sábado, 31 de março de 2012

31 de março de 1964: a ruína dos trabalhadores




           A expressão corrente “golpe militar”, aplicada ao movimento que derrubou, em 1964, o governo constitucional do presidente João Goulart (1919-1976), embora não seja exatamente incorreta, é imprecisa.  Ela oculta o papel desempenhado por numerosos civis durante o longo processo conspiratório que resultou na movimentação de tropas a partir de 31 de março.
            O que desejo salientar, a princípio, é que “nossa” última ditadura não foi, como definem alguns, o assalto de uma corrente de militares conservadores ao poder central, que julgavam mais seguro em suas mãos do que nas de civis corruptos ou “populistas”  (quando não tachados de “comunistas” e “criptocomunistas”).  O regime político estabelecido em 1964 expressava o sucesso de uma vasta articulação de interesses de classe, solidamente construída no interior de múltiplas instituições, que tinham em comum os objetivos de preservar o poder oligárquico e os valores elitizantes.
            Uma destas instâncias era, sem dúvida, a União Democrática Nacional (UDN), o partido mais nitidamente de direita que existia no país.  Costumamos pensar, e provavelmente com acerto, no eleitor udenista típico como integrante de uma classe média conservadora e urbana, com mediana ou elevada escolaridade, temeroso de que a ascensão econômica dos trabalhadores sindicalizados comprometesse o seu status.  A UDN, que surgiu na década de 40 como um mosaico de grupos políticos contrários ao varguismo, acabou por se consolidar como força aglutinadora daquele eleitorado, liberal no terreno da economia e conservador nas questões referentes à organização da sociedade. 
            Entretanto, se a viabilidade da representação parlamentar da UDN dependia dos votos daquele segmento da classe média, vários de seus dirigentes de maior expressão eram empresários muito ricos.  Um deles, Júlio de Mesquita Filho, proprietário do jornal O Estado de São Paulo (publicação chamada jocosamente de “alter-ego da UDN paulista”), em 1962 já elaborava um “Roteiro da Revolução” para ser seguido pelos militares anti-Goulart. Mesquita defendia em seus editoriais, além do alinhamento mais automático do Brasil com os Estados Unidos e com a Europa Ocidental, a adoção de um sistema econômico que privilegiasse a iniciativa privada e reduzisse, consequentemente, a intervenção estatal[1].  Outro, o banqueiro Herbert Victor Levy (1911-2002), também dono de jornais, participou ativamente das reuniões entre empresários, políticos e militares organizadas pelo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e pelo IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que também contribuíram expressivamente para o desfecho do golpe[2].  Ernani Sátiro (1911-1986), fazendeiro paraibano continuamente eleito pela UDN desde a Constituinte de 1945, confessou, em entrevista concedida a Maria Victoria Benevides no ano de 1977, ter recebido verbas do IBAD para suas campanhas políticas; na ocasião, alegou uma suposta justiça na estratégia de empregar o poder econômico contra o comunismo[3].
            A exposição de todos os exemplos possíveis consumiria muitas laudas. O que pretendo afirmar objetivamente é que, inspirado e incentivado por empresários, o regime ditatorial não poderia deixar de exprimir, em sua política econômica, as demandas da burguesia.  Sabe-se que os liberais mais ortodoxos foram frustrados, no decorrer das presidências militares, em suas expectativas de desestatização.  Porém, nada tiveram a reclamar no que se refere à implantação de um modelo radicalmente concentrador de renda, com enorme prejuízo para os assalariados.
            Quando assumiram o comando da equipe econômica do governo Castelo Branco, Roberto Campos (1917-2001) e Octavio Gouveia de Bulhões (1906-1990) apontaram, ao redigir o PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo), que as causas da altíssima inflação que assolava o Brasil eram o déficit público, o excesso de crédito para o setor privado e os aumentos salariais[4].  Este diagnóstico resultou, naquela gestão, na diretriz de promover uma forte contenção dos salários.  De início, Castelo Branco utilizou suas prerrogativas presidenciais para demitir de seus cargos os principais líderes sindicais, que perderam os direitos políticos e, em alguns casos, foram processados por subversão.  Desta maneira, ficavam bastante diminuídas as possibilidades de resistência.  Com as mãos livres, Campos e Bulhões impuseram ao setor público uma regra pela qual os salários teriam somente um reajuste anual, sistema mantido até 1979.  Como os aumentos do setor privado permaneciam acima do que fora estipulado como meta no PAEG, o governo obteve do Congresso, em 1965, a ampliação de sua faculdade de fixar salários.  Apenas em 1968, quando a conjuntura econômica foi considerada estável, restabeleceu-se a negociação coletiva[5].   
            Criando o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), em setembro de 1966, o governo liquidou também a estabilidade no emprego, prevista pela legislação anterior ao golpe.  Os empregadores adquiriram o direito de demitir livremente seus empregados, sem justa causa.  Os que ingressavam em novos empregos, por sua vez, se viam obrigados na prática a assinar um documento que, ironicamente, ficou conhecido como termo de opção.  Enquanto se mantinha a repressão contra os sindicatos, crescia a rotatividade da mão de obra, de acordo com a intenção da equipe econômica[6].
            Rebaixada a massa salarial, os trabalhadores precisaram recorrer a duas estratégias para reforçar sua renda: a busca por horas extras e o crescimento do número médio de pessoas que trabalhavam em cada família.  Isto gerou, além da expansão do trabalho infantil, a depreciação do próprio valor da mão de obra, em decorrência do excesso de oferta.  Enquanto isso, na medida em que a legislação estimulava as empresas a dispensarem empregados nos períodos próximos aos dissídios, contratando outros com custo menor, aumentou também a disparidade entre os salários maiores e os mais baixos[7].  Os funcionários, públicos ou privados, que detinham funções ligadas ao controle da produção ou nos altos escalões burocráticos, recebiam em média reajustes muito superiores aos do operariado.  Assim, a renda dos 20% mais ricos passou de 54% em 1960 para 62% em 1970 e 67% em 1976; a dos 50% mais pobres, inversamente, decresceu de 17,7% em 1960 para 14,9% em 1970 e 11,8% em 1976[8].
            Apesar da conjuntura extremamente desfavorável às mobilizações populares, o operariado não permaneceu passivo.  Entrando em greve em meados de 1968, os metalúrgicos de Contagem (MG) pararam a Siderúrgica Belgo-Mineira.  O movimento se alastrou e obteve a adesão de 15 mil trabalhadores, que ao final de dez dias arrancaram um acordo do patronato.  Na mesma época, em Osasco (SP), metalúrgicos e estudantes atuaram em conjunto para ocupar a Cobrasma, empresa fabricante de material ferroviário.  Desta vez, o governo enviou tropas para efetuar a desocupação, realizada com violência.  O Ministério do Trabalho interveio no Sindicato dos Metalúrgicos local, cujo presidente, José Ibraim, se refugiou na clandestinidade[9].
            Como se não bastassem a repressão e a política de arrocho, a ditadura era desonesta até na aplicação de suas próprias regras.  Em agosto de 1977, o governo admitiu em caráter oficial que os índices de inflação de 1973 e 1974 tinham sido manipulados no sentido de desvalorizar ainda mais os salários.  A defasagem apurada dos salários reais atingia 31,4%, o que levou os Sindicatos de Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema (SP) a exigir correção.  O processo desembocou nas greves de 1978 e 1979, nas quais milhões de trabalhadores cruzaram os braços[10].
            Poderíamos alinhar indefinidamente outros indícios de que os governos ditatoriais atuaram sistematicamente contra a maioria da população brasileira e favoreceram as oligarquias financeiras, industriais, comerciais e agrárias.  Hoje, dia 31 de março de 2012, constato que só há um fato a ser comemorado: a completa desmoralização da ditadura, cuja memória é renegada até por muitos dos que dela extraíram grandes vantagens. 


