Samuel Phillips Huntington
(1927-2008), economista e cientista político norte-americano, foi uma das
figuras que mais exerceram, nas últimas décadas, influência sobre a
intelectualidade conservadora em seu país.
Suas pregações são seguidamente mencionadas, em especial, como
inspiradoras da política externa estadunidense durante os períodos
presidenciais de George Walker Bush (2001-2009). A principal tese de Huntington, desenvolvida,
entre outros trabalhos, no livro O choque
de civilizações e a recomposição da Ordem Mundial (Rio de Janeiro:
Objetiva, 1997)[1], se
estrutura em torno da noção de que, finda a Guerra Fria e sua correspondente polarização
ideológica Estados Unidos/União Soviética, a política mundial se reorganizaria
“seguindo linhas culturais e civilizacionais”, cabendo agora aos conflitos de
classe e aos interesses econômicos um papel secundário (Huntington, 1997, 21).
Muitas censuras
se tornam pertinentes diante das reflexões de Huntington, a começar pelos
critérios fluidos que o autor emprega para definir os limites identitários
entre as civilizações. Após apresentar brevemente
as opiniões de diversos historiadores e seus respectivos sistemas
classificatórios, ele termina por admitir a existência bem nítida de cinco delas
(chinesa, japonesa, indiana, islâmica e ocidental), às quais, taticamente
(“para nossos propósitos”), podem ser somadas mais duas: a latino-americana e a
africana (Huntington, 1997, 50). A
respeito desta última, simplesmente não indica quais seriam seus pilares,
limitando-se, depois de destacar as influências do Cristianismo antigo, do Islã
e dos colonizadores europeus sobre os povos africanos (além da persistência das
“identidades tribais”), a apontar para o crescimento de “uma noção de
identidade africana” (Huntington, 1997, 54).
Adotando
uma visão que superestima o peso do fator religioso na História, Huntington
acaba por incorrer em outras falhas; ao reduzir a Guerra da Bósnia a um choque,
típico das “linhas de fratura”, entre sérvios ortodoxos, croatas católicos e
bósnios muçulmanos (Huntington, 1997, 324), passa ao largo do fato de que, ao
longo de décadas de regime socialista na extinta Iugoslávia, houve uma forte
difusão do laicismo na região, o que tenderia a provocar, ao contrário, uma
amenização das tensões religiosas ancestrais.
Também se torna problemático, nesta linha de análise, explicar como, não
muito tempo após os bombardeios da OTAN contra Belgrado (1999), a maioria dos
sérvios parece desejar o ingresso na União Europeia ocidentalizante, católica,
luterana ou calvinista. Não faltariam
exemplos, sobretudo, de como a distribuição seletiva de alguns milhões de
dólares basta para consolidar, entre povos de todas as confissões, projetos
políticos antagônicos, que não raro desembocam em guerras civis alimentadas por
Estados pertencentes a “outras civilizações”.
Mas
cuidemos, em particular, do que Huntington afirma sobre a América Latina. Segundo ele, esta civilização “intimamente
afiliada ao Ocidente e dividida quanto a se seu lugar é ou não no Ocidente” tem
como peculiaridades as influências culturais indígenas, práticas políticas
autoritárias e o predomínio quase incontestado, até um passado recente, do
Catolicismo, em contraste com as demais áreas ocidentais, que experimentaram o
impacto da Reforma. O autor comete uma
grave imprecisão na elaboração de seu panorama, quando coloca ao lado da
Argentina, enquanto exemplo de sociedade em que os elementos ameríndios têm
menos importância, o Chile (Huntington, 1997, 52), país em que a numerosa
comunidade mapuche nunca se submeteu à colonização espanhola e expressivos
segmentos, talvez a maioria da população, se identificam como mestiços.
