sábado, 17 de março de 2012

Notas sobre o Irã: uma pequena crônica antiimperialista


           
   Situado entre três impérios, o Russo, o Otomano e a Índia Britânica (que abarcava o vizinho Paquistão), o Irã, na época ainda sob a denominação de Pérsia, foi uma das poucas nações asiáticas que não caíram, entre as décadas finais do século XIX e as iniciais do XX, sob a dominação estrangeira direta.  A independência formal não impediu, contudo, que russos e ingleses, ávidos por petróleo, estabelecessem suas áreas de influência, respectivamente ao norte e ao sul.  O czarismo, representado pela Companhia dos Petróleos Georgianos, não se absteve, inclusive, de instalar tropas no noroeste do país. 
            Após comandar um golpe de Estado, em 1925, Reza Khan fundou sua própria dinastia, a dos Pahlavi, tornando-se xá.  Este militar, que renegociou a distribuição das rendas do petróleo com a Anglo-Persian Company (depois Anglo-Iranian), consolidou seu poder através do terror, ordenando massacres contra diversas minorias étnicas.  Entretanto, no início dos anos 40, Reza Khan cometeu o erro fatal de deixar evidente sua simpatia pelo nazismo, a ponto de permitir o funcionamento de um centro de propaganda hitlerista em Teerã.  Para evitar que os alemães se apoderassem de fontes vitais de petróleo, os aliados ocuparam o Irã.  Reza Khan se viu obrigado a abdicar em favor do filho, Mohamad Reza Pahlavi.
            Ainda antes do final da Segunda Guerra, o governo dos Estados Unidos decidiu assumir uma posição de tutela em relação ao Irã.  Por ocasião da Conferência de Teerã, em fins de 1943, quando Roosevelt, Stalin e Churchill traçaram os rumos que norteariam a fase final da luta contra o Eixo, armas e conselheiros americanos ingressaram no país. O regime do novo xá se constituiu, de pronto, como um bastião do anticomunismo.  A repressão local a vários levantes pró-soviéticos, na região do Azerbaijão e em áreas próximas ao Mar Cáspio, bem como às manifestações de apoio àqueles movimentos organizadas pelo Partido Tudeh (comunista), resultaram na retirada soviética e na ampliação da presença norte-americana.  Em junho de 1947, os Estados Unidos concederam a Reza Pahlavi um crédito militar de 26 milhões de dólares.  Naquele ano, marcado pela criação da Central Intelligence Agency (CIA), o general americano Schwartzkopf foi incumbido de reestruturar as forças policiais iranianas.
            Depois de escapar de um atentado, em 2 de fevereiro de 1949, Reza Pahlavi atribuiu a culpa ao Tudeh, ainda que, em consequência do linchamento sofrido pelo fracassado matador, o episódio nunca tenha sido inteiramente esclarecido.  O xá lidava com seus opositores de forma tirânica, promovendo assassinatos e julgamentos sumários.
            Cansado da intromissão estrangeira no campo militar e do controle econômico do Irã pelas empresas petrolíferas anglo-americanas, o eleitorado iraniano elegeu, em 1951, um líder nacionalista, Mohamad Hedayat, mais conhecido como Mossadegh (“O valoroso”, em persa), chefe do Partido da Frente Nacional.  Reza Pahlavi tentou resistir à voz das urnas, nomeando para o cargo de primeiro-ministro seu embaixador em Washington, Hossein Ala.  Os protestos populares em favor de Mossadegh, que dispunha da solidariedade de um importante clérigo, o aiatolá El Kachani, obrigaram o xá a recuar.  Mossadegh assumiu o governo em 13 de maio de 1951, adotando uma decidida política de nacionalização dos recursos naturais.
            Naquele mesmo ano, o Parlamento iraniano cassou as concessões da Anglo-Iranian.  O povo, que colocou a bandeira iraniana na sede da companhia nacionalizada, mostrava-se hostil aos norte-americanos, cuja posição oficial fora de apoio aos interesses britânicos.  Mossadegh foi reeleito em 1952, fato que estimulou a fuga do desprestigiado xá para a Itália, em fevereiro de 1953.
            Seis meses mais tarde, porém, a CIA fez uso de um expediente que se tornaria comum nas décadas que se sucederam: a preparação de quarteladas contra governos que, embora legitimamente constituídos, eram ideologicamente inconvenientes.  Enviado pela agência, Kim Roosevelt articulou junto a um aventureiro, Zahedi, que possuía em seu currículo uma antiga admiração pelos nazistas, a mobilização de tropas que ainda guardavam fidelidade aos Pahlavi.  Deposto pelas armas, Mossadegh foi preso, conduzido ao tribunal e condenado à morte.  Nada disposto a criar um mártir, o xá, retornando do exílio, comutou a sentença, reduzida a três anos de prisão.
