terça-feira, 29 de maio de 2012

A Democracia Racial e suas raízes não localizáveis: um pouco sobre a colonização da América Portuguesa



"A falta de gente, que o afligia, mais do que a qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação,  contra o que não o indispunham, aliás, preconceitos de raça, apenas preconceitos religiosos- foi para o português vantagem na sua obra de conquista e colonização dos trópicos".
(Gilberto Freyre.  Casa Grande & Senzala.)
  
"Não faltam eminentes autoridades contemporâneas que afirmem que os Portugueses nunca tiveram quaisquer preconceitos raciais dignos de menção.  O que essas autoridades não explicam é a razão pela qual, nesse caso, os Portugueses, durante séculos, puseram uma tal tônica no conceito de 'limpeza' ou 'pureza de sangue' não apenas de um ponto de vista classista mas também de um ponto de vista racial, nem a razão por que expressões como 'raças infectas' se encontram com tanta frequência em documentos oficiais e na correspondência privada até o último quartel do século XVIII."
(Charles R. Boxer.  O império marítimo português, 1415-1825.  Lisboa: Edições 70, 2001, p. 245)

      A pintura Família Colonial, produzida por Jean-Baptiste Debret (1768-1848), é uma imagem irretocável da América Portuguesa no início do século XIX.  Nela identificamos com facilidade as hierarquias de classe, gênero e etnia.  À frente, portando sua espada e vestes de gala, um opulento senhor de escravos, seguido por duas filhas e esposa, todos socialmente brancos, apesar da tez morena.  Imediatamente atrás, uma mulata, certamente escrava doméstica de confiança.  Mais atrás, os escravos de pele negra, partindo dos adultos talvez nascidos no Brasil até chegar, no extremo, às crianças recém-trazidas da África.
        Não nos faltam obras, fundamentadas em pesquisas longas e criteriosas, sobre as desigualdades étnicas que caracterizaram a colonização portuguesa em todos os campos da atividade humana.  O próprio Gilberto Freyre, saudado por muitos como o principal teórico da "democracia racial", identifica em várias passagens de seus livros a existência de preconceitos de raça na sociedade colonial.  Todavia, panfletários do século XXI, não raro se baseando em vulgarizações da obra de Freyre, reivindicam a validade do velho mito.  Esta tendência nada tem de inocente.  Idealizar uma colonização harmônica, na qual cor ou origem pouco importavam, leva a negar a existência de questões étnicas no Brasil contemporâneo e, por consequência, a necessidade da adoção de medidas para solucioná-las.  Protege-se, desta forma, o status quo estruturado sobre diferenças de classe, gênero e etnia.                                    
     Retornemos aos nossos trabalhos de desmistificação. Numerosas leis portuguesas, aplicadas na metrópole e nas colônias, estabeleciam privilégios em favor dos brancos tidos como cristãos-velhos.  Boxer destaca, em particular, as barreiras estabelecidas contra os descendentes de negros ou judeus, que em tese não deveriam ocupar cargos públicos¹; se em parte os mecanismos discriminatórios refletiam os preconceitos religiosos, como afirmou Freyre, percebe-se claramente a crença de que certos atributos negativos eram transmitidos pelo sangue, o que constituía, obviamente, racismo, ainda que com fundamentos diversos do racismo "científico" do século XIX.                                                        


         A legislação que regia o clero lusitano acompanhava, com pouca variação, as normas racistas da administração secular.  A Igreja, cujos registros de batismo, casamento e óbito eram documentos oficiais para o Estado, dispunha de amplos meios para negar o ingresso dos portadores de "sangue infecto" em suas fileiras.  Em alguns casos, certamente, estas exigências foram amenizadas², o que nos remete a conveniências políticas e, sem dúvida, ao altíssimo grau de corrupção que se verificava na sociedade do império português.      


           Encontramos o mesmo quadro nas irmandades religiosas, nas quais prevaleciam as divisões por cor. As ordens destinadas aos brancos, além de alijar os indivíduos identificados como cristãos-novos, tomavam providências minuciosas para evitar que entre seus membros houvesse descendentes de negros  e índios, ou aparentados com não-brancos pelo casamento³.   


