“Nós, da UDN, nunca tiramos o pé do quartel. Atravessamos toda a luta
com os pés no quartel, almoçando e jantando com generais, almirantes e
brigadeiros. Esses oposicionistas bobocas de hoje, a primeira coisa que fazem é
xingar os militares. Não conhecem a
realidade brasileira”.
José Bonifácio Lafayette de
Andrada (1904-1986), ex-presidente da Câmara Federal (1968-1970) e
ex-vice-presidente nacional da ARENA, em depoimento de 13 de março de 1980.
Ainda
adolescente, na primeira metade dos anos 80, fui apresentado, por meio de
diversos livros didáticos, além de notas de rodapé impressas nas agendas que se
vendiam nas papelarias cariocas, a um discurso que poderia ser resumido numa frase:
“Comemora-se, a 31 de março, a Revolução de 1964, que derrubou o governo do
presidente João Goulart, cujas inclinações esquerdistas iam contra a índole
democrática de nosso povo”. Ninguém se
espantaria com tal fato, durante a presidência de Figueiredo: mesmo exibindo
muitos sinais de desgaste, o regime conservava o apoio de importantes forças
políticas, as quais sustentavam a batalha pelas versões históricas que lhes
convinham.
Encerrado
convencionalmente o período ditatorial com a eleição de Tancredo Neves, em
janeiro de 1985, escassearam, na produção editorial brasileira, os textos que
absolviam os participantes do golpe.
Afinal, se a cadeira presidencial era ocupada pelo antigo udenista e
arenista José Sarney, o principal quinhão do poder na gestão que se iniciava
cabia ao PMDB, herdeiro preferencial da agremiação que reunira, por mais de uma
década, a oposição consentida à ditadura.
Não convinha mais à direita brasileira, exceto alguns núcleos
extremamente reacionários, ter uma imagem associada à de generais, falecidos em
sua maior parte, que haviam sido os responsáveis formais por “medidas de
exceção”.
Não
faltam, na historiografia recente, obras que apontam para uma vaga empatia de
seus autores diante dos protagonistas de 1964, apresentando a deposição de
Goulart como resultante da ação de radicais de dois lados, igualmente
descomprometidos com a democracia.
Todavia, salvo grave engano, nenhum historiador ou cientista político de
alta ou mediana projeção se arrisca atualmente a redigir uma apologia ao
golpe.
O cenário é
outro no mundo virtual. Em centenas ou milhares de blogs e comunidades das
redes sociais, militantes de direita, enfurecidos pela vitória de uma
ex-integrante da luta armada nas últimas eleições presidenciais, mas já bem
ativos desde o primeiro triunfo de Lula, divulgam suas odes aos governos
militares. Não se limitam a reproduzir
as cartilhas caducas que celebravam a derrocada da “subversão comunista”. Vão adiante e enaltecem as cassações, as
deportações, a censura, a tortura e os assassinatos. Em panfletos mais simplórios, fala-se do período 1964-1985 como a
época em que se perseguiu “vagabundos e terroristas” para proteger os homens de
bem.
Não me
incomodaria tanto com o processo que descrevo se tudo partisse de viúvas da
ditadura ou de conservadores septuagenários saudosos de um tempo em que, entre
outras coisas, possuíam mais vigor físico.
Porém, preocupa e irrita ver numerosos jovens que não se lembram
diretamente de nenhum acontecimento anterior à era FHC alimentando o mito de
que foram salvos do totalitarismo pró-soviético por uma oportuna intervenção de
natureza defensiva.
Nada do que
direi deste parágrafo até o final terá originalidade. Faço uso, na verdade, de vários manuais, alguns já com as folhas
amareladas, para recuperar dados disponíveis em muitos lugares. Não tenho a pretensão de converter a direita
raivosa a uma visão de mundo progressista, mas apenas de fazer com que alguns
de seus simpatizantes sejam confrontados com uma verdade: o espírito golpista dos
grupos que promoveram e apoiaram 1964 era um elemento antigo, remontando pelo
menos aos anos 40. Muito antes do
suicídio de Vargas, ou de Jango conseguir visibilidade nacional, liberais e
conservadores autoritários já sonhavam com uma solução política que excluísse
os trabalhadores ou seus eventuais representantes de qualquer interferência na
direção do Estado.