O golpe, em parte financiado pelo governo dos Estados Unidos, restabeleceu a antiga posição das multinacionais, levando à criação, em 1954, de um consórcio entre ingleses, franceses, holandeses e americanos para extrair o petróleo do Irã.  Os aspectos mais violentos da monarquia se acentuaram nos anos seguintes: um general, Teymour Bakhtiar, que se notabilizara pelo extermínio de centenas de comunistas no interior de uma prisão e de milhares de seguidores de Mossadegh numa sucessão de execuções, criou em 1956 a Savak, polícia política subsidiada em verbas e conhecimento técnico, não apenas pelos Estados Unidos, como também pelo Mossad israelense. 
A ostentação de riqueza por parte da família real contrastava com a miséria do iraniano médio.  Indiferentes à intensa exploração econômica sofrida pelos setores populares, militares e policiais sufocavam à bala toda e qualquer manifestação ativa de descontentamento, dizimando trabalhadores grevistas e estudantes.  Após a prisão, em abril de 1963, de um dos principais críticos do xá, o aiatolá Khomeini, que desencadeou uma onda de protestos, as forças da repressão mataram mais de mil pessoas. A coluna vertebral do despotismo, no entanto, era mesmo a Savak, dirigida por um gabinete especial formado por oficiais que só prestavam contas de seus atos a uma única instância, o próprio Reza Pahlavi.
As estimativas sobre o número de vítimas da Savak, nos mais de vinte anos de existência daquela instituição, variam.  Parece certo que centenas de milhares de homens e mulheres foram torturados em seus porões, entre militantes de esquerda, religiosos contrários ao xá, intelectuais de classe média e quaisquer outros elementos que se atrevessem a atacar o governo em público.  A mortalidade nos interrogatórios era assustadoramente elevada.  A influência americana não se limitava à ideologia anticomunista: um dos principais instrumentos de tortura, a “mesa quente”, derivava da cadeira elétrica empregada em várias partes dos Estados Unidos.  A divulgação destas atrocidades pela mídia ocidental motivou, na década de 70, denúncias públicas constantes, empreendidas por personalidades como Noam Chomski e Joan Baez; na prática, porém, a América não rompeu sua velha aliança com os Pahlavi.
A monarquia genocida, finalmente, contribuiu para sua própria destruição em 1978, quando seus agentes metralharam na cidade de Qom estudantes partidários do clero xiita, cujo maior expoente era Khomeini, então exilado na França.  Milhões de pessoas protestaram nas ruas, guerrilheiros partiram para a luta armada, grevistas da indústria do petróleo e do comércio paralisaram a economia.  Inerte também o exército, Reza Pahlavi rumou novamente para o exterior, desta vez para não mais voltar.
Surgia então uma república islâmica, que em pouco tempo foi forçada a enfrentar um desafio externo de grandes proporções.  Subira à presidência do Iraque, em 1979, Saddam Hussein, do Partido Baath, uma agremiação política antes tão próxima da União Soviética que chegara a admitir, em 1973, o ingresso formal do Partido Comunista Iraquiano no governo.  Todavia, já no ano de 1978, Saddam, um dos principais chefes militares iraquianos, expulsara os comunistas da coalizão governista, promovendo em seguida a execução de trinta e um deles, com o objetivo de se mostrar confiável perante os Estados Unidos.  No intuito de unir o Iraque, esfacelado pelos conflitos entre curdos e árabes e entre sunitas e xiitas, contra um inimigo comum, Saddam Hussein declarou nulo, em 17 de setembro de 1980, o acordo de fronteiras assinado pelos dois países em 1975 e determinou a invasão do Irã.  Apoiado pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, provavelmente esperava vitória fácil e rápida numa guerra que se caracterizou, além de outros aspectos, por complexas conexões de mercado.  O Iraque, abastecido pela França de caças Mirage F-1 e mísseis Exocet, comprou igualmente novas armas soviéticas.  O Irã, que ainda contava com armamento americano moderno, adquirido pelo xá, recebeu secretamente peças de reposição originárias de Israel, cujo governo julgava os iraquianos uma ameaça mais séria à segurança de seu território.
