Navegando despretensiosamente pela
Internet, antes do almoço, cheguei a um pequeno artigo assinado pelo agrônomo
Xico Graziano, ex-deputado federal pelo PSDB e ex-chefe de gabinete do governo
Fernando Henrique Cardoso. O texto, que
foi publicado pelo jornal O Estado de São Paulo na edição de 19 de abril
de 2011, estava disponível neste link:
Fui obrigado a
especular, de imediato, sobre os motivos que levam um periódico tradicional, com
público leitor consolidado, a dar destaque a uma exposição de tão baixa
qualidade. Graziano cita como fator de
“atraso” dos índios brasileiros o desconhecimento, por parte destes, de
espécies animais e vegetais que simplesmente não existiam nas regiões que
habitavam. Instala o núcleo da colonização espanhola na América Central, quando
provavelmente deseja fazer alusão aos massacres cometidos pelos europeus
durante a conquista dos impérios Asteca (América do Norte) e Inca (região
andina da América do Sul). Rotula as
populações ameríndias brasileiras da contemporaneidade como “remanescentes”,
mesmo sabendo que há várias décadas o crescimento demográfico das mesmas supera
o da população brasileira como um todo.
Resvalando para o puro humor involuntário, menciona Leandro Narloch
enquanto referência intelectual.
Não farei o leitor perder tempo com uma desconstrução
total da visão histórico-antropológica de Xico Graziano, que parece entender
tanto de Ciências Humanas quando eu a respeito da soldagem de chapas de
alumínio. O que me inquieta, de fato, é
visualizar, em um órgão formador de opinião, uma afirmativa tão absurda quanto
esta:
Distintamente da colonização
espanhola na América Central, os portugueses aqui não atuaram para dizimá-los.
Longe do confronto, os índios mantiveram espírito colaborativo com os
colonizadores.
Deixemos de lado a colonização da América Espanhola, que
certamente não foi estudada pelo articulista em seu curso de Agronomia,
assinalando somente que atribuir a um determinado tipo de colonizador uma
postura de extermínio sistemático dos povos colonizados, à qual seus vizinhos
mais próximos seriam imunes, é de um primarismo assustador para alguém com o
currículo de Graziano. O pior efeito
deste tipo de colocação é o reforço dado aos falaciosos discursos ancestrais
que enalteciam uma colonização supostamente branda, paternal, na qual até os
escravos eram bem tratados, tendo como resultado a união de três raças em tudo
diferentes para formar um povo pacífico e ordeiro.
Caso se dedicasse ao hábito
salutar de estudar História, Xico Graziano poderia saber, por exemplo, que o
terceiro governador geral da América Portuguesa, Mem de Sá, promoveu guerra
brutal contra os tupinambás da capitania da Bahia, que, embora tivessem feito
um pacto com Tomé de Sousa, mais tarde romperam com os lusos. Subjugados os tupinambás, Mem de Sá
utilizou-os como massa de manobra contra os tupiniquins de Ilhéus, promovendo
uma grande carnificina. Segundo o
relato mais comedido, de Gabriel Soares de Sousa, trinta aldeias foram
queimadas, distribuindo-se os sobreviventes entre os que fugiram para o sertão
e os que se submeteram a viver em aldeamentos jesuíticos. Na versão do frei
Vicente de Salvador, as povoações destruídas foram setenta[1]. O mesmo Mem de Sá, ao ser informado de que
os caetés haviam devorado o bispo Fernandes Sardinha, autorizou uma “guerra
justa”. Os colonos, então, caíram sobre
missões habitadas por doze mil índios. Apenas
mil continuavam vivos quando a ordem foi revogada[2]. Dividida provisoriamente a colônia em 1572,
seus dois governadores traçariam na cidade de Salvador, em fins do ano
seguinte, estratégias de combate aos “índios rebeldes”. O administrador do Sul, Antônio de Salema,
aplicou o programa na região fluminense de Cabo Frio, matando cerca de dois mil
índios e escravizando o dobro[3].
Tento calcular que juízo faria da matéria de Graziano o
inglês Anthony Knivet, aventureiro vindo para a América na frota do corsário
Thomas Cavendish, que se notabilizou pelo saque da vila de Santos, em
1591. Capturado e escravizado pela
poderosa família Sá, senhora do Rio de Janeiro, Knivet, obrigado a trabalhar no
tráfico de cativos indígenas, deixaria em seu livro de memórias registros como
este:
"No meio da
batalha nosso capitão, Martim de Sá, foi jogado no rio por um canibal, que o
pegou nos braços e, a despeito de todos nós, carregou-o à distância de um tiro
de pedra, e o jogou no rio, onde ele teria se afogado se não fosse por um índio
muito famoso chamado Patamicu, que era escravo do próprio Martim de Sá. Esse
Patamicu (que quer dizer 'tabaco comprido', pois os índios têm esse tipo de
nome) matou o canibal que tentava afogar seu senhor, e assim o salvou. Naquele
dia vencemos e pegamos dezesseis mil deles, dos quais matamos mil e seiscentos
a fio de espada e dividimos o restante entre os portugueses. Depois, atacamos
muitas pequenas aldeias, matando todos os velhos, tanto homens quanto mulheres,
e separando aqueles que poderiam ser úteis, e depois voltamos para casa[4]".
