segunda-feira, 26 de março de 2012

A ilusória América Portuguesa de Xico Graziano


Navegando despretensiosamente pela Internet, antes do almoço, cheguei a um pequeno artigo assinado pelo agrônomo Xico Graziano, ex-deputado federal pelo PSDB e ex-chefe de gabinete do governo Fernando Henrique Cardoso.  O texto, que foi publicado pelo jornal O Estado de São Paulo na edição de 19 de abril de 2011, estava disponível neste link:


            Fui obrigado a especular, de imediato, sobre os motivos que levam um periódico tradicional, com público leitor consolidado, a dar destaque a uma exposição de tão baixa qualidade.  Graziano cita como fator de “atraso” dos índios brasileiros o desconhecimento, por parte destes, de espécies animais e vegetais que simplesmente não existiam nas regiões que habitavam. Instala o núcleo da colonização espanhola na América Central, quando provavelmente deseja fazer alusão aos massacres cometidos pelos europeus durante a conquista dos impérios Asteca (América do Norte) e Inca (região andina da América do Sul).  Rotula as populações ameríndias brasileiras da contemporaneidade como “remanescentes”, mesmo sabendo que há várias décadas o crescimento demográfico das mesmas supera o da população brasileira como um todo.  Resvalando para o puro humor involuntário, menciona Leandro Narloch enquanto referência intelectual.
            Não farei o leitor perder tempo com uma desconstrução total da visão histórico-antropológica de Xico Graziano, que parece entender tanto de Ciências Humanas quando eu a respeito da soldagem de chapas de alumínio.  O que me inquieta, de fato, é visualizar, em um órgão formador de opinião, uma afirmativa tão absurda quanto esta:

Distintamente da colonização espanhola na América Central, os portugueses aqui não atuaram para dizimá-los. Longe do confronto, os índios mantiveram espírito colaborativo com os colonizadores.

            Deixemos de lado a colonização da América Espanhola, que certamente não foi estudada pelo articulista em seu curso de Agronomia, assinalando somente que atribuir a um determinado tipo de colonizador uma postura de extermínio sistemático dos povos colonizados, à qual seus vizinhos mais próximos seriam imunes, é de um primarismo assustador para alguém com o currículo de Graziano.  O pior efeito deste tipo de colocação é o reforço dado aos falaciosos discursos ancestrais que enalteciam uma colonização supostamente branda, paternal, na qual até os escravos eram bem tratados, tendo como resultado a união de três raças em tudo diferentes para formar um povo pacífico e ordeiro.
            Caso se dedicasse ao hábito salutar de estudar História, Xico Graziano poderia saber, por exemplo, que o terceiro governador geral da América Portuguesa, Mem de Sá, promoveu guerra brutal contra os tupinambás da capitania da Bahia, que, embora tivessem feito um pacto com Tomé de Sousa, mais tarde romperam com os lusos.  Subjugados os tupinambás, Mem de Sá utilizou-os como massa de manobra contra os tupiniquins de Ilhéus, promovendo uma grande carnificina.  Segundo o relato mais comedido, de Gabriel Soares de Sousa, trinta aldeias foram queimadas, distribuindo-se os sobreviventes entre os que fugiram para o sertão e os que se submeteram a viver em aldeamentos jesuíticos. Na versão do frei Vicente de Salvador, as povoações destruídas foram setenta[1].  O mesmo Mem de Sá, ao ser informado de que os caetés haviam devorado o bispo Fernandes Sardinha, autorizou uma “guerra justa”.  Os colonos, então, caíram sobre missões habitadas por doze mil índios.  Apenas mil continuavam vivos quando a ordem foi revogada[2].  Dividida provisoriamente a colônia em 1572, seus dois governadores traçariam na cidade de Salvador, em fins do ano seguinte, estratégias de combate aos “índios rebeldes”.  O administrador do Sul, Antônio de Salema, aplicou o programa na região fluminense de Cabo Frio, matando cerca de dois mil índios e escravizando o dobro[3]
            Tento calcular que juízo faria da matéria de Graziano o inglês Anthony Knivet, aventureiro vindo para a América na frota do corsário Thomas Cavendish, que se notabilizou pelo saque da vila de Santos, em 1591.  Capturado e escravizado pela poderosa família Sá, senhora do Rio de Janeiro, Knivet, obrigado a trabalhar no tráfico de cativos indígenas, deixaria em seu livro de memórias registros como este:

"No meio da batalha nosso capitão, Martim de Sá, foi jogado no rio por um canibal, que o pegou nos braços e, a despeito de todos nós, carregou-o à distância de um tiro de pedra, e o jogou no rio, onde ele teria se afogado se não fosse por um índio muito famoso chamado Patamicu, que era escravo do próprio Martim de Sá. Esse Patamicu (que quer dizer 'tabaco comprido', pois os índios têm esse tipo de nome) matou o canibal que tentava afogar seu senhor, e assim o salvou. Naquele dia vencemos e pegamos dezesseis mil deles, dos quais matamos mil e seiscentos a fio de espada e dividimos o restante entre os portugueses. Depois, atacamos muitas pequenas aldeias, matando todos os velhos, tanto homens quanto mulheres, e separando aqueles que poderiam ser úteis, e depois voltamos para casa[4]".

