Tenho em mãos
nestes dias, por empréstimo, o livro Cotas
raciais na universidade: um debate (org. Carlos Alberto Steil. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2006), que agrega uma multiplicidade de argumentos, expostos
por acadêmicos de diversas disciplinas, contrários às políticas de ação
afirmativa. Os autores dialogam, em
proporções variadas de seus textos, com um artigo inicial, escrito por Marcos
Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, a respeito das controvérsias geradas pelo
processo de identificação étnica dos candidatos ao vestibular de 2004 da
Universidade de Brasília. Muitos dos
articulistas criticam (no que têm razão) o emprego da fotografia para definir
quais dos candidatos inscritos como negros o eram efetivamente, e o
estabelecimento de uma comissão com a mesma finalidade.
Apesar
da parcialidade bastante óbvia da obra, é necessário registrar que, para
simular espírito democrático, respeito à diversidade de opiniões, ou ambas as
coisas, seu organizador incluiu no debate duas vozes dissonantes. Elas se expressam nos artigos do antropólogo
Lívio Sansone, que se declara favorável à ação afirmativa “na base da
autodeclaração” [sic], e do sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, que
define as cotas como “a única política desenhada, desde o pós-guerra, pelas
universidades e faculdades públicas brasileiras para evitar que o ensino
superior seja monopolizado por uma elite que se define como branca”.
Não
me ocuparei neste post das considerações que podem ser opostas à exposição de
Maio e Santos. Minha atenção se voltou,
em especial, para o breve trabalho (quatro páginas) do geneticista Francisco
Mauro Salzano, professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Após revelar posicionamento
contrário ao sistema de cotas com base em sua interpretação pessoal da
Constituição de 1988 e na inevitável polêmica que envolve as alegações de
ancestralidade, o cientista prossegue com um parágrafo cujo tom é de desabafo. Salzano, ao se distanciar da área de
conhecimento em que adquiriu projeção, deixa emergir um pensamento que se
aproxima do discurso do homem conservador “médio”, não necessariamente
intelectualizado. Reproduzo aqui suas
palavras:
“A questão da ‘dívida histórica’ para com os afro-descendentes e
ameríndios não convence, e é postulada pelos mesmos grupos que preconizam o
calote com relação à dívida financeira externa do país com o Primeiro Mundo.
Por que eu, meus filhos ou netos irão pagar por um comportamento que não é
deles, característico de épocas em que este era considerado válido? É bom não
esquecer que o tráfico de escravos era desenvolvido com a intermediação direta
dos próprios africanos, que tinham o monopólio do apresamento de vítimas em
toda a África”.
A
premissa inicial, extremamente autoritária, é inconsistente. Afinal, a circunstância de Salzano não se
mostrar convencido, sem embasar sua fala em algo mais do que poucas linhas de
teor panfletário, não o autoriza a decretar, com validade universal, que a mencionada
dívida seja falaciosa. A mesma frase
comporta uma generalização ilógica, como se a reivindicação de igualdade de
oportunidades por parte de etnias historicamente desfavorecidas fosse um
problema necessariamente acoplado ao questionamento dos compromissos externos
do governo brasileiro, a ponto de ambos os movimentos terem os mesmos “advogados”! O articulista tenta, desta maneira, induzir o
leitor a uma associação do tipo cotas/esquerda radical e revanchista ou ação
afirmativa/rompimento com o Estado de Direito.
Começando
mal, Salzano continua ainda pior; se ele, seus filhos e netos (a quem
representam como grupo?) devem “pagar” (tolerar o acesso em larga escala de
afrodescendentes e ameríndios aos bancos universitários?), fica implícita a
visão racista de que os brancos saem ofendidos quando, ao recolherem seus
impostos, financiam os estudos de pessoas não-brancas. Involuntariamente, o autor passa recibo da
existência de significativas divisões étnicas na sociedade brasileira, fato que
tenta minimizar no mesmo artigo quando ressalta, com fundamento em pesquisas de
laboratório, que mais de 86% dos brasileiros possuem mais de 10% de
ancestralidade africana.
A
referência ao “comportamento de outra época”, por sua vez, parece sugerir que
as desigualdades de caráter étnico existentes no Brasil são explicáveis somente
pela experiência multissecular do escravismo, o que é um grave equívoco. A mera leitura da legislação imigratória da
Primeira República e do Estado Novo já nos prova o contrário, bem como as
publicações nas revistas médicas e nos anais de congressos científicos de estudos
estatístico-biológicos que apresentavam com otimismo a possibilidade futura de
desaparecimento do elemento negro da população brasileira. As restrições impostas à entrada de
não-europeus foram um dos aspectos mais evidentes da política do branqueamento,
que visando ao predomínio integral do fenótipo europeu entre os brasileiros,
implicava em contrapartida na estigmatização daqueles que se afastavam do
padrão desejado. Salzano pode afirmar com
boa dose de certeza que os patrocinadores e elaboradores destas leis e
previsões racistas já morreram.
Entretanto, muitos dos prejudicados ainda estão vivos, e os prejuízos
sócio-econômicos sofridos foram transmissíveis à sua descendência. Não é difícil encontrar nas ruas alguns dos
milhões de brasileiros de meia idade, ou até mais novos, que foram
discriminados no que se refere à oferta de vagas nos bancos escolares, e todas
as estatísticas disponíveis demonstram que os negros predominam vastamente
entre eles.
O
último trecho contém uma inaceitável imprecisão histórica: o geneticista
ignora, ou finge ignorar, que os europeus, sobretudo na fase inicial do tráfico
atlântico, empreenderam expedições de apresamento direto contra povos
africanos; além disto, o “comércio de almas”, em boa parte da África, era
promovido por árabes, o que reduz o citado monopólio africano à categoria de completo
absurdo.
Ainda que fosse verdadeira, a hipótese de que milhões
de negros foram trazidos como escravos para o Brasil somente porque outros
negros os venderam na costa africana não resultaria, por extensão, na conclusão
de que os escravizados e seus descendentes não teriam do que reclamar. A não ser que se adote a perspectiva da
culpabilidade da raça, que os “antirracialistas” tentam imputar, demagogicamente
(como ataque aos brancos) aos defensores da ação afirmativa.
Excelente contraponto para quem ainda tenta ignorar diferenças históricas dos negros ao ensino superior até hoje, que não aceitam igualdade de direitos entre brancos e negros, mais de cem anos após a abolição da escravidão.
ResponderExcluirUm conservadorismo que mal se sustenta em argumentos lógicos, apenas para manter o status quo e não contribui em nada para que avancemos como civilização.