quarta-feira, 28 de março de 2012

Fábulas do Reino de Vassouras (I)



Entre todos os direitistas, os que mais me agastam são os partidários da monarquia.  Não consigo entender como uma pessoa de capacidade cognitiva normal pode aceitar que, com base no nebuloso “princípio da tradição”, uma família detenha com exclusividade a prerrogativa eterna de chefiar um Estado.  Porém, creio que é precisamente este o fator de sedução para aqueles que gostam: “se eu devo me inclinar perante Sua Majestade, cuja autoridade é legitimada pelo sangue, os que estão abaixo de mim no ‘edifício social’ também devem se inclinar, para Sua Majestade e para mim”.  Quem venera um rei ou imperador, posto no topo da sociedade, dispondo da faculdade de dissolver o parlamento eleito, está propenso a ver toda e qualquer hierarquia como parte de uma ordem natural. 
            Pesquiso, há cerca de doze anos, documentos do Império do Brasil. Embora minha opinião sobre aquele regime tenha se tornado cada vez mais ácida, não farei da crônica de hoje um maçante panfleto antimonárquico.  A expressão política do movimento monarquista é tão pífia que advertir o país sobre os perigos de um regresso pareceria obra de lunático.  Falo de monarquia somente porque esbarrei, em mais uma excursão imprudente pelo planeta virtual dos reacionários, com a série de vídeos publicizados no Youtube por Bertrand de Orléans e Bragança, festejado membro do Ramo Dinástico de Vassouras.  Nego-lhe propositalmente o tratamento de Dom. Natural de Mandelieu, na República Francesa, Bertrand certamente não recebeu distinções imperiais em sua certidão de nascimento.
            O blog deste bisneto da princesa Isabel traz dois links, na coluna “D. Bertrand responde no Youtube”, com pequenas filmagens realizadas durante uma entrevista concedida ao Canal do Boi em Sertãozinho (SP).  Fiquei tão impressionado com a quantidade de disparates, ditos em menos de quatro minutos, que dividirei o assunto em duas postagens.  A primeira peça foi intitulada “Dom Bertrand responde sobre quilombolas”.  Apresento o endereço para quem dispuser de estômago forte:                    


            A visão de mundo do entrevistado fica explícita logo na primeira frase:

“Nunca houve problema racial nesse país e nunca houve problema de quilombolas.”

            Imagino Bertrand entrando no túnel do tempo para um encontro com o lisboeta Francisco Alberto Teixeira de Aragão (1788-1847), intendente geral da polícia carioca entre 1824 e 1827.  Calculo que Aragão, tendo dedicado os principais anos de sua vida à contenção da população negra, escrava, liberta ou nascida livre, faltaria com a boa educação, mesmo diante de um integrante da Casa Imperial, caso a pérola chegasse aos seus ouvidos.  Com a petulância que me caracteriza, sugiro ao Bragança que adquira o livro A Sabinada, de Paulo César de Souza (Brasiliense, 1987) e leia as transcrições dos jornais dos rebeldes federalistas baianos.  Será necessário muito contorcionismo para desconsiderar as reivindicações de igualdade elaboradas pelos articulistas mulatos, entre os quais estava o próprio Francisco Sabino, um dos mentores intelectuais do movimento.  Difícil será também negar que, vinda a inevitável repressão, o tratamento dos condenados variou de acordo com a cor.  Supondo que Bertrand aprecie o começo da jornada, proponho que prossiga com O fiador dos brasileiros, de Keila Grinberg (Civilização Brasileira, 2002).  Saberá que Antônio Pereira Rebouças, pai do engenheiro André Rebouças, mesmo superando as barreiras que dificultavam a instrução dos pobres e ocupando posições de prestígio, inclusive cargos eletivos, não escapava de apelidos injuriosos como “moleque de rua” e “neto da rainha Ginga”.  Verá que a mera presença de Rebouças foi suficiente, certo dia, para tornar azedo um banquete de oligarcas.  Ainda voltando o olhar para a velha Bahia, Bertrand poderia constatar, talvez pelos trabalhos de João José Reis, o tom empregado pelos donos de terras do Recôncavo e comerciantes portugueses da capital quando se referiam à maioria negra que vivia ao seu redor, e que juízo fariam de uma hipotética integração.
Não direi mais nada sobre tensões étnicas.  O post se transformaria em longo ensaio, e na verdade ineficaz: para quem crê que sua família tem um trono a recuperar, acreditar em democracia racial é a coisa mais simples do mundo.  Tratemos, pois, dos quilombos.
Tomando como verdadeira a versão do Bragança, concluo que seu trisavô Pedro II, que comprovadamente se interessava pelos pormenores da administração pública, era constantemente bombardeado por notícias mentirosas, fabricadas pelos presidentes de província que ele mesmo nomeava.  Um dos cascateiros, lamentavelmente, seria meu próprio trisavô, tenente-coronel Francisco José Cardoso Júnior, que como presidente de Mato Grosso informou que a assembleia local tinha estipulado, em 1871, uma verba para o ataque a um quilombo situado a trinta léguas de Cuiabá:


            Como o “problema” era falso, sabe-se lá o que foi feito do dinheiro!!!  Outro ficcionista, Francisco Carlos de Araújo Brusque, que governava o Pará em 1862, citou uma coleção de falsos mocambos e ainda ousou relatar que ordenou a destruição de um destes locais imaginários:


            O conselheiro Paulino José Soares de Souza, depois feito Visconde do Uruguai, possivelmente foi um dos precursores da brincadeira de mau gosto, visto que no remoto ano de 1839 já inventava que os felizes cativos de uma fazenda da freguesia de Pati do Alferes, na província do Rio de Janeiro, haviam escapado para o mato na tentativa de se aquilombar:


            Que diríamos, então, do enredo de autoria do doutor João Antônio de Miranda? Não apenas existiram muitos foragidos da escravidão nas matas maranhenses do Codó, como ainda aliciaram outros e participaram de uma grande rebelião regional:             


            Já Francisco de Paula Rodrigues Alves, que anos mais tarde chegaria à presidência da República, estaria em completo delírio, quando escreveu, em pleno ano de 1888, que os escravos continuavam a fugir dos cafezais paulistas e, fato inacreditável, alguns deles ainda ameaçavam a vida de um barão:


            Não sabiam todos eles que a princesa Isabel “redimiria a raça”?    
Fica difícil compreender, sobretudo, como Pedro II, com auxiliares que o ludibriavam com tanta frequência e facilidade, se manteve durante quase cinquenta anos no trono.  Posso também ter feito uma péssima interpretação, desde o início.  Afinal, para quem escapava da plantation escravista não se colocava “o problema de quilombolas”.  Tornar-se quilombola era o princípio da solução.
            A argumentação que sucede as teses, se é que posso definir tal coisa de maneira tão sutil, cai no terreno do grotesco.  Os quilombolas, “inventados” por antropólogos, são manipulados para a desapropriação de terras, como se não tivessem seus próprios interesses.  O tema da miscigenação surge, possivelmente, como sugestão para desqualificar os negros das áreas rurais da atualidade enquanto descendentes de quilombolas.  Bertrand talvez pense que um quilombola, necessariamente, é alguém com DNA 100% subsaariano.  Preciso ser compreensivo: como ele estudou na Europa, talvez nunca tenha posto as mãos nos manuais escolares que nos contavam que os escravos fugitivos raptavam mulheres de todas as etnias, faziam alianças com tribos indígenas e acolhiam foragidos da Justiça em suas povoações.  A lamúria produzida na defesa dos fazendeiros que fornecem armas a funcionários sem porte legal foi um fecho à altura do resto.  Felizmente parou por ali, mas teremos sequência.                    