Não
contesto Huntington no que se refere à premissa de que a América Latina apresenta,
numa comparação com a Europa e a América do Norte, mais diferenças do que
semelhanças. As experiências da servidão
indígena e da escravidão africana, que em algumas sociedades se estenderam por
mais de dez gerações, e as reconstruções singulares do pensamento europeu
empreendidas pelos povos dominados foram, sem dúvida, marcantes no cenário regional. É impossível ignorar, da mesma forma, todas
as sobrevivências culturais de matriz ameríndia e africana, expressas
desigualmente do Rio Bravo do Norte à Terra do Fogo, porém sempre atestadas e
quantificadas em sua relevância por antropólogos, sociólogos e historiadores de
múltiplas tendências ideológicas. O
homem europeu, muitas vezes integrado aos contextos coloniais em situação muito
diversa da que ocupava no Velho Mundo, também se tornou outro. Abundam os exemplos, na História do Brasil,
de portugueses que passaram a viver como índios e de brancos de procedências
variadas que, em circunstâncias desfavoráveis, se refugiaram em quilombos, como
o francês que, depois de participar da Cabanagem, veio a morrer na Balaiada,
lutando no exército do negro Cosme[2];
no pólo oposto, citaríamos também plebeus rapidamente convertidos em aristocratas. Penso
que o próprio autoritarismo acusado por Huntington, em generosa parcela, se
deve à percepção, por parte das oligarquias latino-americanas e de seus adeptos
na classe média conservadora, de que comandam uma massa de colonizados,
portadores de uma mentalidade completamente diversa da sua, cujos interesses
são totalmente incompatíveis com os seus.
Admitindo
as diferenças entre Sul e Norte, Huntington desenvolve a partir delas considerações
pessimistas. Uma de suas principais
preocupações quanto ao futuro dos Estados Unidos está justamente vinculada ao
crescimento acelerado da população de origem hispânica, que ele, sem disfarce,
opõe à branca (Huntington, 1997, 256). O
autor não oculta, com relação aos mexicanos, seu temor de que, ao
contrário dos membros de outras correntes imigratórias, aqueles resistam à
“assimilação”, consolidando, desde a península do Yucatán até o estado de
Nevada, uma “sociedade mexicana ininterrupta” (Huntington, 1997, 256-257). Quando critica as tendências
multiculturalistas assumidas pela administração Clinton (1993-2001), Huntington
se alinha com os estadistas norte-americanos que recearam, desde a fundação do
Estado, a “diversidade racial, sectária, étnica, econômica e cultural”, não
hesitando em exibir como exemplo da boa atitude contrária ao multiculturalismo o
brutal imperialista Theodore Roosevelt (Huntington, 1997, 389). Neste quesito, nem o governo do republicano
George Herbert Bush (1989-1993) escapa à reprovação, visto que, assim como os rivais
democratas, seus integrantes se empenharam no progresso do NAFTA, um “plano de
integração econômica multicivilizacional” de resultados duvidosos (Huntington,
1997, 393).
Evidentemente,
Huntington não aprecia o mundo de contornos culturais imprecisos em que vivem
mexicanos, centro-americanos, andinos e outros, e levanta a bandeira da
não-contaminação da América Anglo-Saxônica por estas sociedades algo (ou
bastante) indianizadas. Todavia, ele não
deixa de sugerir incisivamente uma estratégia para as relações entre os Estados
Unidos e as nações latino-americanas, dentro da agenda maior que visa à defesa da
civilização ocidental em sua “posição de predomínio sem precedente”:
“estimular a ‘ocidentalização’ da América Latina e, no máximo que for
possível, um estreito alinhamento dos países latino-americanos com o Ocidente”
(Huntington, 1997, 397).
Sob
o ponto de vista do imperialismo e da preservação de uma hegemonia continental
estadunidense, nada pode ser mais coerente, ainda que não exatamente
original. São propostas que também se
afinam com os anseios de muitos dos conservadores hispano-americanos, caribenhos
e brasileiros, interessados em sustentar e sempre que necessário invocar um
poder externo que, em casos extremos, garantirá a segurança física e econômica de suas “elites”
contra as multidões insubordinadas.
Sob
uma perspectiva progressista, contudo, o programa de Huntington deve ser
visceralmente rejeitado. Os
latino-americanos precisam de governos voltados para as demandas das maiorias,
que incentivem a variedade nas parcerias econômicas, adotem diretrizes de
independência nas relações exteriores e manifestem sua oposição às
sucessivas intervenções militares ocidentais na Ásia, na África e na própria América
Latina, hipocritamente mascaradas por bandeiras civilizatórias.
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