[1] Cf. Maria Victoria de Mesquita Benevides.  A UDN e o udenismo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 128/129.
[2] Idem, p. 127.
[3] Ibidem, p. 122.
[4] Ver Thomas Skidmore.  Brasil: de Castelo a Tancredo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004 (8ª ed.), p. 69.
[5] Idem, pp. 80/81.
[6] Cf. Lincoln de Abreu Penna.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 268.
[7] Cf. Sônia Regina de Mendonça e Virgínia Maria Fontes.  História do Brasil recente, 1964-1992.  São Paulo, Ática, 1996, pp. 26/27.
[8] Idem, pp. 31/32.
[9] Cf. Boris Fausto.  História do Brasil.  São Paulo: Edusp, 1998, p. 478.
[10] Idem, p. 499.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Fábulas do Reino de Vassouras (II)



1885

O início da legislatura foi agitado. Em dois meses Dantas percebia sua fraqueza, e um voto de desconfiança o derrubava do poder. Poderia ainda dissolver a Câmara, mas o imperador não o apoiou desta vez. Ao chamá-lo para organizar o Gabinete que sucedeu ao de Saraiva, D. Pedro perguntara ao chefe baiano o seu programa. Dantas não vacilara:

- A abolição, majestade.

E Pedro II, bonachão:

- Pois seja, senhor Dantas. Mas se o senhor correr eu o seguro pela aba do casaco.

(Márcio Tavares D’Amaral (texto). Rodrigues Alves [coleção A vida dos grandes brasileiros]. São Paulo: Editora Três, 1974, p. 51.



            Conforme prometi, hoje me reporto a um segundo vídeo do “herdeiro do trono que não há”.  Prepare mais uma vez, caro leitor, seu aparelho digestivo, pois a produção é tão ruim quanto a precedente, como podemos presumir já pelo título, “Dom Bertrand responde sobre a raça negra e a escravatura”:


            É impossível, e provavelmente indesejável, expulsar todos os mitos do imaginário da humanidade, mas penso que crer em Papai Noel depois dos seis anos de idade sempre traz seus prejuízos.  Bertrand incorre exatamente nisto, ao iniciar a exposição (generosamente abro mão das aspas) com um dos clichês mais simplórios,  infelizmente muito vulgarizado, de que se tem notícia:

“Perdeu o trono porque libertou os escravos”.

            Sim: o cardeal da TFP faz mesmo coro à matriarca de todas as balelas, sabidamente produzida por um intransigente escravocrata, o barão de Cotegipe, de que ao assinar a Lei Áurea a princesa Isabel, por extensão, renunciava à perspectiva de um Terceiro Reinado.  Devo, então, sem correr o risco de escrever quinze ou vinte cansativas páginas, trazer à tona alguns dados inconvenientes para o Bragança:           

1)A Lei Áurea foi uma peça jurídica debatida no Parlamento e aprovada na Assembleia Geral com cerca de 90% de votos favoráveis.  As manifestações contrárias partiram, na quase totalidade, dos representantes dos fazendeiros das áreas mais antigas da cafeicultura fluminense, em acentuada decadência, que tinham grande percentual do seu patrimônio expresso na propriedade dos escravos que ainda conseguiam manter.  Isabel poderia ter se negado a sancionar a lei?  Teoricamente sim, mas por que o faria contra a esmagadora maioria da opinião pública e contra a tendência dominante entre a própria classe política do país?

2)A vontade política pró-abolição de Isabel é um dado no mínimo discutível.  Ela não compareceu, por exemplo, ainda que fosse convidada por lideranças do movimento, à reunião da Confederação Abolicionista do Rio de Janeiro que foi marcada para o Teatro Polytheama, em agosto de 1887.   Para piorar a situação, o gabinete Cotegipe, que tentava sistematicamente impedir as reuniões públicas (na verdade proibindo-as), mobilizou a polícia para atacar a plateia.  Vencidos os guardas na luta corporal e corridos a pedradas, o teatro foi invadido por soldados de cavalaria e infantaria.  Os organizadores do evento desistiram dele para evitar um banho de sangue.  Isabel, que detinha as prerrogativas do Poder Moderador, nada fez contra o governo arbitrário[1].     

3)O propalado abolicionismo de Pedro II também é muito discutível.  Somente pela Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871) os escravos “pertencentes à Nação”, bem como os “dados em usufruto à Coroa”, obtiveram liberdade formal.  Isto significa que, três décadas depois de coroado, o imperador, tivesse ou não questões de consciência quanto ao fato, ainda dispunha de mão de obra servil.  A posição de Pedro II sobre o fim da escravidão pode ser melhor compreendida por meio de uma declaração feita por ele ao jornalista argentino Hector Varella:

“Alguns me atacam com tão clara injustiça, crendo que eu retarde a hora mais feliz do meu reinado, aquela em que eu pudesse anunciar ao mundo que já não existe um só escravo em minha pátria e que o último desses desgraçados é tão livre como eu ... Mas a abolição imediata, hoje, agora, não se poderia decretar senão consultando as nobres e generosas impressões do coração, de que participamos todos. Há que prepará-la, para que a liberdade repentina concedida aos escravos não fira profundamente grandes interesses, que devem ser respeitados[2]".

            Traduzindo para uma linguagem mais vulgar: “sou intelectualmente a favor da abolição, mas só a permitirei quando tiver a certeza de que meus ouvidos sensíveis não serão feridos pelos impropérios de nenhum dos meus conselheiros”. Convinha posar de esclarecido e progressista em cima do muro.

4)Não há nada de mais incoerente do que afirmar que os ex-senhores de escravos contrariados derrubaram a monarquia.  O regime sofria com a erosão de suas bases de apoio há duas décadas, mais precisamente desde que Pedro II, desastradamente, impôs ao país o gabinete chefiado por Itaboraí, praticamente com respaldo zero do Parlamento.  O próprio Quinze de Novembro, enquanto evento, foi promovido por setores urbanos.

            Para concluir o assunto, vale, sem desmerecer em nada a atuação dos militantes abolicionistas incondicionais, aqueles que se expuseram às pauladas da polícia e à discriminação social dos escravocratas, o parecer de um analista insuspeito de qualquer radicalismo, Ruy Barbosa (1849-1923):

O escravo teve um papel autonômico na crise terminativa da escravidão. Abaixo da propaganda multiforme, cuja luz lhe abriu os olhos ao senso íntimo da iniqüidade, que o vitimava, ele constitui o fator determinante na obra de redenção de si mesmo. O não quero dos cativos, esse êxodo glorioso da escravaria paulista, solene, bíblico, divino como os mais belos episódios dos livros sagrados, foi, para a propriedade servil, entre as dubiedades e tergiversações do Império, o desengano definitivo[3].

            Sigamos com as bobagens de Bertrand.  Ele volta a biologizar questões que são étnicas e sociais ao comentar sobre o quanto é “interessante” que Neguinho da Beija-Flor tenha mais “sangue europeu” do que “sangue africano”.  Imaginemos, então, que no calor de um protesto de rua certo sargento do batalhão de choque aponte para um homem de pele escura e cabelos encarapinhados e grite para seus subordinados: “Pau naquele crioulo ali!”.  Sei que isto nunca aconteceu nem aconteceria na democracia racial brasileira, mas pensem em Bertrand sugerindo à vítima que responda aos perseguidores nos seguintes termos: “Senhores, eu não sou tão negro assim, meu bisavô era português!”. 
            Mais aberrante ainda é a “tese” sobre a formação do Brasil, tosca até pelos padrões da República Velha.  O “príncipe” acredita, em 2012, que “raças humanas” têm qualidades psicológicas inatas, da mesma forma que um pit bull tende a morder os estranhos enquanto um golden retriever abana a cauda.  Não à toa, nesta categorização cabe ao negro entrar com a força física e a bondade para a constituição do brasileiro, tal como nas velhas cartilhas que diziam que o índio indomável fugira da escravidão para as florestas, enquanto o africano dócil se submetia ao eito.
            Quem segue uma liderança como a de Bertrand de Orléans e Bragança não precisa de adversários.  O monarquismo brasileiro só pode, com efeito, caber por inteiro em dois vagões de metrô.