           O exército colonial, também dividido por cor, compreendia regimentos de brancos, pardos e pretos.  Somente os primeiros tinham acesso aos postos mais elevados do oficialato.  István Jancsó, ao apresentar a composição das tropas baianas na época da conjuração de 1798, revela a sensação de injustiça presente entre os soldados "de cor"4.  


            O racismo estatal e paraestatal se refletia em larga margem nas demais relações sociais.  Freyrianos e neofreyrianos, há muitas décadas, rendem glórias a uma suposta miscigenação livre, que teria suavizado ou mesmo eliminado a discriminação.  Porém, nota-se que tal processo, no período colonial, foi uma via de mão única: se os homens brancos solteiros podiam viver em concubinato com índias, negras e mestiças, ou tê-las como amantes, se casados, contando com ampla tolerância de seus vizinhos, o mesmo não ocorria com relação a homens não-brancos, mesmo que livres, e mulheres brancas5.     


         Além disto, negras e mulatas, na prática, eram vistas como mulheres públicas.  Muitos pretendiam dispor livremente dos seus corpos, não importando a condição social ou o estado civil. O casamento delas com homens brancos, ainda que não fosse formalmente proibido, resultava em forte reprovação social6.


           Este "legado" racista, associado ao escravismo onipresente, jamais poderia resultar em democracia racial, ou em qualquer coisa que mereça o adjetivo democrático. Em plena Constituinte de 1823, era possível discutir a sério se os brasileiros mestiços deveriam ou não possuir direitos políticos7.       



Notas:
1-Ver Charles R. Boxer.  O império marítimo português, 1415-1825.  Lisboa: Edições 70, 2001, p. 257.
2- Idem, p. 255.
3- Ibidem, p. 285.
4- Ver István Jancsó.  Na Bahia, contra o Império (história do ensaio de sedição de 1798).  São Paulo/Salvador: Hucitec/EDUFBA, 1996, pp. 96/97.
5- Ver Maria Beatriz Nizza da Silva.  História da família no Brasil Colonial.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 193.
6- Idem, pp. 198/199.
7- Ver Vantuil Pereira.  Ao soberano Congresso: direitos do cidadão na formação do Estado imperial brasileiro (1822-1831).  São Paulo: Alameda, 2010, pp. 90/91.  







sábado, 26 de maio de 2012

A direita "respeitável" e seu embaraçoso parentesco com o fascismo (IV)- Alemanha

Hitler com o político conservador Von Papen 
         

       Constatamos pelos textos de Stackelberg que o nazismo, desde os primórdios, esteve no campo conservador, apesar das táticas políticas pouco convencionais adotadas por sua militância.  Hoje, veremos que este alinhamento foi fundamental para a chegada de Adolf Hitler ao poder. Tal como os fascistas na década anterior, os nazistas, no início dos anos 30, buscaram adesão entre uma das parcelas mais conservadoras do eleitorado germânico: os proprietários rurais, cujos votos se concentravam, em sua maioria, nos nacionalistas de direita.    


           Mesmo que esta aliança tenha sido circunstancial, contribuiu bastante para que o partido nazi, antes débil nas urnas, se transformasse na maior força eleitoral da Alemanha¹.    


         Também como Mussolini, Hitler tratou, em sua marcha rumo ao governo, de enfraquecer as eventuais restrições que sofria da parte dos industriais.  Para isto, adotou um discurso mais nitidamente pró-capitalismo, além de se apresentar como um defensor da ordem².  


      Em julho de 1932, os nazistas obtiveram seu melhor resultado eleitoral durante a vigência do pluripartidarismo: 37,4% dos votos nacionais³.  É preciso atestarmos, portanto, a inconsistência de uma falácia bastante difundida pelos reacionários, a de que o "povo alemão", visto como uma horda de  bárbaros manipulados por uma espécie de louco talentoso, se atirou de maneira quase unânime nos braços dos nazistas.  Este mito serve, naturalmente, aos que pretendem deslegitimar ou minimizar a importância do voto popular.       