8 comentários:

  1. Sou descendente de quilombola com orgulho. rs

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  2. Não duvido que existam estórias "raptos de mulheres por escravos...alianças com indígenas"...etc.etc...Estórias saem aos montões...Sambas de enredo então, nem se fala. De uma coisa estou certo:nas escolas que frequentei, que meus amigos frequentaram, que minha filha frequentou, minha esposa, nunca apareceram(nem foram adotados) "manuais" do tipo.Normalmente esse tipo de estórias estapafúrdiAs são atiradas na mídia televisiva ordinária . Ontem, na TV Cultura, antes da apresentação de um filme sobre a Etiópia um convidado(apresentado como cineasta) verbalizava O QUE TINHA NA cabeça sobre Selassié, ditador sanguinário da Abssínia(Etiópia) durante longos anos. Parecia que ignorava isso. O que sabia era que a figura era uma espécie de inspirador do "movimento rastafari"...simpático e tal...Quanto aos fazendeiros, latifundiários,fato é que contam, "numa boa", com braço armado no movimento social da direita "união democrática...", e, ao que parece, não são investigados.Os seus representantes no congresso atuam como bando de malfeitores, tumultuando os trabalhos das casas, obstaculizando o avanço da democracia.Os direitos dos residentes em áreas de antigos quilombos;do usufruto das terras, assim como os indígenas e todos aqueles destituídos de um espaço para morar e trabalhar em nossa nação, devem ser garantidos. Nosso país conta com um sistema de ensino que deixa a desejar, é verdade, mas disponível para todos.A luta de todos os brasileiros é a de tornar democrático o acesso às universidades. Isso está em processo, com o esforço da melhora do ensino público e o ENEM. Jamais com privilégios. Com os argumentos de etnia utilizados por movimentos negros(ainda se pode usar essa palavra?) burgueses.Vale tudo para ingressar na universidade pública gratuita sem precisar "queimar a m oleira"?Nossa sociedade no Séc. XXI nada tem a ver com a escravização ocorrida no Brasil Império ou Colônia.As palavras de ordem "sociedade branca", "escravagista", vociferadas por esses burgueses "movimentos negros"são disparatados anacronismos.Não vivi nos tempos do mercantilismo. Não comprei um escravo negro de outro negro que o escravizou.Não aceito essa "regressão mediúnica".E se acharem que subsistem motivos para reparação que se a procure em outra jurisdição: na outra ponta do "rio chamado Atlântico".Lutemos todos por melhor educação, saúde,condições de trabalho, amor , lazer, enfim a mais ampla democracia para todos os que aqui vivem.E no mundo, claro.

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  3. Os quilombos tendiam a ser locais multiétnicos. Isto não é "estória". Para ficar só no exemplo de Palmares, um dos líderes palmarinos atendia como João Mulato. Também há versões, não totalmente comprovadas, é verdade, de que Zumbi viveu com uma mulher branca, da qual teve cinco filhos. Uma parte das instalações defensivas construídas no quilombo foi obra de um muçulmano não-negro do norte da África, que escapara de seus senhores portugueses. Não é preciso ser um perito em demografia para perceber que as comunidades quilombolas, se fossem habitadas somente pelos negros fugitivos, maciçamente homens, se extinguiriam rapidamente. Em suma, reforço o que disse antes: a expectativa que alguns têm de que quilombolas sejam "negros puros" é, em bom português, burrice.
    A questão das cotas desenvolverei bem mais longamente, e em outros posts. Não há como expor toda a argumentação necessária no espaço de comentários.

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  4. Não podemos fazer história, professor(e o senhor bem sabe) com base em mitos; com "versões não comprovadas". O avanço da democracia no Brasil, sobretudo após a Constituição de 1988 e das últimas três legislaturas e governos de Lula e Dilma,vem promovendo progressiva melhoria de vida dos b rasileiros, independentemente de etnia.A questão colocada no comentária diz respeito à escravidão. Não se trata de raça ali.Aí é que está: os movimentos étnicos, racistas, que pregam a desigualdade, antidemocráticos, encondem-se , sob a capa de "vitimizados" pela escravatura em pleno Séc.XXI.Vemos algo análogo na utilização do "holocausto pelo estado sionista, , judeonazista.Tanto no movimento negro socialista no Brasil(que repudia as cotas) como no povo judeu que nega a criação e ação do estado fascista há repúdio pela vitimação oportunista.

