos, não importando a condição social ou o estado civil. O casamento delas com homens brancos, ainda que não fosse formalmente proibido, resultava em forte reprovação social6.
Este "legado" racista, associado ao escravismo onipresente, jamais poderia resultar em democracia racial, ou em qualquer coisa que mereça o adjetivo democrático. Em plena Constituinte de 1823, era possível discutir a sério se os brasileiros mestiços deveriam ou não possuir direitos políticos7.
Notas:
1-Ver Charles R. Boxer. O império marítimo português, 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 257.
2- Idem, p. 255.
3- Ibidem, p. 285.
4- Ver István Jancsó. Na Bahia, contra o Império (história do ensaio de sedição de 1798). São Paulo/Salvador: Hucitec/EDUFBA, 1996, pp. 96/97.
5- Ver Maria Beatriz Nizza da Silva. História da família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 193.
6- Idem, pp. 198/199.
7- Ver Vantuil Pereira. Ao soberano Congresso: direitos do cidadão na formação do Estado imperial brasileiro (1822-1831). São Paulo: Alameda, 2010, pp. 90/91.