Recuando ao
governo Dutra (1946-1950), durante o qual eclodiu a Guerra Fria, vemos o então
tenente-coronel Humberto de Alencar Castelo Branco (1897-1967), que
estabelecera relações estreitas com oficiais americanos durante a Segunda
Guerra Mundial, atuar como testemunha no processo em que, após votação no TSE,
foi cassado o registro do PCB. Pouco
depois, em 1948, surgiu a Escola Superior de Guerra (ESG), instituição que
desempenharia papel fundamental nas articulações entre golpistas civis e
militares e inspiradora da ideologia da Segurança Nacional. Apesar de alguns sucessos na política
externa, como o apoio de Dutra às intervenções inglesas no Egito e na Grécia e
o não-reconhecimento da China Popular, esta vertente da direita amargaria dois
importantes reveses: a continuidade da campanha pelo monopólio nacional do
petróleo e o fracasso na tentativa de colocar o general Canrobert Pereira da Costa
(1895-1955) como candidato oficial à sucessão de Dutra[1].
Em 1950, a
chapa nacionalista que se lançou à disputa pela presidência do Clube Militar,
formada pelos generais Estillac Leal (1893-1955) e Horta Barbosa (1881-1965),
bateu nas urnas o anticomunista militante Osvaldo Cordeiro de Farias
(1901-1981), comandante da ESG.
Entretanto, a direita fardada teria sua revanche: a publicação, na
revista do Clube Militar, do artigo de um major que atribuía aos Estados Unidos
a culpa pela Guerra da Coreia e pregava a neutralidade brasileira no conflito
foi sucedida por um manifesto de seiscentos oficiais contra a perspectiva
“russófila” da revista. Os
desdobramentos deste incidente enfraqueceram Estillac Leal, que se demitiu do
cargo de Ministro da Guerra em março de 1952 (já no segundo governo Vargas) e
acabou derrotado, dois meses depois, quando concorreu à reeleição no Clube
Militar[2].
Daquele
momento em diante, as posições nacionalistas dentro das Forças Armadas foram
suplantadas pela tendência ao alinhamento automático com os Estados Unidos,
quando não vistas como traição. O Clube Militar era controlado pela Cruzada
Democrática, à qual se ligavam Juarez Távora (1898-1975), Cordeiro de Farias e
o brigadeiro Eduardo Gomes (1896-1981), sendo o último candidato pela UDN à
presidência da República em 1950, quando foi superado por Vargas. Este movimento direitista, composto também
por figuras que se destacariam no regime ditatorial, como os coronéis Antônio
Carlos Muricy e os tenentes-coronéis Sylvio Coelho da Frota (1910-1996) e
Golbery do Couto e Silva (1911-1987), estimulou, em fevereiro de 1954, a
apresentação do Manifesto dos Coronéis,
peça reacionária que criticava a proposta do ministro do Trabalho, João
Goulart, de dobrar o valor do salário mínimo[3]. As pressões sofridas por Goulart provocaram
sua saída do ministério, mas Vargas, para ira dos conservadores, anunciou a
efetivação do pretendido aumento em maio do mesmo ano.
Consolidada a
base militar que sustentaria o golpismo, não lhe faltava uma ampla
correspondência nos meios civis, especialmente no partido que, entre 1946 e
1964, constituiu em regra a maior força de oposição ao governo federal: a
UDN. Já em 1951, udenistas
inconformados com a derrota eleitoral de Eduardo Gomes se voltaram para os quartéis
para obstar a posse de Getúlio Vargas[4]. Não atingindo seus objetivos, se valeram
periodicamente da propriedade de vários jornais com tiragem expressiva para
pregar a destituição do presidente. O
principal destes meios era a Tribuna da
Imprensa, de Carlos Lacerda (1914-1977), na qual foi dito, em 5 de agosto
de 1954, em plena crise que resultaria no suicídio de Vargas, que
“Sobretudo é preciso alijar Getúlio. Em primeiro lugar é preciso alijar
Getúlio. Erradicá-lo, extirpá-lo da
vida nacional, como se faz, pela cirurgia, com as infecções e com os cancros[5].”
