quinta-feira, 8 de março de 2012

O Estado brasileiro e sua dívida crônica para com os negros (I)



            Uma certa literatura, autoproclamada antirracialista, vem recebendo nos últimos anos um constante impulso publicitário.  Desfrutando de espaços já consolidados na produção editorial brasileira, vários de seus representantes no ambiente acadêmico têm se dedicado, recentemente, à confecção de material didático para os ensinos Fundamental e Médio. Centrados em larga margem no combate às políticas de ação afirmativa, os autores ligados a esta corrente não se limitam a vulgarizar os questionamentos corriqueiramente levantados contra as cotas étnicas ou sociais no campo jurídico.
            Influenciados pelo pensamento liberal, apegam-se à ideia de que a igualdade formal, expressa unicamente na letra da lei, é o máximo de perfeição a que qualquer sociedade pode aspirar.  Nesta visão, toda proposta de reparação aos segmentos historicamente desfavorecidos constitui um privilégio, agravado ainda pelos ressentimentos que tais medidas provocariam entre os não beneficiados.
            Alguns dos mais ousados “antirracialistas”, em regra os menos letrados, chegam ao extremo de negar não somente a existência de hierarquias étnicas no Brasil, como também a validade dos protestos contra a secular opressão do Estado oligárquico contra  negros, índios e mestiços, com amplos reflexos em todos os campos da vida social; no propósito de sustentar tais discursos, muitas vezes invocam a autoridade intelectual de Gilberto Freyre (1900-1987) para resgatar o surrado mito da democracia racial, ignorando não só as obras criteriosas que desmentem a maioria das teses do sociólogo pernambucano, como igualmente os inúmeros exemplos oferecidos pelo próprio Freyre, em seus livros Casa-Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos, das desvantagens sociais suportadas pelos não-brancos desde o mais remoto passado colonial.
            Não apresentarei, neste artigo, as falas dos neofreyrianos e panfletários “antirracialistas” para demonstrar sua inconsistência.  Comprometo-me a fazê-lo em outras ocasiões.  Entretanto, devo lhes refrescar a memória com alguns dados incontestáveis: em primeiro lugar, o governo republicano instituído em 1889 se declarou, bem explicitamente, herdeiro das obrigações do Império; neste, por sua vez, a condição escrava imposta a milhões de “pretos”, “pardos” e “cabras” (ainda que claro de pele, olhos e cabelos um cativo jamais era registrado como branco) fez parte do ordenamento jurídico vigente entre os anos de 1822 e 1888.
            Muitos argumentos humanitários podem ser apontados para invocar reparações em favor dos descendentes de todos os escravos.  Os conservadores, por sua vez, poderão alegar que o cativeiro africano se manteve nos Estados Unidos até 1865 e em Cuba até 1886, estando o Império, portanto, dentro de um certo padrão moral; talvez mesmo recuperem, para justificar a abolição tardia, o mote senhorial, utilizado durante todo o período monárquico contra as mais diversas propostas emancipacionistas, de que sem o trabalho escravo a economia brasileira iria à falência.
            Permanecerei, entretanto, restrito à exposição de um único processo, que aponta para a inegável responsabilidade estatal sobre uma infinidade de crimes.  Pela Lei de 7 de novembro de 1831, decretada pela Assembleia Geral e sancionada pela Regência, ficou estabelecido que todo escravo introduzido no território brasileiro estaria livre, com exceção dos marinheiros cativos embarcados em navios de países em que a escravidão era legal.  Os importadores, além de sujeitos à “pena corporal”, pagariam multa por cabeça, relativa a cada um dos homens e mulheres escravizados irregularmente.  Deveriam ainda providenciar, às suas custas, o retorno das vítimas à África, que o governo faria “com a maior possível brevidade”.
            Estas determinações, como já diziam nossos livros de escola, foram sistematicamente descumpridas.  Recorrendo aos antigos relatórios do Ministério da Justiça, disponíveis no site da Universidade de Chicago, verificamos que a negligência e conivência dos agentes estatais foram a regra, favorecendo a atuação dos traficantes e os interesses dos compradores de “africanos novos”.

. No relatório de 1833, publicado em 1834, o ministro Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho (1800-1855) já admitia que, enquanto muitos acreditavam na impossibilidade de viver sem o trabalho escravo, as autoridades locais tendiam a facilitar os desembarques e as vendas, inclusive no interior do país.

.Manoel Alves Branco, sucessor de Aureliano Coutinho, deixou claro no relatório de 1834 que os juízes de paz (autoridades eleitas nas municipalidades) eram os maiores protetores do tráfico negreiro e que variados procedimentos jurídicos resultavam na soltura dos eventuais réus. 

.O relatório de 1835, do ministro Antônio Paulino Limpo de Abreu, expõe uma situação incontrolável: o tráfico era generalizado e faltavam meios para devolver os africanos a seu continente de origem.  Ao invés disto, eles se viam “distribuídos”, sendo obrigados a prestar serviços para garantir sustento precário numa terra estranha e hostil.

.Dez anos depois, José Joaquim Fernandes Torres ainda recorria ao artifício retórico da autoridade “iludida pela cobiça dos empreendedores”.  Os africanos, além do trabalho obrigatório nas “estações públicas”, eram enviados também a propriedades particulares, nas quais podemos imaginar que tipo de fiscalização havia!

