“Em geral, a sua boca era demasiadamente grande, a expressão da sua
figura era ignóbil e malvada [...]. A sua fisionomia manifestava aquela
profunda depravação que pode derivar só de um prolongado abuso da civilização,
e não obstante continuavam selvagens.
Aos vícios que haviam assimilado de nós mesclava-se algo de bárbaro e de
incivil, que os tornava cem vezes mais repugnantes [...]. Os seus movimentos eram rápidos e
desordenados, a sua voz aguda e desafinada, os seus olhares inquietos e
selvagens. No primeiro contato seríamos
tentados a ver em cada um deles apenas um bicho das florestas ao qual a
educação poderia ter conferido alguma aparência de humanidade, e no entanto
permanecera um animal”.
O
discurso etnocêntrico que abre esta postagem foi escrito há mais de um século e
meio e seu alvo é a população indígena dos Estados Unidos. Nada contém de espantoso, se recordarmos que
milhões de americanos, na época, viam a propriedade de escravos como um direito
sagrado, em defesa do qual pegariam em armas, e julgavam que os seres de
cabelos pretos, pele acobreada e olhos oblíquos que ainda se espalhavam por
milhões de quilômetros quadrados entre o Mississipi e o Pacífico constituíam um
estorvo a ser removido com a maior brevidade possível. Entretanto, o texto não é de autoria de um
missionário enraivecido com o chefe sioux que preferira o uísque falsificado ao
seu proselitismo. Tampouco de um caubói
que tentava se justificar pelo assassinato de uma dúzia de apaches em troca de
uma recompensa de cem dólares.
São
palavras do respeitadíssimo Alexis de Tocqueville (1805-1859), um dos mais
celebrados teóricos da matriz política liberal. Não proporei nesta crônica o linchamento moral de Tocqueville,
que, é preciso lembrar, também se mostrou chocado diante do genocídio praticado
por seus anfitriões na América do Norte, apesar da resignação com a
inevitabilidade do processo, que podemos atestar em outra passagem:
“Parece que a Providência, colocando essas populações entre as riquezas
do Novo Mundo, tenha dado a elas só um breve usufruto; de alguma forma, elas
estavam lá só ‘à espera’. Aqueles litorais tão favoráveis ao comércio e à
indústria, aqueles rios tão profundos, aquele inesgotável vale do Mississipi,
aquele continente inteiro apresentavam-se então como o berço vazio de uma
grande nação”.
O
que desejo destacar, de início, é que não encontrei estas citações no site do
Instituto Ludwig Von Mises, na coleção Os
Pensadores ou em qualquer comunidade do Orkut dedicada ao culto à
personalidade de Tocqueville. Cheguei
até elas, e a muitas outras notas indefensáveis, da lavra de numerosos
“campeões da liberdade” e varridas para o mundo subterrâneo por seus
admiradores, senão desconhecidas até destes mesmos, através de um mestre:
Domenico Losurdo.
Nascido
no ano de 1941 em Sannicandro di Bari, na região da Puglia, sul da Itália,
Losurdo, professor de Filosofia da História na Universidade de Urbino, é um dos
intelectuais mais fecundos do continente europeu. Fiel ao pensamento marxista e às correntes políticas que se
mantêm realmente à esquerda, rejeita visceralmente o compromisso com a visão
conformista de que, no mundo pós-Guerra Fria, quase nada há a fazer além de
reconhecer o triunfo do laissez-faire e do modelo político liberal.
Losurdo
se alinha entre os poucos filósofos contemporâneos de relevo que não somente
prosseguem na luta contra a exploração do homem pelo homem, como também
denunciam as hierarquias de gênero, etnia e origem religiosa e/ou regional que
caracterizam as sociedades inspiradas no liberalismo ao longo de séculos de
existência. Boa parte de sua vasta produção
já foi publicada em português. Em Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje (Rio
de Janeiro: Revan, 2004), o autor faz um corajoso inventário das conquistas
sociais e tecnológicas alcançadas pelos socialistas no século XX, sem deixar de
empregar munição pesada contra a direita, como no trecho em que demonstra
quanto o supostamente pacífico Dalai Lama pode ser íntimo de mercenários do
Sudeste Asiático colecionadores de orelhas de comunistas. Em
Democracia ou Bonapartismo (Rio de Janeiro: UFRJ, 2004), ele reconstrói a
crônica da longa resistência das forças liberais à implantação do sufrágio
universal, para depois constatar o quanto este mecanismo democrático, nas
sociedades capitalistas da atualidade, se mostra esvaziado em seu conteúdo
essencial, incapaz de expressar uma representação popular autêntica.
Mas,
de todos os livros de Domenico Losurdo, meu preferido e primeiro a ocupar lugar
em minha estante é Contra-História do
Liberalismo (Aparecida do Norte: Idéias & Letras, 2006). Através de uma vasta pesquisa histórica,
seguida de penetrante análise, Losurdo elabora uma gênese dos mecanismos de
exclusão nas sociedades liberais, relacionando seus fundamentos ideológicos às
ações discriminatórias correspondentes. Percorrendo questões como a prolongada
sobrevivência da escravidão na América do Norte, o não-reconhecimento dos
direitos dos índios, a opressão da Inglaterra sobre os irlandeses católicos e
das metrópoles europeias sobre os súditos das colônias, o filósofo prova com
clareza que as garantias típicas do sistema liberal só se aplicam, em sua total
extensão, aos que são reconhecidos como parte da “comunidade dos livres”.