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  5. Não importa se os quilombos eram lugares habitados por pessoas de diferentes grupos étnicos, ainda sim é um absurdo querer expropriar propriedades privadas e até centros urbanos e dar aos afro-brasileiros de graça. Como se isso não fosse causar racismo, revolta, como se fosse a solução para os problemas do país... tenha dó.

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  6. "Não importa", obviamente, para quem está alheio à questão. Cada caso é um caso, mas comunidades implantadas há várias gerações devem ter seus direitos reconhecidos. O mais estranho de tudo é que os mesmos conservadores que defendem ferrenhamente o mito da democracia racial berram e esperneiam quando se trata de introduzir elementos culturais afrobrasileiros ou indígenas no ordenamento jurídico do país. Pensar que cidades serão removidas e substituídas por quilombos é dar ouvidos a uma propaganda histérica e mal intencionada. De resto, ninguém disse, nem poderia, que regularizar as comunidades quilombolas é o remédio para todos os problemas brasileiros. É o começo da solução, certamente, para os próprios quilombolas.

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  7. O "ordenamento jurídico" brasileiro não contempla o povo indígena com direito de propriedade sobre terras que habita ou habitou pelo fato de serem indígenas.É estéril defender pontos de vista quando o interlocutor já concluiu que está lidando com "conservadores" que "berram" e "esperneiam".Aqui não está alguém que adjetiva democracia("democracia racial"- procuramos não ser livresco, nem "maria-vai-com-as-outras).Ou com alguém que se imagina detentor de grande cabedal de conhecimento da história(passada).Estamos em processo, avaliamos consequências como o comentador que nos antecede acima. Precisamos transformar a sociedade ampliando a democracia e repudiando quaisquer intenções reacionários que proponham privilégios de cunho étnico.É grosseiro oportunismo que está gerando efeitos perversos.Em nosso tempo de menino de bairro da zona portuária do Rio de Janeiro, em nossa rua, em nossa comunidade, contávamos com um morador de rua.MDormia a noite embaixo de uma marquise. .Era o professor Garcia.Louco, em dias de maior tormento, em seus delírios perguntava repetidamente (a quem?):"Deus é preto ou é branco?"..."Deus é preto ou é branco?...Deus é..."A horda lhe respondia com infames sarcarmos.E o menino ficava deprimido.Precisamos de muitas ações afirmativas do Estado(sociedade política) mas não tem que ser com cotas para quem é jovem e saudável e títulos de propriedade. Defendamos o direito a moradia para todos,claro. Ás "comunidade implantadas" o direito de usufruto.

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  8. O comentário acima já começa pelo equívoco de se referir a uma questão que não faz parte do texto, a das terras indígenas. Mas incorporando a crítica, eu diria, com toda a convicção, que a homologação das terras indígenas nada tem de privilégio. Ao contrário, trata-se da justiça mais elementar, a não ser que o último "anônimo" enxergue meritocracia no extinto sistema de capitanias hereditárias, na antiga lei das sesmarias e na multissecular "tradição" da grilagem, as principais origens do tão decantado "direito natural à propriedade" em nosso país. Processos cujas maiores vítimas sempre foram os integrantes das classes e etnias de status mais baixo, nelas incluindo-se, é claro, os povos indígenas. De que adiantam direitos abstratos quando as forças que comandam a sociedade, na prática, negam os meios?
    Finalmente, assinalo o quanto é cansativo o discurso liberalóide (sim, é impossível fugir a certos rótulos) de que a etnia, cor ou "raça" dos indivíduos é algo sem importância, enquanto as relações sociais, no mundo real, são altamente racializadas. Vais oferecer, sr. anônimo, escolas e hospitais que funcionem direito, programas de qualificação no trabalho que gerem empregabilidade efetiva, planos de habitação viáveis e políticas de segurança que se estendam de fato além das áreas nobres a brancos, negros, índios, árabes e chineses? Em caso afirmativo, serei o primeiro a condenar os tais "privilégios étnicos".

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