       Também previsivelmente, o crescimento dos nazistas se deu às custas da direita tradicional, desgastada pela péssima situação econômica do país.  É particularmente difícil acreditar que os votantes "da classe alta e da classe média superior", identificados por Stackelberg como um dos pilares da base de apoio do nazismo, tivessem em algum momento simpatias pelo comunismo.  Aliás, aqui fica descontruída uma outra fábula, a de que Hitler competia com os comunistas pelo mesmo tipo de eleitor.  Os trabalhadores aderentes ao nazismo estavam, em regra, fora dos sindicatos e das organizações políticas de esquerda.


       Após o fatídico pleito, os conservadores alemães perceberam que a antiga atitude de dirigir pelo alto, ignorando a crescente participação das massas na política, nunca mais funcionaria4.  Desta forma, ruíram suas últimas resistências a uma iminente administração nazista.    


       No início de 1933, Hitler chegou ao governo, por vias "legais", sem dúvida, mas com significativos impedimentos, decorrentes do fato de não possuir maioria absoluta no Parlamento.  Nesta altura, a minoria anticapitalista já fora removida do seu partido, o que tranquilizava o empresariado5.    


         Presos arbitrariamente os deputados comunistas, as demais forças parlamentares de direita deram ao Führer o que ele mais precisava: aprovada a Lei Capacitadora, Hitler poderia governar por decreto durante quatro anos, sem prestar contas ao Legislativo ou ao presidente.  Além dos nacionalistas órfãos do Império Alemão, os nazistas dispuseram do apoio da Igreja conservadora na votação de 24 de março de 1933 [6].        


        Coerentemente, Hitler, no mês anterior, proferira discurso de tom fortemente emocional no sentido de  congregar suas bases direitistas.  Notemos, além do chamado anticomunista, a negação das divisões e disputas entre classes7, postura muito cara a conservadores, liberais ... e fascistas.  


     Retornaremos ao tema em futuras postagens, que deixarão cada vez mais claro que as aproximações da direita "respeitável" com a direita selvagem e genocida não foram um mero acidente de percurso, restrito às primeiras décadas do século XX.  

Notas:
1-Robert O. Paxton.  A anatomia do fascismo.  São Paulo: Paz e Terra, 2007, pp. 115/116.
2- Idem, p. 175.
3- Roderick Stackelberg.  A Alemanha de Hitler: origens, interpretações, legados.  Rio de Janeiro: Imago, 2002, p. 137.
4- Idem, p. 138.
5- Ibidem, p. 140.
6- Paxton, p. 181.
7- Stackelberg, p. 144.





sexta-feira, 25 de maio de 2012

A direita "respeitável" e seu embaraçoso parentesco com o fascismo (III)- Alemanha

                                                                 Hitler e Hindenburg
                                                       
            Muitos direitistas se empenham, sistematicamente, na tarefa de dissociar o nazismo, bem como a figura satanizada de Adolf Hitler (1889-1945), do campo conservador.  Uma das táticas mais bisonhas utilizadas  com este propósito é a frequente repetição do mote "Hitler era o chefe do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães", dando-se ênfase, é claro, ao termo "Socialista".  Rótulo por rótulo, convém sempre lembrá-los de que a direita portuguesa se agrupa no Partido Social Democrata, e que a agremiação fascista russa organizada por Vladimir Jirinovski recebe a denominação de Partido Liberal-Democrático.  Mas levemos a discussão para um terreno mais consistente.      
           Vencido o Império Alemão na Primeira Guerra Mundial, o país assistiu à luta generalizada entre nacionalistas de direita e socialistas.  O Freikorps, força militar integrada por voluntários e criada por sugestão do Alto Comando, reprimia com mão pesada os movimentos esquerdistas, assim como as administrações regionais desta tendência.  A tentativa de parte da esquerda de estabelecer um governo revolucionário a partir da cidade de Munique foi sufocada com elevada dose de violência.   


