Pendant
que nous nous battons
Ils pillent nos richesses
Et
se disent être surpris de voir l’Afrique toujours em guerre”
(Tiken Jah Fakoly. Françafrique)
“Eles
nos vendem armas
Enquanto
nós lutamos
Eles
pilham nossas riquezas
E
dizem estar surpresos de ver a África sempre em guerra”
O reggae nasceu como música de
protesto, por excelência. Podemos nos
recordar, sobretudo se já passamos dos quarenta anos, das contundentes letras
de Peter Tosh contra as armas nucleares e o apartheid, e da exigência de Jimmy Cliff,
em ritmo dançante, de que tivesse fim a Guerra do Vietnã. O místico Bob Marley não deixou de cantar
pela emancipação do Zimbabwe. No
Brasil dos anos 80, Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone, adeptos do ska,
ritmo que influenciou as origens do reggae, atestaram em muitos sucessos a
perversidade de uma sociedade extremamente desigual. O gênero não escapou,
certamente, da contaminação pelos tipos pós-modernos que trocaram a militância
pela ostentação de carros de luxo, relógios de ouro, roupas de grife e mulheres
com medidas perfeitas.
Entretanto, é fascinante perceber como o reggae pôde ser
reinventado em sua feição mais reivindicatória e libertadora no continente
africano. Há uns cinco ou seis anos, eu
me dedicava à tarefa nada acadêmica de preparar o churrasco numa festa de família,
quando minha filha mais nova escolheu, como som ambiente, o repertório de uma
novela global, ambientada no Maranhão, em que Reynaldo Gianecchini formava par
romântico com Taís Araújo. Entre a
maioria de letras em inglês, uma ou outra em espanhol, chamou-me a atenção, a
certa altura, o brado “Réveillez-vous!”.
Comecei, naquele momento, a gostar do excelente trabalho de
Tiken Jah Fakoly. A faixa em questão, Françafrique, tem como título uma
expressão idiomática, que se refere aos países africanos que passaram pelas
agruras do colonialismo francês. O mote
“La politique France Afrique, c’est du
blaguer tuer, La politique Amerique Afrique c’est du blaguer et tuer”
introduz a temática. O verbo blaguer
pode ser traduzido como “contar piada”, enquanto tuer significa
matar. Nada
mais ilustrativo, nesta locução não sujeita à transcrição literal, dos
resultados da presença dos governos ocidentais na África, em que proclamações humanitárias de
respeito à vida e à autodeterminação dos povos se misturam à cumplicidade com
regimes corruptos e genocidas associados ao tráfico de armas e diamantes. Uma
política que, em sua expressão discursiva, não pode mesmo ser levada a sério
por qualquer ente pensante, mas cujos efeitos materiais são miséria e morte.
Nascido Doumbia Moussa Fakoly, em 1968, na Costa do Marfim,
o cantor, que trocou seu nome de sonoridade arábica por outro mais próximo do
rastafarianismo, no qual Jah significa Deus, faz da crítica ao imperialismo e
ao desequilíbrio nas relações Norte-Sul uma constante em sua obra. Em Plus
rien ne m’étonne, ele assume sarcasticamente o lugar de um virtual
partícipe da divisão do mundo, em que a compreensão para com a apropriação
indébita de recursos naturais é retribuída com apoio militar. Em Africain à Paris, descreve, em
formato de carta à mãe que permanece na terra natal, a realidade de muitos
imigrantes africanos na Europa, na qual as possibilidades de guardar dinheiro e
obter visto de permanência definitiva, ainda que reais, estão vinculados a
habitação precária e trabalho pesado sem limite de jornada. Fakoly não se
esquece, obviamente, dos esporádicos incêndios criminosos que ocorrem em hotéis onde se concentram os trabalhadores estrangeiros.
Confronto as letras de Tiken Jah Fakoly com o livro de
Raphaël Granvaud, Que fait l’armée française em Afrique? (O que faz o
exército francês na África?); Marseille: Agone, 2009. Vejo em que medida a arte pode refletir o mundo real. Granvaud demonstra, com clareza e riqueza de
dados factuais, como o fim da Guerra Fria permitiu ao Estado francês adotar uma
política externa neocolonial, frequentemente apelando de maneira hipócrita à
bandeira da manutenção da paz, mas na verdade agindo no sentido de decidir o
resultado de lutas pelo poder em favor de seus sócios. O armamento fornecido pela ex-metrópole pode
servir, por exemplo, para sufocar greves gerais com sangue, como na Guiné
(2007), ou reprimir insurreições populares, como em Camarões (2008). Antes disto, já tornara viável o genocídio
de Ruanda (1994). Mesmo países que não foram colonizados pela França, Serra
Leoa e Guiné Bissau, estiveram sujeitos ao intervencionismo francês. A imensa lista de ações injustificáveis
inclui o apoio às operações do aventureiro Bob Denard (1929-2007), líder de
mercenários, nas Ilhas Comores.
Implacável com os colonialistas, Fakoly não se mostra
condescendente diante de barbaridades cometidas por africanos. Le pays va mal traz a denúncia das
forças sectárias que estimulam a inimizade, na Costa do Marfim, entre naturais
de diferentes regiões e praticantes de diferentes religiões. A melancólica Non à l’excision é um
hino contra a mutilação genital feminina, capaz de marejar os olhos de qualquer
pessoa que compreenda um pouco o idioma francês.
A alegria do reggae marfinense, por sua vez, se revela em Alpha
Condé, inteiramente cantada em língua africana, exceto pelo grito “Libérez!”
repetido várias vezes em seus instantes finais. A música é uma homenagem ao atual presidente da República da
Guiné, um antigo adversário de sucessivos governos ditatoriais e vencedor da
primeira eleição multipartidária de seu país, em 2010. Alpha Condé, chamado de baba (pai)
por Fakoly, é colocado no mesmo panteão a que pertence Nelson Mandela.
Enquanto tivermos Tiken Jah Fakoly, a música engajada
estará em ótimas mãos. Finalizemos com uma boa sugestão, na voz do próprio,
para os franceses colocarem em prática nas eleições que se aproximam: Sarkozy,
deixe o poder!
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