[1] Ver Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Humberto Fernandes Machado. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 377/378.
[2] Citado em Araken Távora. D. Pedro II e o seu mundo através da caricatura. Rio de Janeiro: Bloch, 1976.
[3] Citado em Jacob Gorender.  A escravidão reabilitada.  São Paulo: Ática, 1991, p. 82.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Fábulas do Reino de Vassouras (I)



Entre todos os direitistas, os que mais me agastam são os partidários da monarquia.  Não consigo entender como uma pessoa de capacidade cognitiva normal pode aceitar que, com base no nebuloso “princípio da tradição”, uma família detenha com exclusividade a prerrogativa eterna de chefiar um Estado.  Porém, creio que é precisamente este o fator de sedução para aqueles que gostam: “se eu devo me inclinar perante Sua Majestade, cuja autoridade é legitimada pelo sangue, os que estão abaixo de mim no ‘edifício social’ também devem se inclinar, para Sua Majestade e para mim”.  Quem venera um rei ou imperador, posto no topo da sociedade, dispondo da faculdade de dissolver o parlamento eleito, está propenso a ver toda e qualquer hierarquia como parte de uma ordem natural. 
            Pesquiso, há cerca de doze anos, documentos do Império do Brasil. Embora minha opinião sobre aquele regime tenha se tornado cada vez mais ácida, não farei da crônica de hoje um maçante panfleto antimonárquico.  A expressão política do movimento monarquista é tão pífia que advertir o país sobre os perigos de um regresso pareceria obra de lunático.  Falo de monarquia somente porque esbarrei, em mais uma excursão imprudente pelo planeta virtual dos reacionários, com a série de vídeos publicizados no Youtube por Bertrand de Orléans e Bragança, festejado membro do Ramo Dinástico de Vassouras.  Nego-lhe propositalmente o tratamento de Dom. Natural de Mandelieu, na República Francesa, Bertrand certamente não recebeu distinções imperiais em sua certidão de nascimento.
            O blog deste bisneto da princesa Isabel traz dois links, na coluna “D. Bertrand responde no Youtube”, com pequenas filmagens realizadas durante uma entrevista concedida ao Canal do Boi em Sertãozinho (SP).  Fiquei tão impressionado com a quantidade de disparates, ditos em menos de quatro minutos, que dividirei o assunto em duas postagens.  A primeira peça foi intitulada “Dom Bertrand responde sobre quilombolas”.  Apresento o endereço para quem dispuser de estômago forte:                    


            A visão de mundo do entrevistado fica explícita logo na primeira frase:

“Nunca houve problema racial nesse país e nunca houve problema de quilombolas.”

            Imagino Bertrand entrando no túnel do tempo para um encontro com o lisboeta Francisco Alberto Teixeira de Aragão (1788-1847), intendente geral da polícia carioca entre 1824 e 1827.  Calculo que Aragão, tendo dedicado os principais anos de sua vida à contenção da população negra, escrava, liberta ou nascida livre, faltaria com a boa educação, mesmo diante de um integrante da Casa Imperial, caso a pérola chegasse aos seus ouvidos.  Com a petulância que me caracteriza, sugiro ao Bragança que adquira o livro A Sabinada, de Paulo César de Souza (Brasiliense, 1987) e leia as transcrições dos jornais dos rebeldes federalistas baianos.  Será necessário muito contorcionismo para desconsiderar as reivindicações de igualdade elaboradas pelos articulistas mulatos, entre os quais estava o próprio Francisco Sabino, um dos mentores intelectuais do movimento.  Difícil será também negar que, vinda a inevitável repressão, o tratamento dos condenados variou de acordo com a cor.  Supondo que Bertrand aprecie o começo da jornada, proponho que prossiga com O fiador dos brasileiros, de Keila Grinberg (Civilização Brasileira, 2002).  Saberá que Antônio Pereira Rebouças, pai do engenheiro André Rebouças, mesmo superando as barreiras que dificultavam a instrução dos pobres e ocupando posições de prestígio, inclusive cargos eletivos, não escapava de apelidos injuriosos como “moleque de rua” e “neto da rainha Ginga”.  Verá que a mera presença de Rebouças foi suficiente, certo dia, para tornar azedo um banquete de oligarcas.  Ainda voltando o olhar para a velha Bahia, Bertrand poderia constatar, talvez pelos trabalhos de João José Reis, o tom empregado pelos donos de terras do Recôncavo e comerciantes portugueses da capital quando se referiam à maioria negra que vivia ao seu redor, e que juízo fariam de uma hipotética integração.
Não direi mais nada sobre tensões étnicas.  O post se transformaria em longo ensaio, e na verdade ineficaz: para quem crê que sua família tem um trono a recuperar, acreditar em democracia racial é a coisa mais simples do mundo.  Tratemos, pois, dos quilombos.
Tomando como verdadeira a versão do Bragança, concluo que seu trisavô Pedro II, que comprovadamente se interessava pelos pormenores da administração pública, era constantemente bombardeado por notícias mentirosas, fabricadas pelos presidentes de província que ele mesmo nomeava.  Um dos cascateiros, lamentavelmente, seria meu próprio trisavô, tenente-coronel Francisco José Cardoso Júnior, que como presidente de Mato Grosso informou que a assembleia local tinha estipulado, em 1871, uma verba para o ataque a um quilombo situado a trinta léguas de Cuiabá:


            Como o “problema” era falso, sabe-se lá o que foi feito do dinheiro!!!  Outro ficcionista, Francisco Carlos de Araújo Brusque, que governava o Pará em 1862, citou uma coleção de falsos mocambos e ainda ousou relatar que ordenou a destruição de um destes locais imaginários:


            O conselheiro Paulino José Soares de Souza, depois feito Visconde do Uruguai, possivelmente foi um dos precursores da brincadeira de mau gosto, visto que no remoto ano de 1839 já inventava que os felizes cativos de uma fazenda da freguesia de Pati do Alferes, na província do Rio de Janeiro, haviam escapado para o mato na tentativa de se aquilombar:


            Que diríamos, então, do enredo de autoria do doutor João Antônio de Miranda? Não apenas existiram muitos foragidos da escravidão nas matas maranhenses do Codó, como ainda aliciaram outros e participaram de uma grande rebelião regional:             


            Já Francisco de Paula Rodrigues Alves, que anos mais tarde chegaria à presidência da República, estaria em completo delírio, quando escreveu, em pleno ano de 1888, que os escravos continuavam a fugir dos cafezais paulistas e, fato inacreditável, alguns deles ainda ameaçavam a vida de um barão:


            Não sabiam todos eles que a princesa Isabel “redimiria a raça”?    
Fica difícil compreender, sobretudo, como Pedro II, com auxiliares que o ludibriavam com tanta frequência e facilidade, se manteve durante quase cinquenta anos no trono.  Posso também ter feito uma péssima interpretação, desde o início.  Afinal, para quem escapava da plantation escravista não se colocava “o problema de quilombolas”.  Tornar-se quilombola era o princípio da solução.
            A argumentação que sucede as teses, se é que posso definir tal coisa de maneira tão sutil, cai no terreno do grotesco.  Os quilombolas, “inventados” por antropólogos, são manipulados para a desapropriação de terras, como se não tivessem seus próprios interesses.  O tema da miscigenação surge, possivelmente, como sugestão para desqualificar os negros das áreas rurais da atualidade enquanto descendentes de quilombolas.  Bertrand talvez pense que um quilombola, necessariamente, é alguém com DNA 100% subsaariano.  Preciso ser compreensivo: como ele estudou na Europa, talvez nunca tenha posto as mãos nos manuais escolares que nos contavam que os escravos fugitivos raptavam mulheres de todas as etnias, faziam alianças com tribos indígenas e acolhiam foragidos da Justiça em suas povoações.  A lamúria produzida na defesa dos fazendeiros que fornecem armas a funcionários sem porte legal foi um fecho à altura do resto.  Felizmente parou por ali, mas teremos sequência.                    

segunda-feira, 26 de março de 2012

A ilusória América Portuguesa de Xico Graziano


Navegando despretensiosamente pela Internet, antes do almoço, cheguei a um pequeno artigo assinado pelo agrônomo Xico Graziano, ex-deputado federal pelo PSDB e ex-chefe de gabinete do governo Fernando Henrique Cardoso.  O texto, que foi publicado pelo jornal O Estado de São Paulo na edição de 19 de abril de 2011, estava disponível neste link:


            Fui obrigado a especular, de imediato, sobre os motivos que levam um periódico tradicional, com público leitor consolidado, a dar destaque a uma exposição de tão baixa qualidade.  Graziano cita como fator de “atraso” dos índios brasileiros o desconhecimento, por parte destes, de espécies animais e vegetais que simplesmente não existiam nas regiões que habitavam. Instala o núcleo da colonização espanhola na América Central, quando provavelmente deseja fazer alusão aos massacres cometidos pelos europeus durante a conquista dos impérios Asteca (América do Norte) e Inca (região andina da América do Sul).  Rotula as populações ameríndias brasileiras da contemporaneidade como “remanescentes”, mesmo sabendo que há várias décadas o crescimento demográfico das mesmas supera o da população brasileira como um todo.  Resvalando para o puro humor involuntário, menciona Leandro Narloch enquanto referência intelectual.
            Não farei o leitor perder tempo com uma desconstrução total da visão histórico-antropológica de Xico Graziano, que parece entender tanto de Ciências Humanas quando eu a respeito da soldagem de chapas de alumínio.  O que me inquieta, de fato, é visualizar, em um órgão formador de opinião, uma afirmativa tão absurda quanto esta:

Distintamente da colonização espanhola na América Central, os portugueses aqui não atuaram para dizimá-los. Longe do confronto, os índios mantiveram espírito colaborativo com os colonizadores.

            Deixemos de lado a colonização da América Espanhola, que certamente não foi estudada pelo articulista em seu curso de Agronomia, assinalando somente que atribuir a um determinado tipo de colonizador uma postura de extermínio sistemático dos povos colonizados, à qual seus vizinhos mais próximos seriam imunes, é de um primarismo assustador para alguém com o currículo de Graziano.  O pior efeito deste tipo de colocação é o reforço dado aos falaciosos discursos ancestrais que enalteciam uma colonização supostamente branda, paternal, na qual até os escravos eram bem tratados, tendo como resultado a união de três raças em tudo diferentes para formar um povo pacífico e ordeiro.
            Caso se dedicasse ao hábito salutar de estudar História, Xico Graziano poderia saber, por exemplo, que o terceiro governador geral da América Portuguesa, Mem de Sá, promoveu guerra brutal contra os tupinambás da capitania da Bahia, que, embora tivessem feito um pacto com Tomé de Sousa, mais tarde romperam com os lusos.  Subjugados os tupinambás, Mem de Sá utilizou-os como massa de manobra contra os tupiniquins de Ilhéus, promovendo uma grande carnificina.  Segundo o relato mais comedido, de Gabriel Soares de Sousa, trinta aldeias foram queimadas, distribuindo-se os sobreviventes entre os que fugiram para o sertão e os que se submeteram a viver em aldeamentos jesuíticos. Na versão do frei Vicente de Salvador, as povoações destruídas foram setenta[1].  O mesmo Mem de Sá, ao ser informado de que os caetés haviam devorado o bispo Fernandes Sardinha, autorizou uma “guerra justa”.  Os colonos, então, caíram sobre missões habitadas por doze mil índios.  Apenas mil continuavam vivos quando a ordem foi revogada[2].  Dividida provisoriamente a colônia em 1572, seus dois governadores traçariam na cidade de Salvador, em fins do ano seguinte, estratégias de combate aos “índios rebeldes”.  O administrador do Sul, Antônio de Salema, aplicou o programa na região fluminense de Cabo Frio, matando cerca de dois mil índios e escravizando o dobro[3]
            Tento calcular que juízo faria da matéria de Graziano o inglês Anthony Knivet, aventureiro vindo para a América na frota do corsário Thomas Cavendish, que se notabilizou pelo saque da vila de Santos, em 1591.  Capturado e escravizado pela poderosa família Sá, senhora do Rio de Janeiro, Knivet, obrigado a trabalhar no tráfico de cativos indígenas, deixaria em seu livro de memórias registros como este:

"No meio da batalha nosso capitão, Martim de Sá, foi jogado no rio por um canibal, que o pegou nos braços e, a despeito de todos nós, carregou-o à distância de um tiro de pedra, e o jogou no rio, onde ele teria se afogado se não fosse por um índio muito famoso chamado Patamicu, que era escravo do próprio Martim de Sá. Esse Patamicu (que quer dizer 'tabaco comprido', pois os índios têm esse tipo de nome) matou o canibal que tentava afogar seu senhor, e assim o salvou. Naquele dia vencemos e pegamos dezesseis mil deles, dos quais matamos mil e seiscentos a fio de espada e dividimos o restante entre os portugueses. Depois, atacamos muitas pequenas aldeias, matando todos os velhos, tanto homens quanto mulheres, e separando aqueles que poderiam ser úteis, e depois voltamos para casa[4]".

            Paulista de Araras, Xico Graziano talvez já tenha lido que a invasão pelos holandeses do Nordeste brasileiro e das feitorias africanas que abasteciam os senhores de engenho de mão de obra foi sucedida, no restante da América Portuguesa, pela retomada em larga escala da escravização de índios.  No espaço de seis anos, trezentas aldeias foram arrasadas somente na área paulista, o que resultou na morte de duzentos mil índios.  Não muito diferente foi a atuação dos bandeirantes na subjugação final das populações indígenas nordestinas, já no final do século XVII e no início do XVIII.  Domingos Jorge Velho, a quem cabe a duvidosa glória de ter aniquilado Palmares, fez degolar, após um combate, duzentos e sessenta “tapuias”, recebendo em seguida congratulações do arcebispo da Bahia, Dom Manuel da Ressurreição[5].  Menos sorte teria Manuel Álvares Moraes Navarro, mestre de campo, que depois de massacrar quatrocentos paiacus e aprisionar outros trezentos na aldeia do Açu, no Rio Grande do Norte, recebeu a pena de excomunhão[6].
            Seria facílimo levantarmos outras fontes sobre guerras coloniais, empreendidas pela Coroa ou por seus contratados contra tamoios, goitacases, aimorés, botocudos, caiapós, guaicurus e muitos outros povos.  Porém, pelo menos por enquanto, não escreverei a versão nacional de Enterrem meu coração na curva do rio.  Creio ter sepultado, para quem me seguiu até aqui, a balela da colonização doce, quase filantrópica.  Mas permanece outra questão: para Xico Graziano, os índios que não morreram das doenças vindas do Velho Mundo, satisfeitos por continuarem vivos, se integraram de coração aberto à civilização que lhes chegava como presente.
            Preciso, assim, informá-lo (ou recordá-lo) de que a dita integração poderia ocorrer basicamente de duas formas: a primeira era a escravidão, ou no mínimo alguma modalidade de trabalho compulsório; a segunda, a fixação em aldeamentos administrados por religiosos, notadamente jesuítas.  Acredito piamente que Graziano, em qualquer momento de sua vida escolar, tenha sido apresentado ao esquema clássico sobre as condições de vida nos engenhos: esforço físico de sol a sol, castigos, má alimentação, morte prematura na maioria dos casos.  Quanto aos aldeamentos, que receba a opinião insuspeita de outro simpatizante do PSDB, o historiador Boris Fausto, a respeito do regime imposto pelos padres:

“Mas estes [membros das ordens] não tinham também qualquer respeito pela cultura indígena. Ao contrário, para eles chegava a ser duvidoso que os índios fossem pessoas. Padre Manuel da Nóbrega, por exemplo, dizia que índios são cães em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem[7]”.

            Lamentavelmente, arrazoados sem qualquer fundamentação historiográfica como o do agrônomo tucano são muito mais lidos do que as pesquisas criteriosas dos melhores especialistas.  Alimentam, desta forma, antigos lugares comuns, herança maldita de tempos dos mais oligárquicos.  Por trás da prosa amena e aparentemente bem intencionada, Xico Graziano deixa implícita uma das teses mais caras a seus correligionários ruralistas: índios possuem terras demais. Não tenho o objetivo quixotesco de refutar todos os artigos desta natureza.  Destaco, entretanto, a necessidade da democratização radical dos meios de comunicação.  Os trabalhadores, reunidos em partidos, sindicatos, movimentos sociais e demais organizações de cunho popular, precisam controlar emissoras de televisão e rádio, jornais e blogs, para superar no volume e na veracidade das informações a inconsistente produção cultural dos conservadores.  


