sexta-feira, 9 de março de 2012

Considerações sobre uma visão conservadora da ação afirmativa


Tenho em mãos nestes dias, por empréstimo, o livro Cotas raciais na universidade: um debate (org. Carlos Alberto Steil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006), que agrega uma multiplicidade de argumentos, expostos por acadêmicos de diversas disciplinas, contrários às políticas de ação afirmativa.  Os autores dialogam, em proporções variadas de seus textos, com um artigo inicial, escrito por Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos, a respeito das controvérsias geradas pelo processo de identificação étnica dos candidatos ao vestibular de 2004 da Universidade de Brasília.  Muitos dos articulistas criticam (no que têm razão) o emprego da fotografia para definir quais dos candidatos inscritos como negros o eram efetivamente, e o estabelecimento de uma comissão com a mesma finalidade.
            Apesar da parcialidade bastante óbvia da obra, é necessário registrar que, para simular espírito democrático, respeito à diversidade de opiniões, ou ambas as coisas, seu organizador incluiu no debate duas vozes dissonantes.  Elas se expressam nos artigos do antropólogo Lívio Sansone, que se declara favorável à ação afirmativa “na base da autodeclaração” [sic], e do sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, que define as cotas como “a única política desenhada, desde o pós-guerra, pelas universidades e faculdades públicas brasileiras para evitar que o ensino superior seja monopolizado por uma elite que se define como branca”. 
            Não me ocuparei neste post das considerações que podem ser opostas à exposição de Maio e Santos.  Minha atenção se voltou, em especial, para o breve trabalho (quatro páginas) do geneticista Francisco Mauro Salzano, professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  Após revelar posicionamento contrário ao sistema de cotas com base em sua interpretação pessoal da Constituição de 1988 e na inevitável polêmica que envolve as alegações de ancestralidade, o cientista prossegue com um parágrafo cujo tom é de desabafo.  Salzano, ao se distanciar da área de conhecimento em que adquiriu projeção, deixa emergir um pensamento que se aproxima do discurso do homem conservador “médio”, não necessariamente intelectualizado.  Reproduzo aqui suas palavras:           

“A questão da ‘dívida histórica’ para com os afro-descendentes e ameríndios não convence, e é postulada pelos mesmos grupos que preconizam o calote com relação à dívida financeira externa do país com o Primeiro Mundo. Por que eu, meus filhos ou netos irão pagar por um comportamento que não é deles, característico de épocas em que este era considerado válido? É bom não esquecer que o tráfico de escravos era desenvolvido com a intermediação direta dos próprios africanos, que tinham o monopólio do apresamento de vítimas em toda a África”. 

            A premissa inicial, extremamente autoritária, é inconsistente.  Afinal, a circunstância de Salzano não se mostrar convencido, sem embasar sua fala em algo mais do que poucas linhas de teor panfletário, não o autoriza a decretar, com validade universal, que a mencionada dívida seja falaciosa.  A mesma frase comporta uma generalização ilógica, como se a reivindicação de igualdade de oportunidades por parte de etnias historicamente desfavorecidas fosse um problema necessariamente acoplado ao questionamento dos compromissos externos do governo brasileiro, a ponto de ambos os movimentos terem os mesmos “advogados”!  O articulista tenta, desta maneira, induzir o leitor a uma associação do tipo cotas/esquerda radical e revanchista ou ação afirmativa/rompimento com o Estado de Direito.      
            Começando mal, Salzano continua ainda pior; se ele, seus filhos e netos (a quem representam como grupo?) devem “pagar” (tolerar o acesso em larga escala de afrodescendentes e ameríndios aos bancos universitários?), fica implícita a visão racista de que os brancos saem ofendidos quando, ao recolherem seus impostos, financiam os estudos de pessoas não-brancas.  Involuntariamente, o autor passa recibo da existência de significativas divisões étnicas na sociedade brasileira, fato que tenta minimizar no mesmo artigo quando ressalta, com fundamento em pesquisas de laboratório, que mais de 86% dos brasileiros possuem mais de 10% de ancestralidade africana.  
            A referência ao “comportamento de outra época”, por sua vez, parece sugerir que as desigualdades de caráter étnico existentes no Brasil são explicáveis somente pela experiência multissecular do escravismo, o que é um grave equívoco.  A mera leitura da legislação imigratória da Primeira República e do Estado Novo já nos prova o contrário, bem como as publicações nas revistas médicas e nos anais de congressos científicos de estudos estatístico-biológicos que apresentavam com otimismo a possibilidade futura de desaparecimento do elemento negro da população brasileira.  As restrições impostas à entrada de não-europeus foram um dos aspectos mais evidentes da política do branqueamento, que visando ao predomínio integral do fenótipo europeu entre os brasileiros, implicava em contrapartida na estigmatização daqueles que se afastavam do padrão desejado.  Salzano pode afirmar com boa dose de certeza que os patrocinadores e elaboradores destas leis e previsões racistas já morreram.  Entretanto, muitos dos prejudicados ainda estão vivos, e os prejuízos sócio-econômicos sofridos foram transmissíveis à sua descendência.  Não é difícil encontrar nas ruas alguns dos milhões de brasileiros de meia idade, ou até mais novos, que foram discriminados no que se refere à oferta de vagas nos bancos escolares, e todas as estatísticas disponíveis demonstram que os negros predominam vastamente entre eles.
            O último trecho contém uma inaceitável imprecisão histórica: o geneticista ignora, ou finge ignorar, que os europeus, sobretudo na fase inicial do tráfico atlântico, empreenderam expedições de apresamento direto contra povos africanos; além disto, o “comércio de almas”, em boa parte da África, era promovido por árabes, o que reduz o citado monopólio africano à categoria de completo absurdo.
              Ainda que fosse verdadeira, a hipótese de que milhões de negros foram trazidos como escravos para o Brasil somente porque outros negros os venderam na costa africana não resultaria, por extensão, na conclusão de que os escravizados e seus descendentes não teriam do que reclamar.  A não ser que se adote a perspectiva da culpabilidade da raça, que os “antirracialistas” tentam imputar, demagogicamente (como ataque aos brancos) aos defensores da ação afirmativa.          

Um comentário:

  1. Excelente contraponto para quem ainda tenta ignorar diferenças históricas dos negros ao ensino superior até hoje, que não aceitam igualdade de direitos entre brancos e negros, mais de cem anos após a abolição da escravidão.
    Um conservadorismo que mal se sustenta em argumentos lógicos, apenas para manter o status quo e não contribui em nada para que avancemos como civilização.

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