            Paulista de Araras, Xico Graziano talvez já tenha lido que a invasão pelos holandeses do Nordeste brasileiro e das feitorias africanas que abasteciam os senhores de engenho de mão de obra foi sucedida, no restante da América Portuguesa, pela retomada em larga escala da escravização de índios.  No espaço de seis anos, trezentas aldeias foram arrasadas somente na área paulista, o que resultou na morte de duzentos mil índios.  Não muito diferente foi a atuação dos bandeirantes na subjugação final das populações indígenas nordestinas, já no final do século XVII e no início do XVIII.  Domingos Jorge Velho, a quem cabe a duvidosa glória de ter aniquilado Palmares, fez degolar, após um combate, duzentos e sessenta “tapuias”, recebendo em seguida congratulações do arcebispo da Bahia, Dom Manuel da Ressurreição[5].  Menos sorte teria Manuel Álvares Moraes Navarro, mestre de campo, que depois de massacrar quatrocentos paiacus e aprisionar outros trezentos na aldeia do Açu, no Rio Grande do Norte, recebeu a pena de excomunhão[6].
            Seria facílimo levantarmos outras fontes sobre guerras coloniais, empreendidas pela Coroa ou por seus contratados contra tamoios, goitacases, aimorés, botocudos, caiapós, guaicurus e muitos outros povos.  Porém, pelo menos por enquanto, não escreverei a versão nacional de Enterrem meu coração na curva do rio.  Creio ter sepultado, para quem me seguiu até aqui, a balela da colonização doce, quase filantrópica.  Mas permanece outra questão: para Xico Graziano, os índios que não morreram das doenças vindas do Velho Mundo, satisfeitos por continuarem vivos, se integraram de coração aberto à civilização que lhes chegava como presente.
            Preciso, assim, informá-lo (ou recordá-lo) de que a dita integração poderia ocorrer basicamente de duas formas: a primeira era a escravidão, ou no mínimo alguma modalidade de trabalho compulsório; a segunda, a fixação em aldeamentos administrados por religiosos, notadamente jesuítas.  Acredito piamente que Graziano, em qualquer momento de sua vida escolar, tenha sido apresentado ao esquema clássico sobre as condições de vida nos engenhos: esforço físico de sol a sol, castigos, má alimentação, morte prematura na maioria dos casos.  Quanto aos aldeamentos, que receba a opinião insuspeita de outro simpatizante do PSDB, o historiador Boris Fausto, a respeito do regime imposto pelos padres:

“Mas estes [membros das ordens] não tinham também qualquer respeito pela cultura indígena. Ao contrário, para eles chegava a ser duvidoso que os índios fossem pessoas. Padre Manuel da Nóbrega, por exemplo, dizia que índios são cães em se comerem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se tratarem[7]”.

            Lamentavelmente, arrazoados sem qualquer fundamentação historiográfica como o do agrônomo tucano são muito mais lidos do que as pesquisas criteriosas dos melhores especialistas.  Alimentam, desta forma, antigos lugares comuns, herança maldita de tempos dos mais oligárquicos.  Por trás da prosa amena e aparentemente bem intencionada, Xico Graziano deixa implícita uma das teses mais caras a seus correligionários ruralistas: índios possuem terras demais. Não tenho o objetivo quixotesco de refutar todos os artigos desta natureza.  Destaco, entretanto, a necessidade da democratização radical dos meios de comunicação.  Os trabalhadores, reunidos em partidos, sindicatos, movimentos sociais e demais organizações de cunho popular, precisam controlar emissoras de televisão e rádio, jornais e blogs, para superar no volume e na veracidade das informações a inconsistente produção cultural dos conservadores.  


[1] A descrição deste processo está em Maria Regina Celestino de Almeida.  Os índios na História do Brasil.  Rio de Janeiro: FGV, 2010, pp. 54/55.
[2] Ver Darcy Ribeiro. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo; Companhia das Letras, 1995, pp. 99/100
[3] Cf. Sérgio Buarque de Holanda (organizador). Grandes personagens da nossa História.  São Paulo: Abril Cultural, vol. I, p. 108.   
[4] Anthony Knivet. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens/Organização, introdução e notas: Sheila Moura Hue; tradução Vivien Kogut Lessa de Sá. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, pp. 177/178).
[5] Cf. Luiz Alberto Moniz Bandeira.  O feudo: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 229/230.
[6] Idem, p. 264.
[7] História do Brasil.  São Paulo: Edusp, 1998, pp. 49/50.

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