[1] A descrição deste processo está em Maria Regina Celestino de Almeida.  Os índios na História do Brasil.  Rio de Janeiro: FGV, 2010, pp. 54/55.
[2] Ver Darcy Ribeiro. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo; Companhia das Letras, 1995, pp. 99/100
[3] Cf. Sérgio Buarque de Holanda (organizador). Grandes personagens da nossa História.  São Paulo: Abril Cultural, vol. I, p. 108.   
[4] Anthony Knivet. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens/Organização, introdução e notas: Sheila Moura Hue; tradução Vivien Kogut Lessa de Sá. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp. 177/178).
[5] Cf. Luiz Alberto Moniz Bandeira.  O feudo: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 229/230.
[6] Idem, p. 264.
[7] História do Brasil.  São Paulo: Edusp, 1998, pp. 49/50.

sábado, 24 de março de 2012

A erudição contra a direita: Domenico Losurdo


“Em geral, a sua boca era demasiadamente grande, a expressão da sua figura era ignóbil e malvada [...]. A sua fisionomia manifestava aquela profunda depravação que pode derivar só de um prolongado abuso da civilização, e não obstante continuavam selvagens.  Aos vícios que haviam assimilado de nós mesclava-se algo de bárbaro e de incivil, que os tornava cem vezes mais repugnantes [...].  Os seus movimentos eram rápidos e desordenados, a sua voz aguda e desafinada, os seus olhares inquietos e selvagens.  No primeiro contato seríamos tentados a ver em cada um deles apenas um bicho das florestas ao qual a educação poderia ter conferido alguma aparência de humanidade, e no entanto permanecera um animal”.

                O discurso etnocêntrico que abre esta postagem foi escrito há mais de um século e meio e seu alvo é a população indígena dos Estados Unidos.  Nada contém de espantoso, se recordarmos que milhões de americanos, na época, viam a propriedade de escravos como um direito sagrado, em defesa do qual pegariam em armas, e julgavam que os seres de cabelos pretos, pele acobreada e olhos oblíquos que ainda se espalhavam por milhões de quilômetros quadrados entre o Mississipi e o Pacífico constituíam um estorvo a ser removido com a maior brevidade possível.  Entretanto, o texto não é de autoria de um missionário enraivecido com o chefe sioux que preferira o uísque falsificado ao seu proselitismo.  Tampouco de um caubói que tentava se justificar pelo assassinato de uma dúzia de apaches em troca de uma recompensa de cem dólares.
            São palavras do respeitadíssimo Alexis de Tocqueville (1805-1859), um dos mais celebrados teóricos da matriz política liberal.  Não proporei nesta crônica o linchamento moral de Tocqueville, que, é preciso lembrar, também se mostrou chocado diante do genocídio praticado por seus anfitriões na América do Norte, apesar da resignação com a inevitabilidade do processo, que podemos atestar em outra passagem:

“Parece que a Providência, colocando essas populações entre as riquezas do Novo Mundo, tenha dado a elas só um breve usufruto; de alguma forma, elas estavam lá só ‘à espera’. Aqueles litorais tão favoráveis ao comércio e à indústria, aqueles rios tão profundos, aquele inesgotável vale do Mississipi, aquele continente inteiro apresentavam-se então como o berço vazio de uma grande nação”.

            O que desejo destacar, de início, é que não encontrei estas citações no site do Instituto Ludwig Von Mises, na coleção Os Pensadores ou em qualquer comunidade do Orkut dedicada ao culto à personalidade de Tocqueville.  Cheguei até elas, e a muitas outras notas indefensáveis, da lavra de numerosos “campeões da liberdade” e varridas para o mundo subterrâneo por seus admiradores, senão desconhecidas até destes mesmos, através de um mestre: Domenico Losurdo.
            Nascido no ano de 1941 em Sannicandro di Bari, na região da Puglia, sul da Itália, Losurdo, professor de Filosofia da História na Universidade de Urbino, é um dos intelectuais mais fecundos do continente europeu.  Fiel ao pensamento marxista e às correntes políticas que se mantêm realmente à esquerda, rejeita visceralmente o compromisso com a visão conformista de que, no mundo pós-Guerra Fria, quase nada há a fazer além de reconhecer o triunfo do laissez-faire e do modelo político liberal.
            Losurdo se alinha entre os poucos filósofos contemporâneos de relevo que não somente prosseguem na luta contra a exploração do homem pelo homem, como também denunciam as hierarquias de gênero, etnia e origem religiosa e/ou regional que caracterizam as sociedades inspiradas no liberalismo ao longo de séculos de existência.  Boa parte de sua vasta produção já foi publicada em português.  Em Fuga da História?  A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje (Rio de Janeiro: Revan, 2004), o autor faz um corajoso inventário das conquistas sociais e tecnológicas alcançadas pelos socialistas no século XX, sem deixar de empregar munição pesada contra a direita, como no trecho em que demonstra quanto o supostamente pacífico Dalai Lama pode ser íntimo de mercenários do Sudeste Asiático colecionadores de orelhas de comunistas.  Em Democracia ou Bonapartismo (Rio de Janeiro: UFRJ, 2004), ele reconstrói a crônica da longa resistência das forças liberais à implantação do sufrágio universal, para depois constatar o quanto este mecanismo democrático, nas sociedades capitalistas da atualidade, se mostra esvaziado em seu conteúdo essencial, incapaz de expressar uma representação popular autêntica.
            Mas, de todos os livros de Domenico Losurdo, meu preferido e primeiro a ocupar lugar em minha estante é Contra-História do Liberalismo (Aparecida do Norte: Idéias & Letras, 2006).  Através de uma vasta pesquisa histórica, seguida de penetrante análise, Losurdo elabora uma gênese dos mecanismos de exclusão nas sociedades liberais, relacionando seus fundamentos ideológicos às ações discriminatórias correspondentes. Percorrendo questões como a prolongada sobrevivência da escravidão na América do Norte, o não-reconhecimento dos direitos dos índios, a opressão da Inglaterra sobre os irlandeses católicos e das metrópoles europeias sobre os súditos das colônias, o filósofo prova com clareza que as garantias típicas do sistema liberal só se aplicam, em sua total extensão, aos que são reconhecidos como parte da “comunidade dos livres”.
Tanto na América quanto na Europa, as classes proprietárias autodefinidas enquanto liberais tenderam a se ver como uma aristocracia natural, uma espécie de raça eleita, formada por homens portadores do “sangue da liberdade”.  No caso anglo-saxão, este orgulho de classe logo se fez acompanhar por uma perspectiva racista.  O letrado Benjamin Franklin (1706-1790) enalteceu os “ingleses situados nos dois lados do Atlântico” como o povo mais puramente branco do mundo, que por esta mesma razão seria o mais apto a viver em liberdade.  John Stuart Mill (1806-1873), para quem a Índia necessitava de uma direção despótica, não tinha melhor conceito sobre os países do sul da Europa, em sua opinião habitados por gente indolente e invejosa, cuja natureza era incompatível com a economia industrial. Investigando acerca da genealogia destas ideias, Losurdo chega à Inglaterra de John Locke, segundo o qual havia três categorias de homens: os escravos propriamente ditos, negros provenientes da África, os livres e os servos brancos.  Os últimos, embora fossem consanguíneos dos livres, deveriam ficar sujeitos à disciplina imposta pelos amos às suas famílias.
Iconoclasta implacável, Domenico Losurdo revela aos leigos que Thomas Jefferson (1743-1826), um dos Pais da Pátria norte-americana, foi decidido adversário da independência do Haiti, por temer que o exemplo dos escravos emancipados por conta própria contagiasse os negros do sul dos Estados Unidos.  Que Thomas Macaulay (1800-1859), notável poeta, historiador e político inglês, negou em seus escritos o direito dos judeus de tomar assento entre os parlamentares do reino. Que Tocqueville, desta vez sem atenuantes, apoiou irrestritamente o colonialismo francês na Argélia, rejeitando a priori qualquer relação de igualdade entre europeus na África e “súditos muçulmanos”. Que Benjamin Disraeli (1804-1881), primeiro-ministro britânico célebre pelas diretrizes expansionistas, via a igualdade entre os homens como uma “doutrina perniciosa”, opondo a ela a superioridade das “puras raças caucásicas”.  Losurdo conclui, ao julgar no conjunto os clássicos do liberalismo, que os mesmos rejeitaram, infalivelmente, o avanço da democracia, tido como intervenção violenta contra o pacto social.
Dos horrores do colonialismo e da escravidão, Losurdo passa ao século XX, onde demarca, na década de 20, os múltiplos apoios desfrutados por Mussolini, por ocasião de sua tomada do poder, entre direitistas de perfil tradicional, muitos deles liberais convictos.  Benedetto Croce (1866-1952), filósofo liberal e senador, chegou a saudar a ascensão do fascismo como uma volta ao liberalismo puro, contrário ao liberalismo democrático.  Ludwig von Mises (1881-1973), um dos maiores entusiastas do laissez-faire em todos os tempos, enxergou naquele movimento a salvação da civilização europeia, supostamente ameaçada pela ação dos sindicatos e pelas influências socialistas sobre o liberalismo.  Em 1927, Mises proclamaria categoricamente que “o mérito adquirido desta forma pelo fascismo viverá eternamente na história”. 
Observando de perto os regimes nazifascistas, Losurdo é impelido a olhar, de novo, para a América do Norte: torna-se inevitável o paralelo entre a Ku Klux Klan americana e os camisas pretas e marrons.  Os negros sulistas, vítimas preferenciais de um duríssimo sistema penitenciário, eram socialmente segregados de acordo com um ideal de pureza racial absoluta, pelo qual uma única gota de sangue não-branco excluía o indivíduo da comunidade branca.  Regra que, objetivamente, ultrapassava em radicalismo a definição de judeu adotada pelos nazistas.  O racismo institucionalizado nos Estados Unidos perdeu fôlego a partir dos anos 50, mas ainda assim, parcialmente, por razões de Estado: temia-se que a denúncia da discriminação racial favorecesse a difusão do comunismo e a descrença internacional na relação do país com a democracia.  Todavia, Losurdo não se detém na simples catalogação dos crimes e das contradições ideológicas dos liberais.  Comprometido com a ação política, ele chama à atividade “os que estão empenhados em superar as cláusulas de exclusão do liberalismo”.
Longa vida ao mestre!  Que continue se valendo, para nossa satisfação e desgosto dos elitistas, do conhecimento de muitas línguas e do acesso a textos “proibidos”; estes, para nós latino-americanos, quase tão inacessíveis quanto as “abomináveis ideias francesas” que as autoridades coloniais se empenhavam em manter do outro lado do oceano.  Que chegue à idade de Oscar Niemeyer com a energia de Manoel de Oliveira, o centenário cineasta português!   
              