Cinco dias depois,
Otávio Mangabeira, figura de proa da UDN, estimulava abertamente uma
“revolução”, a ser liderada por Eduardo Gomes.
Com toda a arrogância que caracteriza os políticos elitistas, ele se
investiu no papel de porta-voz da opinião pública:
“A Nação está exausta de tanta humilhação e sofrimento. Somente as Forças Armadas podem acudir o
país. Unamo-nos como um só homem a seu
redor, pondo nelas toda a confiança, obedecendo ao seu comando, como se
estivéssemos em guerra[6].”
Entre os militares afins, em reunião de 11 de
agosto no Clube da Aeronáutica, dirigida pelo próprio Eduardo Gomes, o
brigadeiro Franco Faria endossaria Mangabeira:
“O Executivo é proprietário do Brasil, o Legislativo fica de cócoras e
o Judiciário se omite. A situação
atualmente imperante no Brasil se deve ao fato de que nós, generais, não temos
sabido cumprir nosso dever. Não podemos
transigir com certas coisas. É preciso
que os generais cumpram o seu dever[7]”.
O conhecido
desfecho da crise adiou o projeto de tomada do poder por vias ilegais, mas não
abalou a vocação autoritária da UDN. Durante a campanha presidencial de 1955, o
partido centrou seus ataques nos políticos getulistas, em particular contra
João Goulart, tentando impedir que ele fosse candidato a vice na chapa de
Juscelino Kubitschek. Para isto, além
do habitual discurso anticomunista, apelou-se a um expediente criminoso:
Lacerda divulgou uma carta forjada, de autoria atribuída ao deputado argentino
Antonio Brandi, sugerindo a Jango um plano de coordenação sindical entre os
dois países e a criação de brigadas operárias de choque, com intercâmbio de
armas pela fronteira, em Uruguaiana.
Anos depois de ser atestada a falsidade da carta em inquérito militar,
um ex-membro da Cruzada Brasileira Anticomunista, Joaquim Miguel Vieira
Ferreira, se ufanaria de ter sido seu inspirador[8].
Vitoriosa nas
urnas a aliança PSD/PTB, os udenistas tentaram reverter o resultado
institucionalmente, alegando que Juscelino não obtivera maioria absoluta, que
houvera fraudes e que eram inválidos os votos dos comunistas. Porém, também
recorreram a mais uma rodada de pregação golpista. Carlos Lacerda, que exigia a anulação do pleito, escreveu em 9 de
novembro de 1955 que “Esses homens não podem tomar posse, não devem tomar
posse, nem tomarão posse”. No mês
anterior, no enterro do general Canrobert, o coronel Jurandir Mamede definiu a
iminente posse de Juscelino e Jango como “uma indisfarçável mentira democrática”,
gerando uma crise militar: o general Lott, ministro da Guerra, quis puni-lo,
sendo desautorizado por Carlos Luz, que ocupava interinamente a presidência
devido ao enfarte sofrido por Café Filho, vice de Getúlio Vargas que assumira o
cargo interinamente. Finalmente, a 11
de novembro de 1955, tropas legalistas chefiadas por Lott assumiram o controle
dos principais comandos militares do país, enquanto Luz e Lacerda se refugiavam
no cruzador Tamandaré, esperando desembarcar em Santos numa conjuntura mais
favorável, o que não ocorreu. Estava
assegurado o direito dos eleitos.
Cinicamente, em nota publicada quatro dias depois, a UDN negou ter
envolvimento nas manobras contra a legalidade[9]. Nada disto impediu que o novo governo
enfrentasse, em fevereiro de 1956 e dezembro de 1959 respectivamente, os
levantes de Jacareacanga e Aragarças, por iniciativa de oficiais direitistas da
Aeronáutica que mesmo se amotinando receberam anistia.
