Recebi
ontem um comentário relacionado ao post "Ditadura para salvar a
democracia: de volta a uma velha mistificação". Infelizmente, seu autor preferiu permanecer
no anonimato. Entretanto, pela
relevância do conteúdo, reproduzo-o abaixo, na íntegra, para que as devidas
considerações não se limitem a um debate entre dois indivíduos, na melhor das
hipóteses observados por um pequeno número de leitores mais atentos.
Não sei se Jacob Gorender e Daniel Aarão Reis Filho são considerados
historiadores de baixa, mediana ou alta projeção, mas o que você me diz destas
afirmações:
"Tornou-se corrente na literatura acadêmica a assertiva de que, no
pré-64, inexistiu verdadeira ameaça à classe dominante brasileira e ao
imperialismo. Os golpistas teriam usado a ameaça apenas aparente como pretexto
a fim de implantar um governo forte e modernizador. A meu ver, trata-se de
conclusão positivista superficial derivada de visão estática das coisas.
Segundo penso, o período 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos
trabalhadores brasileiros neste século, até agora. O auge da luta de classes,
em que se pôs em xeque a estabilidade institucional da ordem burguesa sob os
aspectos do direito de propriedade e da força coercitiva do Estado. Nos primeiros
meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista
se definiu, por isso mesmo, pelo caráter contra-revolucionário preventivo. A
classe dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir antes que o
caldo entornasse."(Jacob Gorender em "Combate nas Trevas")
"Ao longo do processo de radicalização iniciado em 1961, o projeto
das organizações de esquerda que defendiam a luta armada era revolucionário,
ofensivo e ditatorial. Pretendia-se implantar uma ditadura revolucionária. Não
existe um só documento dessas organizações em que elas se apresentassem como
instrumento da resistência democrática."(Daniel Aarão Reis Filho em
entrevista publicada no O Globo dia 23/09/2001)
Quanto
à indagação inicial, é ponto pacífico que Gorender e Aarão Reis são, digamos
assim, historiadores de primeiro
escalão, cujas obras não podem de forma alguma ficar excluídas desta discussão. Como, ao contrário deles, não
testemunhei diretamente os processos mencionados (nasci em 1967), recorro a
outros profissionais, de variadas linhas ideológicas, para embasar minhas
opiniões.
Havia forças revolucionárias de
esquerda nos anos que antecederam o golpe de 1964? Sem dúvida. Theotonio dos Santos faz referência ao POLOP
(Organização Marxista Revolucionária Política Operária), grupo refratário à
estratégia de compromisso entre a esquerda e o "nacionalismo
burguês". O PC do B, formado em
1962, adotava então uma linha maoísta.
Segundo o autor, também poderiam ser enquadradas na categoria de
“revolucionárias” as Ligas Camponesas e a Ação Popular, que reunia esquerdistas
cristãos[1].
Carlos Guilherme Mota e Adriana López destacam a atuação das Ligas Camponesas
como fator de exacerbação dos “ânimos da direita”, que temia a possibilidade de
uma revolução nos moldes cubanos na região Nordeste[2].
Entre reconhecer a presença de
potenciais guerrilheiros e constatar uma “situação pré-revolucionária”, temos
uma distância muito grande. É inegável a
existência, no Brasil contemporâneo, de milhares de ruralistas que mantêm seguranças
bem armados, de milícias urbanas cuja visão política tende à direita e de
saudosistas da ditadura, militares, paramilitares e civis. Contudo, alguém que se referisse hoje à
iminência de um golpe direitista seria visto como insano. Significativamente, Jacob Gorender deixa
implícito no trecho transcrito que sua tese está longe de predominar entre os
especialistas no tema.
Moniz
Bandeira expõe que a insuspeita (neste caso) CIA, em relatório de 1963,
informou que o PCB contava com apenas 30 mil membros e uma massa de
simpatizantes estimada entre 150 e 200 mil pessoas, pouco expressiva para um
país de 75 milhões de habitantes e 20 milhões de eleitores. Conforme o mesmo relatório, os comunistas
apoiavam a constitucionalidade com João Goulart, não somente pela falta de
meios para implantar um regime decididamente esquerdista, como pela incerteza
do apoio da URSS, já comprometida no terreno financeiro com o auxílio a
Cuba. Além disto, a prolongada situação
de ilegalidade enfraquecera o PCB, na medida que muitos de seus antigos
adeptos (particularmente no Rio Grande do Sul) tinham migrado para o PTB,
partido orientado por Goulart na direção de um nacionalismo reformista. Diante deste quadro, o Departamento de Estado
dos EUA avaliava como "escassas as possibilidades de que os comunistas
dominassem o Brasil em futuro previsível[3]".