Tanto na
América quanto na Europa, as classes proprietárias autodefinidas enquanto
liberais tenderam a se ver como uma aristocracia natural, uma espécie de raça
eleita, formada por homens portadores do “sangue da liberdade”. No caso anglo-saxão, este orgulho de classe
logo se fez acompanhar por uma perspectiva racista. O letrado Benjamin Franklin (1706-1790) enalteceu os “ingleses
situados nos dois lados do Atlântico” como o povo mais puramente branco do
mundo, que por esta mesma razão seria o mais apto a viver em liberdade. John Stuart Mill (1806-1873), para quem a
Índia necessitava de uma direção despótica, não tinha melhor conceito sobre os
países do sul da Europa, em sua opinião habitados por gente indolente e
invejosa, cuja natureza era incompatível com a economia industrial.
Investigando acerca da genealogia destas ideias, Losurdo chega à Inglaterra de
John Locke, segundo o qual havia três categorias de homens: os escravos
propriamente ditos, negros provenientes da África, os livres e os servos
brancos. Os últimos, embora fossem
consanguíneos dos livres, deveriam ficar sujeitos à disciplina imposta pelos
amos às suas famílias.
Iconoclasta
implacável, Domenico Losurdo revela aos leigos que Thomas Jefferson
(1743-1826), um dos Pais da Pátria norte-americana, foi decidido adversário da
independência do Haiti, por temer que o exemplo dos escravos emancipados por
conta própria contagiasse os negros do sul dos Estados Unidos. Que Thomas Macaulay (1800-1859), notável
poeta, historiador e político inglês, negou em seus escritos o direito dos
judeus de tomar assento entre os parlamentares do reino. Que Tocqueville, desta
vez sem atenuantes, apoiou irrestritamente o colonialismo francês na Argélia,
rejeitando a priori qualquer relação de igualdade entre europeus na África e
“súditos muçulmanos”. Que Benjamin Disraeli (1804-1881), primeiro-ministro britânico
célebre pelas diretrizes expansionistas, via a igualdade entre os homens como
uma “doutrina perniciosa”, opondo a ela a superioridade das “puras raças
caucásicas”. Losurdo conclui, ao julgar
no conjunto os clássicos do liberalismo, que os mesmos rejeitaram,
infalivelmente, o avanço da democracia, tido como intervenção violenta contra o
pacto social.
Dos horrores
do colonialismo e da escravidão, Losurdo passa ao século XX, onde demarca, na
década de 20, os múltiplos apoios desfrutados por Mussolini, por ocasião de sua
tomada do poder, entre direitistas de perfil tradicional, muitos deles liberais
convictos. Benedetto Croce (1866-1952),
filósofo liberal e senador, chegou a saudar a ascensão do fascismo como uma volta
ao liberalismo puro, contrário ao liberalismo democrático. Ludwig von Mises (1881-1973), um dos maiores
entusiastas do laissez-faire em todos os tempos, enxergou naquele movimento a
salvação da civilização europeia, supostamente ameaçada pela ação dos
sindicatos e pelas influências socialistas sobre o liberalismo. Em 1927, Mises proclamaria categoricamente
que “o mérito adquirido desta forma pelo fascismo viverá eternamente na
história”.
Observando de
perto os regimes nazifascistas, Losurdo é impelido a olhar, de novo, para a
América do Norte: torna-se inevitável o paralelo entre a Ku Klux Klan americana
e os camisas pretas e marrons. Os
negros sulistas, vítimas preferenciais de um duríssimo sistema penitenciário,
eram socialmente segregados de acordo com um ideal de pureza racial absoluta,
pelo qual uma única gota de sangue não-branco excluía o indivíduo da comunidade
branca. Regra que, objetivamente,
ultrapassava em radicalismo a definição de judeu adotada pelos nazistas. O racismo institucionalizado nos Estados
Unidos perdeu fôlego a partir dos anos 50, mas ainda assim, parcialmente, por
razões de Estado: temia-se que a denúncia da discriminação racial favorecesse a
difusão do comunismo e a descrença internacional na relação do país com a
democracia. Todavia, Losurdo não se
detém na simples catalogação dos crimes e das contradições ideológicas dos
liberais. Comprometido com a ação
política, ele chama à atividade “os que estão empenhados em superar as
cláusulas de exclusão do liberalismo”.
Longa vida ao
mestre! Que continue se valendo, para
nossa satisfação e desgosto dos elitistas, do conhecimento de muitas línguas e
do acesso a textos “proibidos”; estes, para nós latino-americanos, quase tão
inacessíveis quanto as “abomináveis ideias francesas” que as autoridades
coloniais se empenhavam em manter do outro lado do oceano. Que chegue à idade de Oscar Niemeyer com a
energia de Manoel de Oliveira, o centenário cineasta português!
Faz mais posts sobre o Losurdo, Professor! Vou insistir até que você faça! HAHAHAHA
ResponderExcluirAbraços!