A turbulência
política causada pela renúncia do sucessor de Juscelino, Jânio Quadros, em
1961, fez com que o udenismo, reforçado por outros conservadores, retomasse
seus métodos usuais. Os ministros da
Marinha, Sílvio Heck, e da Aeronáutica, Grün Moss, ligados à UDN e íntimos de
Carlos Lacerda, decidiram impedir a posse de João Goulart, que permanecia na
vice-presidência, obtendo a concordância do ministro da Guerra, marechal Odílio
Denys. Ambos possuíam credenciais
tenebrosas: Heck comandou, em 1955, o navio Tamandaré, que como vimos abrigou
os elementos contrários à posse de Juscelino; Moss incentivou, no governo JK,
os episódios de Jacareacanga e Aragarças[10]. Outra vez tiveram que recuar, pela ação do
III Exército, sediado em Porto Alegre e comandado pelo general Machado Lopes
(1900-1990).
Muito antes do
anúncio das Reformas de Base por Jango, outros golpistas haviam se reunido, em
1959, no IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e, desde 1961, no IPES
(Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), órgãos financiados por capitalistas
nacionais e estrangeiros interessados em manter o status quo. O ideólogo do IPES era Golbery, agora
coronel. A partir de 1962, IPES e IBAD
intensificaram seu combate às propostas governamentais de viés reformista,
associando-as ao comunismo. A
disposição para o golpe, nos textos, era mascarada com apelos retóricos à
democracia[11].
A lista dos
eventos que comprovam a inclinação autoritária de boa parte, senão da maioria
dos direitistas brasileiros no período que analisamos seria muito longa. Nela, estariam as providências adotadas
durante a presidência de Jango por muitos empresários, fazendeiros e
autoridades policiais, em vários estados, no sentido de estocar armas, munição
e combustível para auxiliar os comandantes rebelados, na hipótese de que o
golpe de 1964 desembocasse numa guerra civil.
Compor um dossiê completo, ou quase, iria muito além do razoável para
uma matéria de blog. Porém, temos mais
do que o suficiente para demonstrar que a “defesa da democracia”, para os que
construíram a ditadura, nada mais era do que a prevenção contra a entrada no
jogo político de atores que julgavam indesejáveis.
[1]
Ver Pedro Estevam da Rocha Pomar. A
democracia intolerante: Dutra, Adhemar e a repressão do Partido Comunista
(1946-1950). São Paulo: Arquivo do
Estado; Imprensa Oficial do Estado, 2002, pp. 30/31.
[2]
Cf. Boris Fausto. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1998,
p. 408.
[3]Cf.
Vivaldo Barbosa. A Rebelião da Legalidade: documentos, pronunciamentos,
noticiário, comentários. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2002, pp. 180/181.
[4]
Ver Jorge Ferreira. O carnaval da
tristeza. In: Vargas e a crise dos
anos 50/org. Ângela de Castro Gomes.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 67.
[5] Idem, p. 66.
[6] Ibidem, p.
69.
[7] Ibidem, p.
69.
[8]
Ver Luiz Alberto Moniz Bandeira. O
governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: UnB, 2001,
p. 58.
[9]
Cf. Maria Victoria de Mesquita Benevides.
A UDN e o udenismo. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1981, pp. 96 a 99.
[10] Cf. Vivaldo
Barbosa. Op. cit, pp. 41/42.
[11]
Ver Lincoln de Abreu Penna. República brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp.
253/254.
Ola Gustavo conheci o seu blog atraveis da comunidade Olavo de carvalho nos odeia,essa defensa ao golpe seja a ser cínica,recentemente perguntei a um neo-con quais as provas que ele tinha de que o governo Jango estava implantando uma ditadura comunistas ele me mostrou um trecho em que Jango defendia a reforma agraria agora defender a reforma agraria virou revolução comunista
ResponderExcluirDa uma olhada na caixa de comentários:http://lucianoayan.com/2012/04/04/os-chiliques-de-yuri-grecco-contra-os-herois-de-64-ou-estudando-um-macaco-esquerdista-de-laboratorio/