quinta-feira, 22 de março de 2012

“Ditadura para salvar a democracia”: de volta a uma velha mistificação


“Nós, da UDN, nunca tiramos o pé do quartel. Atravessamos toda a luta com os pés no quartel, almoçando e jantando com generais, almirantes e brigadeiros. Esses oposicionistas bobocas de hoje, a primeira coisa que fazem é xingar os militares.  Não conhecem a realidade brasileira”.

José Bonifácio Lafayette de Andrada (1904-1986), ex-presidente da Câmara Federal (1968-1970) e ex-vice-presidente nacional da ARENA, em depoimento de 13 de março de 1980.

Ainda adolescente, na primeira metade dos anos 80, fui apresentado, por meio de diversos livros didáticos, além de notas de rodapé impressas nas agendas que se vendiam nas papelarias cariocas, a um discurso que poderia ser resumido numa frase: “Comemora-se, a 31 de março, a Revolução de 1964, que derrubou o governo do presidente João Goulart, cujas inclinações esquerdistas iam contra a índole democrática de nosso povo”.  Ninguém se espantaria com tal fato, durante a presidência de Figueiredo: mesmo exibindo muitos sinais de desgaste, o regime conservava o apoio de importantes forças políticas, as quais sustentavam a batalha pelas versões históricas que lhes convinham.
            Encerrado convencionalmente o período ditatorial com a eleição de Tancredo Neves, em janeiro de 1985, escassearam, na produção editorial brasileira, os textos que absolviam os participantes do golpe.   Afinal, se a cadeira presidencial era ocupada pelo antigo udenista e arenista José Sarney, o principal quinhão do poder na gestão que se iniciava cabia ao PMDB, herdeiro preferencial da agremiação que reunira, por mais de uma década, a oposição consentida à ditadura.  Não convinha mais à direita brasileira, exceto alguns núcleos extremamente reacionários, ter uma imagem associada à de generais, falecidos em sua maior parte, que haviam sido os responsáveis formais por “medidas de exceção”.
            Não faltam, na historiografia recente, obras que apontam para uma vaga empatia de seus autores diante dos protagonistas de 1964, apresentando a deposição de Goulart como resultante da ação de radicais de dois lados, igualmente descomprometidos com a democracia.  Todavia, salvo grave engano, nenhum historiador ou cientista político de alta ou mediana projeção se arrisca atualmente a redigir uma apologia ao golpe.  
O cenário é outro no mundo virtual. Em centenas ou milhares de blogs e comunidades das redes sociais, militantes de direita, enfurecidos pela vitória de uma ex-integrante da luta armada nas últimas eleições presidenciais, mas já bem ativos desde o primeiro triunfo de Lula, divulgam suas odes aos governos militares.  Não se limitam a reproduzir as cartilhas caducas que celebravam a derrocada da “subversão comunista”.  Vão adiante e enaltecem as cassações, as deportações, a censura, a tortura e os assassinatos.  Em panfletos mais simplórios, fala-se do período 1964-1985 como a época em que se perseguiu “vagabundos e terroristas” para proteger os homens de bem.  
Não me incomodaria tanto com o processo que descrevo se tudo partisse de viúvas da ditadura ou de conservadores septuagenários saudosos de um tempo em que, entre outras coisas, possuíam mais vigor físico.  Porém, preocupa e irrita ver numerosos jovens que não se lembram diretamente de nenhum acontecimento anterior à era FHC alimentando o mito de que foram salvos do totalitarismo pró-soviético por uma oportuna intervenção de natureza defensiva.
Nada do que direi deste parágrafo até o final terá originalidade.  Faço uso, na verdade, de vários manuais, alguns já com as folhas amareladas, para recuperar dados disponíveis em muitos lugares.  Não tenho a pretensão de converter a direita raivosa a uma visão de mundo progressista, mas apenas de fazer com que alguns de seus simpatizantes sejam confrontados com uma verdade: o espírito golpista dos grupos que promoveram e apoiaram 1964 era um elemento antigo, remontando pelo menos aos anos 40.  Muito antes do suicídio de Vargas, ou de Jango conseguir visibilidade nacional, liberais e conservadores autoritários já sonhavam com uma solução política que excluísse os trabalhadores ou seus eventuais representantes de qualquer interferência na direção do Estado. 
Recuando ao governo Dutra (1946-1950), durante o qual eclodiu a Guerra Fria, vemos o então tenente-coronel Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967), que estabelecera relações estreitas com oficiais americanos durante a Segunda Guerra Mundial, atuar como testemunha no processo em que, após votação no TSE, foi cassado o registro do PCB.  Pouco depois, em 1948, surgiu a Escola Superior de Guerra (ESG), instituição que desempenharia papel fundamental nas articulações entre golpistas civis e militares e inspiradora da ideologia da Segurança Nacional.  Apesar de alguns sucessos na política externa, como o apoio de Dutra às intervenções inglesas no Egito e na Grécia e o não-reconhecimento da China Popular, esta vertente da direita amargaria dois importantes reveses: a continuidade da campanha pelo monopólio nacional do petróleo e o fracasso na tentativa de colocar o general Canrobert Pereira da Costa (1895-1955) como candidato oficial à sucessão de Dutra[1].
Em 1950, a chapa nacionalista que se lançou à disputa pela presidência do Clube Militar, formada pelos generais Estillac Leal (1893-1955) e Horta Barbosa (1881-1965), bateu nas urnas o anticomunista militante Osvaldo Cordeiro de Farias (1901-1981), comandante da ESG.  Entretanto, a direita fardada teria sua revanche: a publicação, na revista do Clube Militar, do artigo de um major que atribuía aos Estados Unidos a culpa pela Guerra da Coreia e pregava a neutralidade brasileira no conflito foi sucedida por um manifesto de seiscentos oficiais contra a perspectiva “russófila” da revista.  Os desdobramentos deste incidente enfraqueceram Estillac Leal, que se demitiu do cargo de Ministro da Guerra em março de 1952 (já no segundo governo Vargas) e acabou derrotado, dois meses depois, quando concorreu à reeleição no Clube Militar[2]
Daquele momento em diante, as posições nacionalistas dentro das Forças Armadas foram suplantadas pela tendência ao alinhamento automático com os Estados Unidos, quando não vistas como traição. O Clube Militar era controlado pela Cruzada Democrática, à qual se ligavam Juarez Távora (1898-1975), Cordeiro de Farias e o brigadeiro Eduardo Gomes (1896-1981), sendo o último candidato pela UDN à presidência da República em 1950, quando foi superado por Vargas.  Este movimento direitista, composto também por figuras que se destacariam no regime ditatorial, como os coronéis Antônio Carlos Muricy e os tenentes-coronéis Sylvio Coelho da Frota (1910-1996) e Golbery do Couto e Silva (1911-1987), estimulou, em fevereiro de 1954, a apresentação do Manifesto dos Coronéis, peça reacionária que criticava a proposta do ministro do Trabalho, João Goulart, de dobrar o valor do salário mínimo[3].  As pressões sofridas por Goulart provocaram sua saída do ministério, mas Vargas, para ira dos conservadores, anunciou a efetivação do pretendido aumento em maio do mesmo ano.      
Consolidada a base militar que sustentaria o golpismo, não lhe faltava uma ampla correspondência nos meios civis, especialmente no partido que, entre 1946 e 1964, constituiu em regra a maior força de oposição ao governo federal: a UDN.  Já em 1951, udenistas inconformados com a derrota eleitoral de Eduardo Gomes se voltaram para os quartéis para obstar a posse de Getúlio Vargas[4].  Não atingindo seus objetivos, se valeram periodicamente da propriedade de vários jornais com tiragem expressiva para pregar a destituição do presidente.  O principal destes meios era a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda (1914-1977), na qual foi dito, em 5 de agosto de 1954, em plena crise que resultaria no suicídio de Vargas, que

