sábado, 10 de março de 2012

Os verdadeiros revanchistas

            O manifesto publicado no portal do Clube Militar em 16 de fevereiro de 2012 foi o estopim de uma crise política que ainda não teve desfecho.  Os autores, vice-almirante Ricardo Antonio da Veiga Cabral, general de exército Renato Cesar Tibau da Costa e tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista, expuseram seu desagrado com relação a dois discursos proferidos por autoridades ligadas ao governo federal, contendo críticas à ditadura instalada após o golpe de 1964 e fazendo menção à possibilidade de que cidadãos prejudicados por atos de iniciativa daquele regime busquem reparação no sistema judiciário.
            Do breve texto emerge, sem dúvida, o temor dos saudosistas de 1964 diante do que habitualmente classificam como revanchismo.  Segundo os citados oficiais, ao não reprimir ou desautorizar suas subordinadas portadoras de demandas supostamente inconvenientes, a presidenta Dilma Rousseff demonstra “preocupação em governar para uma parcela da população”, ao invés de “atender aos interesses de todos os brasileiros”.  A ministra Eleonora Menicucci, em particular, é atacada por haver enaltecido seus companheiros de guerrilha mortos nos confrontos com a repressão, sob o argumento de que os primeiros pretendiam implantar uma ditadura e não a democracia.
           Com o emprego de um pouco de lógica, é possível retrucar afirmando que o esquecimento dos crimes de sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáveres praticados a mando dos governos ditatoriais é do interesse, apenas, de uma insignificante parcela dos brasileiros (os criminosos que ainda não faleceram por causas naturais), certamente menor do que os numerosos segmentos que gostariam de ver aquelas ações definitivamente esclarecidas e/ou os responsáveis punidos.  A alegação costumeira de que a Anistia valeu para os dois lados não passa de mistificação, se atentarmos para dois fatos: 1)As regras da Anistia foram estabelecidas de modo unilateral pelo governo Figueiredo e “aprovadas” por um Congresso dócil, constituído conforme a legislação e os métodos da ditadura. 2)Enquanto a maioria dos oposicionistas classificados como “terroristas” enfrentou a prisão, os porões, o exílio ou mesmo a morte, estando suas fichas de “subversivos” disponíveis para consulta em arquivos públicos, nenhum dos agentes repressores sofreu qualquer sanção legal.
O desgastado expediente de justificar o autoritarismo como única alternativa ao estabelecimento de um sistema totalitário de esquerda não faz sentido, visto que a luta armada promovida pelas organizações revolucionárias foi deflagrada em 1968, quatro anos depois do golpe, e não o contrário.  Muito mais expressiva em número e em recursos era a oposição convencional, partícipe do jogo eleitoral, contra a qual os governos militares, respaldados por seus aliados civis arenistas (mais tarde pedessistas), criaram inúmeros casuísmos, como se não fossem suficientes os expurgos.  Basta nos lembrarmos de que logo em seguida ao pleito estadual de 1965, em que os oposicionistas saíram vitoriosos na Guanabara, Minas Gerais, Santa Catarina e Mato Grosso, Castelo Branco baixou o AI-2, estabelecendo eleições indiretas para a Presidência da República.  Em fevereiro do ano seguinte, através do AI-3, também os governadores passaram a ser eleitos indiretamente[1].
Entretanto, as maiores distorções presentes no manifesto militar estão no parágrafo alusivo ao PT, que transcrevo abaixo:

Para finalizar a semana, o Partido dos Trabalhadores, ao qual a Presidente pertence, celebrou os seus 32 anos de criação. Na ocasião foram divulgadas as Resoluções Políticas tomadas pelo Partido. Foi dado realce ao item que diz que o PT estará empenhado junto com a sociedade no resgate de nossa memória da luta pela democracia (sic) durante o período da ditadura militar. Pode-se afirmar que a assertiva é uma falácia, posto que quando de sua criação o governo já promovera a abertura política, incluindo a possibilidade de fundação de outros partidos políticos, encerrando o bi-partidarismo.

            A lenta, gradual e “segura” redemocratização é exibida, desta forma, como dádiva do regime ditatorial, relegando às sombras não apenas as lutas dos trabalhadores organizados e das demais forças oposicionistas, como também a própria conjuntura sócio-econômica, extremamente desfavorável ao governo Figueiredo na fase que compreende a fundação do PT.  A inflação oficial, calculada em 41% ao ano em 1978, atingiu 77% na temporada seguinte, marcada por mais de quatrocentas greves no período de janeiro a outubro.  Categorias das mais diversas, como motoristas de ônibus, professores, garis, trabalhadores da construção civil e da siderurgia, portuários, bancários e funcionários públicos civis foram para as ruas apresentar suas reivindicações.  O déficit em conta corrente do governo aumentava rapidamente, enquanto os investimentos estrangeiros na economia brasileira decresciam em proporção semelhante[2].
            No campo político, os signatários do manifesto do Movimento Pró-PT, aprovado em assembleia realizada no Colégio Sion de São Paulo em 10 de fevereiro de 1980, também não recorriam a mera figura de retórica quando expunham a necessidade de combater  “todos os mecanismos ditatoriais que reprimem e ameaçam a maioria da sociedade”.  Não muito antes, em julho de 1976, a Lei Falcão impedira os candidatos a cargos eletivos de discursarem no rádio ou na televisão, limitando o horário político a uma exaustiva leitura de currículos, com o objetivo de cercear as inúmeras críticas que o governo sofreria àquela altura.  Para piorar a situação, em abril de 1977 foi instituída a figura do senador biônico, com o intuito mais do que evidente de negar ao MDB qualquer possibilidade de alcançar a maioria no Senado[3].
            Mesmo com a extinção da ARENA e do MDB, em dezembro de 1979, e a formação de um sistema multipartidário, a batalha pela democracia estava nitidamente inconclusa, não apenas pela permanência de Figueiredo no Planalto, mas igualmente por retrocessos que se sucederam, como o adiamento das eleições municipais de 1980 (diante da expectativa de derrota do PDS), a prisão de onze líderes sindicais (entre eles Lula) em fevereiro de 1981, após julgamento por um tribunal militar[4], e as explosões no Riocentro em abril de 1981, que demonstraram o poder de pressão ainda contabilizado pela linha dura militar.
            O manifesto de 16 de fevereiro, em síntese, longe de alertar a nação para uma versão verídica e encoberta da História, expõe somente o autêntico revanchismo, daqueles que não se conformam com a sentença desfavorável que a sociedade lhes impôs, expressa na grande maioria, senão na quase totalidade, da produção escrita sobre os anos de 1964 a 1985, nem tampouco com o esclarecimento formal das atrocidades da “Redentora”.



[1] Ver FAUSTO, Boris.  História do Brasil.  São Paulo: Edusp, 1998, pp. 473/474.
[2] Cf. SKIDMORE, Thomas.  Brasil: de Castelo a Tancredo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp. 417 a 421.
[3]  Ver FAUSTO, pp. 492/493.
[4] Ver SKIDMORE, pp. 432 a 437.

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