                  O Partido Democrático Social (SPD), que encabeçava a coalizão governista formada em 1919, à qual aderiram o Partido do Centro Católico e o Partido Democrático Alemão (de tendência liberal), buscava instrumentalizar os anti-republicanos do Freikorps contra a esquerda revolucionária, embora na prática não tivesse o menor controle sobre os nacionalistas radicais, inteiramente avessos à democracia¹.  Este fato pouco surpreende, visto que o SPD, nos anos anteriores, apoiara a guerra no Parlamento, com exceção de sua ala mais à esquerda, que em abril de 1917 se afastou para compor um novo partido de oposição, o USPD (Democratas Sociais Independentes)².    


                  Todavia, em 1920, as mesmas unidades do Freikorps usadas contra os socialistas se voltaram contra o governo central, no episódio que ficou conhecido como putsch Kapp-Lüttwitz, em referência a seus líderes Wolfgang Kapp (1858-1922), funcionário público que fundara durante a guerra o Partido da Pátria, e Walther von Lüttwitz (1859-1942), general que comandava o Freikorps em Berlim.  A República de Weimar, então, foi salva pela resistência dos trabalhadores, associada a uma certa inoperância dos golpistas.     


               Ao contrário do que ocorrera com os participantes do levante de Munique, Kapp, Lüttwitz e quase todos os seus seguidores foram absolvidos.  O Judiciário alemão, bastante conservador, assumiu uma postura de proteção aos rebeldes da direita³.


               Já naqueles anos, Adolf Hitler, então um obscuro veterano condecorado na guerra, se alinhava com o governo monarquista da Baviera, onde residia.  A região funcionava como um celeiro para os movimentos direitistas que conspiravam contra Weimar4.  Nota-se, portanto, que ao contrário de Mussolini, a quem sempre admirou, Hitler construiu sua carreira política, de maneira ininterrupta, na extrema direita.  




                        Inspirado pelo êxito de Mussolini na Marcha sobre Roma, Hitler empreendeu, em fins de 1923, seu próprio golpe de Estado, no que fracassou.  Porém, os juízes trataram-no conforme os parâmetros usados com Kapp.  Apesar da extrema gravidade dos crimes cometidos, o futuro Führer recebeu uma sentença leve, dispondo ainda de facilidades para prosseguir em suas atividades de doutrinação5.  

 



                        As eleições de 1924 enfraqueceram o SPD, que embora continuasse a ser o partido com mais cadeiras no Parlamento, perdeu espaço à esquerda e à direita.  A direita nacionalista e anti-republicana, em particular, ampliou sua fatia do eleitorado.


                          Em fevereiro de 1925, quando o general Hindenburg chegou à presidência da Alemanha, Adolf Hitler foi um de seus partidários.  Mais uma vez, localizamos o líder supremo do nazismo ao lado de conservadores de tipo tradicional, que sonhavam com o retorno da monarquia6.


                                                                      [continua]

Notas:
1- Ver Roderick Stackelberg.  A Alemanha de Hitler: origens, interpretações, legados.  Rio de Janeiro: Imago, 2002, p. 99. 
2- Idem, p. 88.
3- Ibidem, p. 105.
4- Ibidem, pp. 109/110.
5- Ibidem, p. 111.
6- Ibidem, p. 114.



quarta-feira, 23 de maio de 2012

A direita "respeitável" e seu embaraçoso parentesco com o fascismo (II)- Itália

                           Mussolini posa de piloto, em 1932, tendo ao redor Enzo Ferrari e Prospero Gianferrari, dirigente da Alfa Romeo.
             

Verificamos, pelas fontes apresentadas na postagem de ontem, o apoio decisivo dos latifundiários italianos, seguidos por muitos industriais, ao movimento fascista.  Agora examinaremos o comportamento das demais forças conservadoras.  Emilio Gentile, professor de História Contemporânea da Universidade La Sapienza, em Roma, demonstra que o fascismo, consolidado enquanto movimento de massa entre 1920 e 1921, contava com a adesão de numerosos agricultores desejosos de ascender à condição de proprietários, mas enfrentava forte resistência em sua penetração nos meios operários.  O autor confirma ainda que os adeptos de Mussolini haviam sido sustentados pela "burguesia agrária"¹. 