O
presidente, por sua vez, era nitidamente um moderado. Darcy Ribeiro, chefe da
Casa Civil do governo Goulart, registrou a posição de Jango sobre a pretendida
Reforma Agrária:
“Com cinco, dez milhões de pequenas propriedades
rurais, a propriedade estará muito mais defendida e muito mais gente comerá e
educará os filhos[4]”.
Como se
percebe, não havia a mais remota intenção de eliminar a propriedade de tipo
capitalista; ao contrário, Goulart desejava criar uma massa numerosa de
proprietários. Podemos duvidar, por
várias razões, que o projeto tivesse viabilidade, mas é necessária muita
imaginação para ver nele a semente do comunismo.
Thomas Skidmore entende que Jango,
mesmo atraindo para a órbita do governo, após o anúncio das Reformas de Base,
os setores radicais, neles incluída a ala brizolista do trabalhismo, não
organizou “uma base de apoio popular maciço para um Governo reformador”, nem
tampouco “uma base de apoio para ataque revolucionário contra a estrutura
constitucional que jazia por trás do impasse político”. Dificilmente o faria, pois não se definia
como revolucionário, nem ao menos como esquerdista. Para Skidmore, o sucesso do comício de 13 de
março empolgou em excesso a esquerda por ele intitulada “jacobina”, que, além
de se apresentar muito dividida, era incapaz de perceber que a “situação de
força”, naquela conjuntura, não permitia a realização de seus projetos[5]. Quase idêntica é a interpretação de Boris
Fausto, para quem “os conspiradores contrapuseram a violência às ilusões da
esquerda[6]”.
Como o assunto é vasto demais para
ser esgotado em uma matéria de blog, e podemos retornar a ele em outras
oportunidades, finalizo com algumas observações:
.As
organizações interessadas na luta armada eram muito menos influentes, sem falar
na quantidade de adeptos, do que o PTB, partido de centro-esquerda, ou mesmo
que o PCB, o partido “tradicional” da extrema esquerda, que como vimos também
não se empenhava, naquela altura, na ação revolucionária.
.Mesmo
que, repetindo o grave erro de cálculo de 1935, uma parte dos militantes
revolucionários se arriscasse na tentativa de chegar ao poder pelas armas, suas
chances de sucesso seriam nulas. Estes grupos não dispunham de um comando
unificado ou de uma liderança nacional, o presidente não lhes daria sustentação
e os militares de todas as tendências (talvez com exceção dos marinheiros de
poucas unidades) uniriam forças para derrotá-los imediatamente.
.É
bastante contraditório que os chefes militares golpistas se mostrassem tão
preocupados com a ameaça à soberania nacional representada pelos grupos
filo-soviéticos, filo-cubanos e filo-chineses, e estivessem tão à vontade
quanto à presença de milhares de oficiais e soldados norte-americanos nas
praias brasileiras e as constantes movimentações do embaixador Lincoln Gordon
no sentido de facilitar, caso houvesse um conflito de grandes proporções, uma
intervenção direta dos Estados Unidos em prol das forças de direita.
.O regime
instalado em 1964 não democratizou o país; ao invés disto, dissolveu seu quadro
partidário, bem ou mal relativamente consolidado, fez expurgos ideológicos no
Legislativo, no Judiciário e nas próprias Forças Armadas e produziu várias
modalidades de casuísmo para se perpetuar.
Levou ao poder políticos seguidamente batidos nas urnas, conspiradores
por vocação, e os tecnocratas que os assessoravam. Sobre o objetivo apregoado
de eliminar a corrupção, penso que basta dizer que a herança dos generais-presidentes
era disputada, em 1984, por Maluf e Andreazza.
A ditadura foi ilegítima do princípio ao fim.
.
[1] Ver
Theotonio dos Santos. Evolução
histórica do Brasil. Petrópolis:
Vozes, 1994, pp. 87 a
89.
[2] Cf. Adriana López e Carlos Guilherme Mota. História do Brasil: uma interpretação. São Paulo: Senac, 2008, p. 778.
[3] Ver Luiz Alberto Moniz Bandeira. O governo João Goulart: as lutas sociais
no Brasil, 1961-1964. Rio de
Janeiro: Revan; Brasília: UnB, 2001, pp. 157/158.
[4] Cf. López e Mota. Op. cit, p. 778.
[5] Ver Thomas Skidmore. Brasil: de Getúlio a
Castelo. São Paulo: Paz e Terra,
2000, pp. 353/354.
[6]
Ver Boris Fausto. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1998, p. 462.
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