sábado, 19 de maio de 2012

Apostando na liberdade



          A historiadora norte-americana Mary Karasch, que empreendeu uma das pesquisas mais minuciosas sobre a escravidão na cidade do Rio de Janeiro, elaborou, em sua principal obra sobre o tema, um longo capítulo intitulado Fugitivos e rebeldes.  Segundo a autora, sendo escassas as chances, em plena capital do Império, de um escravo obter a liberdade por meio da revolta, a fuga era, entre as modalidades de resistência, a mais comum e a que contava com maiores possibilidades de sucesso.  Ganhando a rua para escapar do cativeiro, cada novo fugitivo tinha como prioridade inicial a escolha de um refúgio.  Os morros cariocas, ainda cobertos por florestas na primeira metade do século XIX, ofereciam bons esconderijos; os barcos ancorados na orla marítima da cidade davam acesso às localidades costeiras da Baía de Guanabara e ao litoral atlântico da província do Rio de Janeiro; em outros casos, era possível avançar rumo ao interior e tentar passar por liberto.  Os relatos dos viajantes estrangeiros apontam para um número de fugas excepcionalmente alto¹.  
           Contudo, a ruptura com a escravidão também implicava em riscos nada desprezíveis.  Encarregada das buscas, a polícia do Rio recolhia os prisioneiros ao Calabouço, onde sofriam a pena de açoite.  Somente no ano de 1826, houve registro de 925 fugitivos apanhados, em sua maioria homens nascidos na África.  Para Karasch, as mulheres tinham mais oportunidade de se refugiar nas casas de "protetores", o que  dificultava sua recaptura.  Além disto, muitas vezes acabavam sendo punidas no próprio âmbito doméstico e não na prisão². 
            O sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987) coletou milhares de anúncios sobre fugas de escravos, recorrendo essencialmente ao Diário de Pernambuco e ao Jornal do Commercio (do Rio de Janeiro).  Este trabalho resultou em um livro, datado de 1963, que já passou por diversas reedições.                             


        Buscando dados sobre a política eleitoral no Império, habitualmente me deparo com informações desta natureza.  Certa ocasião, quando consultava exemplares de 1857 do Jornal do Commercio, tive o impulso de fotografá-las, montando uma pasta de imagens, que aqui reproduzo parcialmente.  Minha intenção, em primeiro lugar, é mostrar aos leitores que fontes históricas não são informações guardadas a sete chaves, somente ao alcance de um punhado de pesquisadores profissionais ou acadêmicos de ponta.  Qualquer pessoa que possua instrução básica e uma certa polidez conta com a chance, recorrendo a bibliotecas, arquivos e casas de cultura, de realizar descobertas fascinantes.
         Em segundo, quero compartilhar um pouco do meu espírito de torcedor.  Um olhar objetivo nos dirá que todos os atores mencionados, escravos e donos de escravos, estão mortos há pelo menos um século.  Todos estes episódios já tiveram seu desfecho há mais de cento e cinquenta.  Porém, ao mergulharmos nas curtas narrativas, torna-se possível construir quadros fictícios, desejar que cada fugitivo triunfe sobre seu senhor, eventualmente até aconselhá-lo sobre o que fazer para escapar da polícia e dos capitães do mato.           
                    


               José Frazão de Souza Breves, proprietário do marujo baiano, é meu velho conhecido dos antigos almanaques.  Negociante e político do município de Mangaratiba, no litoral sul fluminense, tinha como pai o comendador Joaquim José de Souza Breves, o Rei do Café.  Que sentimento levaria Miguel a desafiar a ira de uma das famílias mais ricas e poderosas do país? O tédio das quase quatro décadas no cativeiro, o desespero provocado por castigos físicos ou privações recentes ou a ambição despertada por alguma proposta de trabalho assalariado?  Jamais saberemos ao certo.     


           A evasão de Thomaz é um exemplo concreto de que os cativos com profissão definida, que não raro dispunham da confiança de seus senhores e se moviam com desembaraço pela cidade, reuniam com relativa facilidade meios para fugir.  Neste caso, porém, a figura singular do cozinheiro representava um empecilho à sua necessária "invisibilidade".     


           Não se apressem em identificar no garoto Franklin, sem dúvida um digno representante da resistência escrava, também um proto-herói do movimento gay.  Imagino o que diria Luiz Mott ao ver o apelido de Frango! Qualquer atitude de incitação à fuga, no linguajar da época, recebia o título de "sedução".  Orientação sexual à parte, o fôlego dos dezesseis anos era uma vantagem para quem pretendia sumir. Mas a vestimenta algo incomum tendia a atrapalhar, bem como os passeios em locais próximos à casa do coronel Conrado.       


          Provavelmente estamos diante de um dos muitos dramas produzidos pelo tráfico interprovincial que se generalizava naquela década.  Privados de seus amigos e das referências de parentesco, escravos como Geraldo, trazidos de áreas de menor dinamismo econômico para o Sudeste cafeeiro, não raro escapavam  ao primeiro sinal de afrouxamento da vigilância sobre eles exercida.  


        Sobre este grupo tão heterogêneo, é lícito calcular que Liberato, mestiço de cabelos lisos, tenha se escondido em outra municipalidade, na qual se apresentaria como homem livre.  Sua familiaridade com cavalos, compartilhada por José, talvez favorecesse uma saída imediata da província, pois a vila de Valença estava bem próxima de Minas Gerais.  Quanto a Gregório, não é impossível que a tonalidade de pele fula (avermelhada) lhe permitisse ocultar o nascimento na África Ocidental.  Como "crioulo" fluminense, seria mais fácil passar por liberto ou mesmo nascido livre.      


        João Congo, em torno dos 25 anos, idade superior à expectativa média de vida dos escravos no Brasil, carregava em seu corpo várias mazelas do cativeiro: a calvície por trauma, as sequelas nos pés pelas caminhadas sem sapatos, o vestuário roto e encardido.  Seu próprio senhor levantou a hipótese de que talvez se suicidasse por afogamento, circunstância nada surpreendente entre os escravos do Rio de Janeiro.  


      Wencesláo, segundo os muitos entusiastas da "escravidão reabilitada", seria um "escravo de elite": vivia no centro do município da Corte, obedecia a senhores estrangeiros, talvez aprendesse em breve técnicas litográficas, podendo reunir em alguns anos recursos para negociar sua alforria.  Não obstante tais "privilégios", vestiu a jaqueta escocesa e caiu no mundo.  Notemos, no uso do termo "moleque de nação", a falta de pudor dos anunciantes, ao admitirem tacitamente que se tratava de africano embarcado para o Império em período posterior à proibição do tráfico atlântico.     


            Provavelmente mais uma vítima do tráfico interprovincial, este outro João adotava um procedimento pouco comum: nascido no Brasil, declarava ser africano, condição que implicava em desvalorização na hierarquia do escravismo.  Pura estratégia para assumir com êxito a identidade de outra pessoa ou identificação étnica com familiares deixados no Maranhão?  Também ficaremos sem saber. 
          Fujam, Joões! Volte para a Bahia, Miguel! Franklin, vá para Niterói e nunca mais ande perto da casa do velho Conrado! Thomaz, espere a poeira baixar e depois entre no primeiro navio com destino a Luanda! Como todas as Histórias são mesmo Histórias Contemporâneas, em cada um deles que visualizamos se furtando em definitivo ao cativeiro, nós, trabalhadores, podemos projetar também uma fuga das relações econômicas e sociais que nos desfavorecem no capitalismo.

Notas:
1-Cf. Mary Karasch.  A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850.  São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 399. 
2- Idem, pp. 399 a 401.


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