“Sobretudo é preciso alijar Getúlio. Em primeiro lugar é preciso alijar Getúlio.  Erradicá-lo, extirpá-lo da vida nacional, como se faz, pela cirurgia, com as infecções e com os cancros[5].”

            Cinco dias depois, Otávio Mangabeira, figura de proa da UDN, estimulava abertamente uma “revolução”, a ser liderada por Eduardo Gomes.  Com toda a arrogância que caracteriza os políticos elitistas, ele se investiu no papel de porta-voz da opinião pública:

“A Nação está exausta de tanta humilhação e sofrimento.  Somente as Forças Armadas podem acudir o país.  Unamo-nos como um só homem a seu redor, pondo nelas toda a confiança, obedecendo ao seu comando, como se estivéssemos em guerra[6].”   

             Entre os militares afins, em reunião de 11 de agosto no Clube da Aeronáutica, dirigida pelo próprio Eduardo Gomes, o brigadeiro Franco Faria endossaria Mangabeira:

“O Executivo é proprietário do Brasil, o Legislativo fica de cócoras e o Judiciário se omite.  A situação atualmente imperante no Brasil se deve ao fato de que nós, generais, não temos sabido cumprir nosso dever.  Não podemos transigir com certas coisas.  É preciso que os generais cumpram o seu dever[7]”.          

O conhecido desfecho da crise adiou o projeto de tomada do poder por vias ilegais, mas não abalou a vocação autoritária da UDN. Durante a campanha presidencial de 1955, o partido centrou seus ataques nos políticos getulistas, em particular contra João Goulart, tentando impedir que ele fosse candidato a vice na chapa de Juscelino Kubitschek.  Para isto, além do habitual discurso anticomunista, apelou-se a um expediente criminoso: Lacerda divulgou uma carta forjada, de autoria atribuída ao deputado argentino Antonio Brandi, sugerindo a Jango um plano de coordenação sindical entre os dois países e a criação de brigadas operárias de choque, com intercâmbio de armas pela fronteira, em Uruguaiana.  Anos depois de ser atestada a falsidade da carta em inquérito militar, um ex-membro da Cruzada Brasileira Anticomunista, Joaquim Miguel Vieira Ferreira, se ufanaria de ter sido seu inspirador[8].  
Vitoriosa nas urnas a aliança PSD/PTB, os udenistas tentaram reverter o resultado institucionalmente, alegando que Juscelino não obtivera maioria absoluta, que houvera fraudes e que eram inválidos os votos dos comunistas. Porém, também recorreram a mais uma rodada de pregação golpista.  Carlos Lacerda, que exigia a anulação do pleito, escreveu em 9 de novembro de 1955 que “Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar posse, nem tomarão posse”.  No mês anterior, no enterro do general Canrobert, o coronel Jurandir Mamede definiu a iminente posse de Juscelino e Jango como “uma indisfarçável mentira democrática”, gerando uma crise militar: o general Lott, ministro da Guerra, quis puni-lo, sendo desautorizado por Carlos Luz, que ocupava interinamente a presidência devido ao enfarte sofrido por Café Filho, vice de Getúlio Vargas que assumira o cargo interinamente.  Finalmente, a 11 de novembro de 1955, tropas legalistas chefiadas por Lott assumiram o controle dos principais comandos militares do país, enquanto Luz e Lacerda se refugiavam no cruzador Tamandaré, esperando desembarcar em Santos numa conjuntura mais favorável, o que não ocorreu.  Estava assegurado o direito dos eleitos.  Cinicamente, em nota publicada quatro dias depois, a UDN negou ter envolvimento nas manobras contra a legalidade[9].  Nada disto impediu que o novo governo enfrentasse, em fevereiro de 1956 e dezembro de 1959 respectivamente, os levantes de Jacareacanga e Aragarças, por iniciativa de oficiais direitistas da Aeronáutica que mesmo se amotinando receberam anistia.
A turbulência política causada pela renúncia do sucessor de Juscelino, Jânio Quadros, em 1961, fez com que o udenismo, reforçado por outros conservadores, retomasse seus métodos usuais.  Os ministros da Marinha, Sílvio Heck, e da Aeronáutica, Grün Moss, ligados à UDN e íntimos de Carlos Lacerda, decidiram impedir a posse de João Goulart, que permanecia na vice-presidência, obtendo a concordância do ministro da Guerra, marechal Odílio Denys.  Ambos possuíam credenciais tenebrosas: Heck comandou, em 1955, o navio Tamandaré, que como vimos abrigou os elementos contrários à posse de Juscelino; Moss incentivou, no governo JK, os episódios de Jacareacanga e Aragarças[10].  Outra vez tiveram que recuar, pela ação do III Exército, sediado em Porto Alegre e comandado pelo general Machado Lopes (1900-1990).
Muito antes do anúncio das Reformas de Base por Jango, outros golpistas haviam se reunido, em 1959, no IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e, desde 1961, no IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), órgãos financiados por capitalistas nacionais e estrangeiros interessados em manter o status quo.  O ideólogo do IPES era Golbery, agora coronel.  A partir de 1962, IPES e IBAD intensificaram seu combate às propostas governamentais de viés reformista, associando-as ao comunismo.  A disposição para o golpe, nos textos, era mascarada com apelos retóricos à democracia[11].
A lista dos eventos que comprovam a inclinação autoritária de boa parte, senão da maioria dos direitistas brasileiros no período que analisamos seria muito longa.  Nela, estariam as providências adotadas durante a presidência de Jango por muitos empresários, fazendeiros e autoridades policiais, em vários estados, no sentido de estocar armas, munição e combustível para auxiliar os comandantes rebelados, na hipótese de que o golpe de 1964 desembocasse numa guerra civil.  Compor um dossiê completo, ou quase, iria muito além do razoável para uma matéria de blog.  Porém, temos mais do que o suficiente para demonstrar que a “defesa da democracia”, para os que construíram a ditadura, nada mais era do que a prevenção contra a entrada no jogo político de atores que julgavam indesejáveis.