        A rápida expansão do fascismo esteve associada a uma "mobilização das classes médias", que cresciam percentualmente no conjunto da sociedade italiana; em particular, o segmento composto pelos novos proprietários rurais.  

     
                    Também pertenciam à classe média, em sua maior parte, as lideranças fascistas, que deram ao partido as feições do que Gentile definiu como "instrumento da reação antiproletária².  



              Apesar da notória violência que os caracterizava, os fascistas, em 1922, não possuíam os meios necessários para a tomada do poder, caso os conservadores de tipo tradicional pretendessem resistir.  O quadro que Robert Paxton traça sobre o início da Marcha sobre Roma aponta para a iminência de um completo fracasso.

  



















         Entretanto, a monarquia italiana, na pessoa do rei Vítor Emanuel III,  favoreceu amplamente Mussolini, quando contava com a opção, à direita, de patrocinar a ascensão de um gabinete chefiado por Antonio Salandra (1853-1931), reprimindo os Camisas Negras.  O monarca cedeu à intimidação dos fascistas oferecendo-lhes o governo. 
      




              Segundo Paxton, além de priorizar a manutenção do trono, Vítor Emanuel III provavelmente evitou testar a lealdade de suas próprias tropas contra a turba golpista³.





           A mesma tolerância para com o fascismo contagiou o setor que hoje chamaríamos de mídia burguesa.  O Corriere dela sera, principal jornal da Itália, hostil ao primeiro-ministro liberal "pacifista" Giovanni Giolitti (1842-1928), ao invés de condenar as agressões e assassinatos cometidos pelos Camisas Negras a partir de 1919, preferia destacar a tendência anticomunista do movimento.       







                  Enquanto os fascistas se multiplicavam, Luigi Albertini (1871-1941), editor do Corriere, culpava seguidamente os socialistas pelos confrontos que se sucediam.  Ele ansiava por um "governo forte", no que seria atendido para mais tarde se arrepender4.    


         Com a implantação da ditadura de Mussolini, o Corriere acabou sendo fechado.  Mesmo assim, Albertini continuava a admitir, tal como o economista Von Mises, o mérito do fascismo de ter afastado a hipótese de uma Itália socialista, apenas questionando a necessidade do estabelecimento de um governo tão brutal5.  


                 Uma vez no poder, Mussolini se mostrou compreensivo também diante dos banqueiros e da Igreja conservadora.  Não obstante a gradual remoção das aparências democráticas, o regime rapidamente ganhou a confiança das potências capitalistas e da comunidade financeira.  Tendo como perspectiva o restabelecimento da "ordem", era possível inclusive minimizar a importância do jogo eleitoral6.         






                                                           [continua]

1- Ver Emilio Gentile.  Qu'est-ce que le fascisme?  Gallimard, 2004, pp. 31/32.
2- Idem, pp. 32/33.
3- Ver Robert O. Paxton.  A anatomia do fascismo.  São Paulo: Paz e Terra, 2007, pp. 154/155.
4- Ver Donald Sassoon.  Mussolini e a ascensão do fascismo.  Rio de Janeiro: Agir, 2009, pp. 125/126.




5- Idem, pp. 148/149.
6-Ibidem, pp. 152/153.

terça-feira, 22 de maio de 2012

A direita "respeitável" e seu embaraçoso parentesco com o fascismo (I)- Itália



Ettore Conti (1871-1972) [primeiro à esquerda], presidente da Confindustria, associação patronal italiana, recebe uma delegação indiana com Edda Mussolini (1910-1995), filha do ditador.