Paulista de Araras, Xico Graziano talvez já tenha lido
que a invasão pelos holandeses do Nordeste brasileiro e das feitorias africanas
que abasteciam os senhores de engenho de mão de obra foi sucedida, no restante
da América Portuguesa, pela retomada em larga escala da escravização de
índios. No espaço de seis anos,
trezentas aldeias foram arrasadas somente na área paulista, o que resultou na
morte de duzentos mil índios. Não muito
diferente foi a atuação dos bandeirantes na subjugação final das populações
indígenas nordestinas, já no final do século XVII e no início do XVIII. Domingos Jorge Velho, a quem cabe a duvidosa
glória de ter aniquilado Palmares, fez degolar, após um combate, duzentos e
sessenta “tapuias”, recebendo em seguida congratulações do arcebispo da Bahia,
Dom Manuel da Ressurreição[5]. Menos sorte teria Manuel Álvares Moraes
Navarro, mestre de campo, que depois de massacrar quatrocentos paiacus e
aprisionar outros trezentos na aldeia do Açu, no Rio Grande do Norte, recebeu a
pena de excomunhão[6].
Seria facílimo levantarmos outras fontes sobre guerras
coloniais, empreendidas pela Coroa ou por seus contratados contra tamoios,
goitacases, aimorés, botocudos, caiapós, guaicurus e muitos outros povos. Porém, pelo menos por enquanto, não
escreverei a versão nacional de Enterrem meu coração na curva do rio. Creio ter sepultado, para quem me seguiu até
aqui, a balela da colonização doce, quase filantrópica. Mas permanece outra questão: para Xico
Graziano, os índios que não morreram das doenças vindas do Velho Mundo, satisfeitos
por continuarem vivos, se integraram de coração aberto à civilização que lhes
chegava como presente.
Preciso, assim, informá-lo (ou recordá-lo) de que a dita
integração poderia ocorrer basicamente de duas formas: a primeira era a
escravidão, ou no mínimo alguma modalidade de trabalho compulsório; a segunda,
a fixação em aldeamentos administrados por religiosos, notadamente
jesuítas. Acredito piamente que
Graziano, em qualquer momento de sua vida escolar, tenha sido apresentado ao
esquema clássico sobre as condições de vida nos engenhos: esforço físico de sol
a sol, castigos, má alimentação, morte prematura na maioria dos casos. Quanto aos aldeamentos, que receba a opinião
insuspeita de outro simpatizante do PSDB, o historiador Boris Fausto, a respeito
do regime imposto pelos padres:
“Mas estes [membros das ordens] não tinham
também qualquer respeito pela cultura indígena. Ao contrário, para eles chegava
a ser duvidoso que os índios fossem pessoas. Padre Manuel da Nóbrega, por
exemplo, dizia que índios são cães em se comerem e matarem, e são porcos nos
vícios e na maneira de se tratarem[7]”.
Lamentavelmente, arrazoados sem qualquer fundamentação
historiográfica como o do agrônomo tucano são muito mais lidos do que as
pesquisas criteriosas dos melhores especialistas. Alimentam, desta forma, antigos lugares comuns, herança maldita
de tempos dos mais oligárquicos. Por
trás da prosa amena e aparentemente bem intencionada, Xico Graziano deixa
implícita uma das teses mais caras a seus correligionários ruralistas: índios
possuem terras demais. Não tenho o objetivo quixotesco de refutar todos os
artigos desta natureza. Destaco,
entretanto, a necessidade da democratização radical dos meios de comunicação. Os trabalhadores, reunidos em partidos,
sindicatos, movimentos sociais e demais organizações de cunho popular, precisam
controlar emissoras de televisão e rádio, jornais e blogs, para superar no
volume e na veracidade das informações a inconsistente produção cultural dos
conservadores.
[1] A descrição deste
processo está em Maria Regina Celestino de Almeida. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010, pp. 54/55.
[2] Ver Darcy
Ribeiro. O povo brasileiro: a formação e o sentido do
Brasil. São Paulo; Companhia das Letras, 1995, pp. 99/100
[3] Cf. Sérgio
Buarque de Holanda (organizador). Grandes personagens da nossa História. São Paulo: Abril Cultural, vol. I, p.
108.
[4] Anthony Knivet.
As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias
de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas
Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos
selvagens/Organização, introdução e notas: Sheila Moura Hue; tradução
Vivien Kogut Lessa de Sá. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp. 177/178).
[5] Cf. Luiz Alberto Moniz Bandeira. O feudo: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos
sertões à independência do Brasil.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 229/230.
[6] Idem, p.
264.
[7] História
do Brasil. São Paulo: Edusp, 1998,
pp. 49/50.
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