[1] Ver Pedro Estevam da Rocha Pomar.  A democracia intolerante: Dutra, Adhemar e a repressão do Partido Comunista (1946-1950).  São Paulo: Arquivo do Estado; Imprensa Oficial do Estado, 2002, pp. 30/31.
[2] Cf. Boris Fausto.  História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1998, p. 408.
[3]Cf. Vivaldo Barbosa.  A Rebelião da Legalidade: documentos, pronunciamentos, noticiário, comentários.  Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, pp. 180/181.
[4] Ver Jorge Ferreira.  O carnaval da tristeza.  In: Vargas e a crise dos anos 50/org. Ângela de Castro Gomes.  Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 67.
[5] Idem, p. 66.
[6] Ibidem, p. 69.
[7] Ibidem, p. 69.
[8] Ver Luiz Alberto Moniz Bandeira.  O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964.  Rio de Janeiro: Revan; Brasília: UnB, 2001, p. 58.
[9] Cf. Maria Victoria de Mesquita Benevides.  A UDN e o udenismo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 96 a 99.
[10] Cf. Vivaldo Barbosa.  Op. cit, pp. 41/42.
[11] Ver Lincoln de Abreu Penna.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 253/254.

terça-feira, 20 de março de 2012

Música engajada no século XXI: Tiken Jah Fakoly


“Ils nous vendent des armes
Pendant que nous nous battons
Ils pillent nos richesses
Et se disent être surpris de voir l’Afrique toujours em guerre”
(Tiken Jah Fakoly.  Françafrique)

“Eles nos vendem armas
Enquanto nós lutamos
Eles pilham nossas riquezas
E dizem estar surpresos de ver a África sempre em guerra”

            O reggae nasceu como música de protesto, por excelência.  Podemos nos recordar, sobretudo se já passamos dos quarenta anos, das contundentes letras de Peter Tosh contra as armas nucleares e o apartheid, e da exigência de Jimmy Cliff, em ritmo dançante, de que tivesse fim a Guerra do Vietnã.  O místico Bob Marley não deixou de cantar pela emancipação do Zimbabwe.  No Brasil dos anos 80, Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone, adeptos do ska, ritmo que influenciou as origens do reggae, atestaram em muitos sucessos a perversidade de uma sociedade extremamente desigual. O gênero não escapou, certamente, da contaminação pelos tipos pós-modernos que trocaram a militância pela ostentação de carros de luxo, relógios de ouro, roupas de grife e mulheres com medidas perfeitas.
Entretanto, é fascinante perceber como o reggae pôde ser reinventado em sua feição mais reivindicatória e libertadora no continente africano.  Há uns cinco ou seis anos, eu me dedicava à tarefa nada acadêmica de preparar o churrasco numa festa de família, quando minha filha mais nova escolheu, como som ambiente, o repertório de uma novela global, ambientada no Maranhão, em que Reynaldo Gianecchini formava par romântico com Taís Araújo.  Entre a maioria de letras em inglês, uma ou outra em espanhol, chamou-me a atenção, a certa altura, o brado “Réveillez-vous!”.
Comecei, naquele momento, a gostar do excelente trabalho de Tiken Jah Fakoly.  A faixa em questão, Françafrique, tem como título uma expressão idiomática, que se refere aos países africanos que passaram pelas agruras do colonialismo francês.  O mote “La politique France Afrique, c’est du blaguer tuer, La politique Amerique Afrique c’est du blaguer et tuer” introduz a temática.  O verbo blaguer pode ser traduzido como “contar piada”, enquanto tuer significa matar.  Nada mais ilustrativo, nesta locução não sujeita à transcrição literal, dos resultados da presença dos governos ocidentais na África, em que proclamações humanitárias de respeito à vida e à autodeterminação dos povos se misturam à cumplicidade com regimes corruptos e genocidas associados ao tráfico de armas e diamantes. Uma política que, em sua expressão discursiva, não pode mesmo ser levada a sério por qualquer ente pensante, mas cujos efeitos materiais são miséria e morte.
Nascido Doumbia Moussa Fakoly, em 1968, na Costa do Marfim, o cantor, que trocou seu nome de sonoridade arábica por outro mais próximo do rastafarianismo, no qual Jah significa Deus, faz da crítica ao imperialismo e ao desequilíbrio nas relações Norte-Sul uma constante em sua obra.  Em Plus rien ne m’étonne, ele assume sarcasticamente o lugar de um virtual partícipe da divisão do mundo, em que a compreensão para com a apropriação indébita de recursos naturais é retribuída com apoio militar.  Em Africain à Paris, descreve, em formato de carta à mãe que permanece na terra natal, a realidade de muitos imigrantes africanos na Europa, na qual as possibilidades de guardar dinheiro e obter visto de permanência definitiva, ainda que reais, estão vinculados a habitação precária e trabalho pesado sem limite de jornada. Fakoly não se esquece, obviamente, dos esporádicos incêndios criminosos que ocorrem em hotéis onde se concentram os trabalhadores estrangeiros.
Confronto as letras de Tiken Jah Fakoly com o livro de Raphaël Granvaud, Que fait l’armée française em Afrique? (O que faz o exército francês na África?); Marseille: Agone, 2009.  Vejo em que medida a arte pode refletir o mundo real.  Granvaud demonstra, com clareza e riqueza de dados factuais, como o fim da Guerra Fria permitiu ao Estado francês adotar uma política externa neocolonial, frequentemente apelando de maneira hipócrita à bandeira da manutenção da paz, mas na verdade agindo no sentido de decidir o resultado de lutas pelo poder em favor de seus sócios.  O armamento fornecido pela ex-metrópole pode servir, por exemplo, para sufocar greves gerais com sangue, como na Guiné (2007), ou reprimir insurreições populares, como em Camarões (2008).  Antes disto, já tornara viável o genocídio de Ruanda (1994). Mesmo países que não foram colonizados pela França, Serra Leoa e Guiné Bissau, estiveram sujeitos ao intervencionismo francês.  A imensa lista de ações injustificáveis inclui o apoio às operações do aventureiro Bob Denard (1929-2007), líder de mercenários, nas Ilhas Comores.
Implacável com os colonialistas, Fakoly não se mostra condescendente diante de barbaridades cometidas por africanos.  Le pays va mal traz a denúncia das forças sectárias que estimulam a inimizade, na Costa do Marfim, entre naturais de diferentes regiões e praticantes de diferentes religiões.  A melancólica Non à l’excision é um hino contra a mutilação genital feminina, capaz de marejar os olhos de qualquer pessoa que compreenda um pouco o idioma francês. 
A alegria do reggae marfinense, por sua vez, se revela em Alpha Condé, inteiramente cantada em língua africana, exceto pelo grito “Libérez!” repetido várias vezes em seus instantes finais.  A música é uma homenagem ao atual presidente da República da Guiné, um antigo adversário de sucessivos governos ditatoriais e vencedor da primeira eleição multipartidária de seu país, em 2010.  Alpha Condé, chamado de baba (pai) por Fakoly, é colocado no mesmo panteão a que pertence Nelson Mandela.
Enquanto tivermos Tiken Jah Fakoly, a música engajada estará em ótimas mãos. Finalizemos com uma boa sugestão, na voz do próprio, para os franceses colocarem em prática nas eleições que se aproximam: Sarkozy, deixe o poder!