        Conservadores "convencionais", liberais conservadores e mesmo alguns conservadores assumidamente autoritários se mostram ofendidos, na maioria dos casos, quando chamados de fascistas.  Rejeitam a pecha de simpatizantes de um regime que, abrindo o caminho para um movimento de extrema direita ainda mais radical, o nazismo, concentrou em si boa parte da responsabilidade pelo conflito mundial que se estendeu de 1939 a 1945.  
    Não obstante os sinais de aprovação concedidos a Benito Mussolini (1883-1945) por ícones do liberalismo econômico como Ludwig von Mises (1881-1973), certos setores da direita menos letrada chegam ao extremo de indicar os fascistas como adeptos de um modelo peculiar de socialismo.  Prevalecendo esta engenhosa versão, o sistema capitalista estaria absolvido pelas dezenas de milhões de mortes decorrentes da Segunda Guerra. 
       Sei que desconstruir o imaginário de fanáticos não é uma tarefa simples.  Ainda que expostos a numerosas provas documentais e aos argumentos de especialistas que se debruçam há décadas sobre determinados temas, são capazes de reafirmar até a exaustão a opinião mal fundamentada, por vezes mero palpite, do guru que eventualmente tenham escolhido.  Todavia, é preciso submetê-los, de tempos em tempos, a alguns choques de realidade.  Na pior das hipóteses, a repetição do óbvio enfraquece um pouco seu proselitismo pobre, e teremos menos um punhado de fãs de Ali Kamel, Reinaldo Azevedo e Leandro Narloch. Nosso "óbvio", naturalmente, é a forte vinculação do fascismo, desde, no mínimo, o período em que se tornou uma opção viável de poder, à defesa da propriedade de tipo capitalista, e sua aceitação, uma vez no governo, por praticamente toda a burguesia italiana.
       O movimento fascista foi bastante heterogêneo quanto à origem social de seus integrantes.  Entretanto, é inegável que agregou segmentos belicosos, antigos entusiastas da Primeira Guerra Mundial, que desejavam alargar as fronteiras da Itália por meio da agressão militar.  Isto constituiu a primeira motivação de seu ódio aos socialistas, que se opunham a tal projeto.  Muitos fascistas, como se depreende da leitura de Martin Blinkhorn, estavam longe de possuir uma situação econômica privilegiada, mas sua hostilidade à esquerda garantiu, bem antes da Marcha sobre Roma, o patrocínio interessado dos latifundiários e de uma parte dos industriais¹.                                  


        O apoio "moral e financeiro" destas forças conservadoras acabou por consolidar um posicionamento mais à direita por parte dos fascistas.  Os seguidores de Mussolini não apenas defendiam a monarquia e agrediam os socialistas de todas as formas ao seu alcance, como também se aproximavam, na política parlamentar e no ideário econômico, dos liberais italianos².  



           Robert Paxton nos revela minuciosamente que os grandes proprietários de terra de várias partes do país, principalmente os do centro-norte, aprovaram com entusiasmo o squadrismo fascista como  estratégia de luta contra os camponeses oeganizados e seus aliados socialistas.  Neste processo, além das margens de lucro da agricultura comercial, estava em jogo a manutenção do status dos fazendeiros³.


        Diante da recusa do governo em solucionar os conflitos de classe a seu favor, os proprietários rurais estimularam os Camisas Negras a agir com extrema violência.  Começando pela invasão da prefeitura de Bolonha, os fascistas empreenderam ataques armados contra centenas de organizações políticas e culturais sob controle da esquerda4.





            O sucesso de Mussolini em suas iniciativas contra os socialistas lhe rendeu, em seguida, a simpatia dos industriais.  Donald Sassoon demonstra que Ettore Conti, principal liderança deste setor, via o líder do fascismo  como um admirável elitista, defensor da propriedade e inimigo do comunismo5.



          Pouco mais tarde, já no poder, os fascistas retribuiriam a compreensão dos capitalistas implantando uma política econômica de viés predominantemente liberal6.


[continua]


Notas:
1- Martin Blinkhorn.  Mussolini e a Itália fascista.  Lisboa: Gradiva, p. 39.
2- Idem, p. 40.
3- Robert O. Paxton.  A anatomia do fascismo.  São Paulo: Paz e Terra, 2007, p. 109.
4- Idem, p. 110.
5- Donald Sassoon.  Mussolini e a ascensão do fascismo.  Rio de Janeiro: Agir, 2009, pp. 117/118.
6- Idem, p. 120.