Terminada a guerra, sem vencedor, em 1988, o Irã estava enfraquecido pela morte de centenas de milhares de pessoas e prejuízos bilionários provocados por gastos militares, quebra da produção agrícola e perda de receitas petrolíferas.  Mas a sobrevivência do regime islâmico não abrandou a hostilidade da aliança ocidental, em especial dos Estados Unidos.  George W. Bush, em seu demagógico discurso do Estado da União de 29 de janeiro de 2002, se referiu ao Irã como um dos integrantes do Eixo do Mal, formado por nações párias, supostamente incentivadoras do terrorismo.
Atualmente, o desenvolvimento do programa nuclear iraniano serve de pretexto para novas iniciativas contra o país.  Sob pressão dos Estados Unidos, o Conselho de Segurança da ONU emitiu resoluções contendo sanções econômicas contra o Irã, com o intuito de obrigar a administração Ahmadinejad a interromper suas atividades de enriquecimento de urânio.  O presidente Barack Obama, em abril de 2010, excluiu os iranianos da doutrina nuclear americana, segundo a qual os Estados Unidos se comprometem a não atacar com armas atômicas países que, não dispondo deste tipo de armamento, se submetem às regras do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares.  O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, tenta obter de Washington o aval para uma “ação preventiva” visando à destruição dos reatores iranianos, enquanto Obama, já tendo em vista sua campanha pela reeleição, não descarta a possibilidade de intervenção direta dos Estados Unidos.
Jornais e emissoras de TV, quase sem exceção, aplaudem e incentivam a  agressão que se anuncia, apresentando-a ao público como a retirada de um brinquedo letal das mãos de um regime de fanáticos, senão de loucos.  Carecem de moral e de razão.  Em 33 anos de existência, a república iraniana esteve em guerra externa uma única vez, na qual foi a parte atacada.  Entretanto, contabilizar o número de bombardeios e incursões de comandos de Israel contra o Líbano e as áreas sob administração palestina, sob o pretexto de caçar diretores de organizações terroristas, que nos relatórios oficiais sempre morrem, mas sempre também são aparentemente substituídos por outros ainda mais perigosos, seria uma tarefa das mais árduas.  Podemos duvidar dos fins exclusivamente pacíficos que Ahmadinejad atribui ao programa nuclear do Irã, mas não ignoramos que Israel possui muitas armas atômicas, ao alcance de sucessivos governos direitistas, em regra obrigados a considerar as opiniões de seus próprios fanáticos, os defensores da colonização da Cisjordânia e das Colinas de Golan. 
Mesmo numa ótica fascista, pela qual a supremacia ocidental deve ser mantida em sua plenitude, em todos os terrenos e a qualquer custo, não existe coerência na postura americana de acusar o Irã e ao mesmo tempo endossar o poderio nuclear do fronteiriço Paquistão, um Estado politicamente muito mais instável.  É forçoso recordar, ainda, o notório apoio israelense à fabricação de armas atômicas pela África do Sul, em plena vigência do apartheid, sem que houvesse sanção de qualquer gênero. 
Denunciemos, vigorosamente e em todos os espaços em que seja possível, a hipocrisia do governo Obama, de seus aliados israelenses e europeus, e sobretudo da mídia servil de todos os continentes.     
    

Bibliografia utilizada:

.ALI, Tariq.  Bush na Babilônia: a recolonização do Iraque.  Rio de Janeiro: Record, 2003.
.DERIVERY, François.  Massacres e repressão no Irã.  In: O livro negro do capitalismo/org. Gilles Perrault.  Rio de Janeiro, Record, 2000.
.HOBSBAWN, Eric J.  Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991.  São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

3 comentários:

  1. O artigo é fantástico, mas acho que faltou um livro que é referência neste aspecto:
    A Revolução Iraniana, de Osvaldo Coggiola.
    O livro traz em detalhes a história da revolução islâmica no Irã e mostra as mudanças na vida das pessoas, como todos estavam sedentos por uma mudança de regime. O autor denuncia a operação Ajax, que o mundo pensava ser uma "Teoria da Conspiração".
    Enfim, recomendo a leitura deste livro, e nem precisa se preocupar com o preço, o meu custou menos de R$ 15,00.
    Abraços.

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  2. Síntese precisa da história contemporânea do Irã(séc.XX) até os dias atuais.Sem retoques.

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