            O tráfico ilegal, nas temporadas anteriores à sua proibição efetiva, decorrente da Lei Eusébio de Queirós, atingiu cifras superiores a 50 mil escravos por ano, o que nos autoriza a dizer que, entre 1831 e 1850, centenas de milhares de africanos entraram no Brasil em situação totalmente irregular até sob o parâmetro formal da ordem escravista.  Considerando os estudos que demonstram que, em meados do século, uma substancial maioria dos escravos ainda existentes no país nascera na África, e que a partir desta fase cresceram as preocupações senhoriais com sua sobrevivência e reprodução, é válido pensar que grande parte dos mais de 1,5 milhão de escravos recenseados em 1872 e uma quantidade dezenas de vezes maior dos negros brasileiros da contemporaneidade descendem em linha direta daquelas pessoas.  Africanos que ingressaram contra a vontade, e ao arrepio da lei, numa sociedade em que estavam sujeitos a todas as modalidades de discriminação, extensivas a seus filhos.
            As dificuldades existentes na identificação de quem são hoje os maiores prejudicados e de quais são as medidas mais efetivas para promover uma reparação efetiva, visando à construção de uma sociedade realmente igualitária e livre das discriminações “raciais”, não devem servir ao cinismo dos “antirracialistas” que postulam o nada fazer.       
 

3 comentários:

  1. O autor do texto refere livros de história, matéria da qual se ocupa;.É seu ofício.È também o de "refrescador de memórias"?Deixa a seu cargo essa providência.Diz o que leu nos livros mas não cita as fontes.Não somos letrados e sentimo-nos frustrados pelo fato de o autor não fazer essa mediação entre seus leitores e os historiadores mencionados.Perdem-se duas oportunidades, no mínimo: a do educador de ampliar sua área de atuação no sentido de divulgar fatos de nossa história e a dos seus leitores de ler os "manuais" que não foram adotados nas escolas que frequentaram.Não tivemos a sorte de ler esses livros(exceto GF).Uma pena.A historiografia brasileira(narrativa do que passou), sem dúvida,continuará sendo produzida para cumprir a sua função:ferramenta de fazer história, exemplificada na "praxis" do professor.Alguma das produções que não foram "manuais" na minha escolinha eu li.Por exemplo,Alberto da C.Silva( não temos certeza se tem formação de historiador)nos informa que negros africanos adquiridos emÁfrica já eram cativos de outros negros e, portanto, viviam em situação, no mínimo, análoga à de escravos. "A condição de escravo já era imposta" a pretos em África. Podemos perceber que a recontação da história que se tem feito é vasta e apressada.Por isso pedimos as fontes.Damos muita importância a quem está a contar a história porque está fazendo ou pretende fazer história...Cidadão brasileiro, pertencendo ao estado brasileiro, não posso, responsavelmente, aceitar que esse estado, pelos seus cidadãos, contribuites, vá assumir no século XXI o ônus de fatos iniciados por imperativos do mercantilismo.Nós cidadãos do estado brasileiro não podemos ser responsabilizados.Quem sabe em outra jurisdição; lá na ponta do escravagismo que ainda remanesce.Luso-brasileiro, vou agora à Roma exigir responsabilidades pelo assassinato do líder de nossa tribo, Viriato,nos Montes Hermíneos e pela escravização dos lusos.E nem é certo se Viriato existiu...

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  2. Aceito em parte o início da crítica. Embora em alguns posts eu tenha colocado referências completas, ou quase, em outras passei ao largo delas. Seguirei a sugestão de ser mais preciso, apesar de correr um risco oposto: o de me chamarem de academicista. Como o blog ainda está incipiente, ainda farei muitas modificações até chegar, talvez, a um formato ideal.
    Por outro lado, em nenhum momento afirmei que não havia escravidão na África ou que o negro é inevitavelmente vítima de tudo e de todos. Também não cabe dizer que um texto de blog é "apressado". Pelo contrário, já me disseram que estou "escrevendo demais". Mas, como quer profundidade, meu crítico acima pode ler, por exemplo, Paul Lovejoy, e entender o quanto a escravidão "tradicional" africana era diferente da escravidão "com motivo lucro" praticada nas Américas. Verá também como a presença ocidental incrementou o apresamento em muitas partes do continente. Compreenda bem: não digo que houve cativeiros melhores do que outros. Apenas ressalto o quanto é pobre o velho argumento de botequim de que "os pretos não podem reclamar porque eles mesmos se vendiam entre si".
    As questões sobre políticas de ação afirmativa devo desenvolver em novos posts. Não há como limitá-las a dois ou três parágrafos de comentário, a não ser que se caia na cilada de ficar gritando palavras de ordem.

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  3. Com apreço, sr. Gustavo Moreira, agradeço-lhe pela consideração.Insana, até, seria qualquer pretensão de polemizar aqui. Desculpe-me se não me fiz entender. Eu não acho nem um pouco que o senhor fez ou faz algo apressado.Referia-me à produção de literatura de conteúdo histórico de credibilidade duvidosa.Lamento a redução feita às argumentações que fiz do mercado escravagista no mercantilismo tomadas como "argumento de botequim".Analogamente poder-se-ia argumentar que reivindicações de "ações afirmativas" seriam macaqueações de colonizado ou retiradas de discussões na quadra da "escola" sobre tema de samba-de-enredo.Seus conceitos de ações afirmativas se embasam na interpretação da história,bem claro.No século XXI precisamos, o mundo do trabalho, da luta por aações afirmativas (e é este o conceito)faCE AO ESTADO para deter a agressão neoliberal que ceifa postos de trabalho e aumenta a taXA DE MAIS-VALIA(vide diminuição histórica da relação massa salarial-PIB desde 1997, por exempplo)apropriada celeremente pelo capital.Essa vitimização étnica, diversionista, se presta para ensaios acadêmicos , para dispersões na luta dos trabalhadores como um todo pela ampliação do espaço democrático e o combate à oligarquia deste país.Considero o seu blog um espaço qualificado de nível crítico formidável e de utilidade pública.

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