quinta-feira, 15 de março de 2012

Revisitando uma agenda conservadora


Samuel Phillips Huntington (1927-2008), economista e cientista político norte-americano, foi uma das figuras que mais exerceram, nas últimas décadas, influência sobre a intelectualidade conservadora em seu país.  Suas pregações são seguidamente mencionadas, em especial, como inspiradoras da política externa estadunidense durante os períodos presidenciais de George Walker Bush (2001-2009).  A principal tese de Huntington, desenvolvida, entre outros trabalhos, no livro O choque de civilizações e a recomposição da Ordem Mundial (Rio de Janeiro: Objetiva, 1997)[1], se estrutura em torno da noção de que, finda a Guerra Fria e sua correspondente polarização ideológica Estados Unidos/União Soviética, a política mundial se reorganizaria “seguindo linhas culturais e civilizacionais”, cabendo agora aos conflitos de classe e aos interesses econômicos um papel secundário (Huntington, 1997, 21).      
Muitas censuras se tornam pertinentes diante das reflexões de Huntington, a começar pelos critérios fluidos que o autor emprega para definir os limites identitários entre as civilizações.  Após apresentar brevemente as opiniões de diversos historiadores e seus respectivos sistemas classificatórios, ele termina por admitir a existência bem nítida de cinco delas (chinesa, japonesa, indiana, islâmica e ocidental), às quais, taticamente (“para nossos propósitos”), podem ser somadas mais duas: a latino-americana e a africana (Huntington, 1997, 50).  A respeito desta última, simplesmente não indica quais seriam seus pilares, limitando-se, depois de destacar as influências do Cristianismo antigo, do Islã e dos colonizadores europeus sobre os povos africanos (além da persistência das “identidades tribais”), a apontar para o crescimento de “uma noção de identidade africana” (Huntington, 1997, 54). 
            Adotando uma visão que superestima o peso do fator religioso na História, Huntington acaba por incorrer em outras falhas; ao reduzir a Guerra da Bósnia a um choque, típico das “linhas de fratura”, entre sérvios ortodoxos, croatas católicos e bósnios muçulmanos (Huntington, 1997, 324), passa ao largo do fato de que, ao longo de décadas de regime socialista na extinta Iugoslávia, houve uma forte difusão do laicismo na região, o que tenderia a provocar, ao contrário, uma amenização das tensões religiosas ancestrais.  Também se torna problemático, nesta linha de análise, explicar como, não muito tempo após os bombardeios da OTAN contra Belgrado (1999), a maioria dos sérvios parece desejar o ingresso na União Europeia ocidentalizante, católica, luterana ou calvinista.  Não faltariam exemplos, sobretudo, de como a distribuição seletiva de alguns milhões de dólares basta para consolidar, entre povos de todas as confissões, projetos políticos antagônicos, que não raro desembocam em guerras civis alimentadas por Estados pertencentes a “outras civilizações”.
            Mas cuidemos, em particular, do que Huntington afirma sobre a América Latina.  Segundo ele, esta civilização “intimamente afiliada ao Ocidente e dividida quanto a se seu lugar é ou não no Ocidente” tem como peculiaridades as influências culturais indígenas, práticas políticas autoritárias e o predomínio quase incontestado, até um passado recente, do Catolicismo, em contraste com as demais áreas ocidentais, que experimentaram o impacto da Reforma.  O autor comete uma grave imprecisão na elaboração de seu panorama, quando coloca ao lado da Argentina, enquanto exemplo de sociedade em que os elementos ameríndios têm menos importância, o Chile (Huntington, 1997, 52), país em que a numerosa comunidade mapuche nunca se submeteu à colonização espanhola e expressivos segmentos, talvez a maioria da população, se identificam como mestiços.    
            Não contesto Huntington no que se refere à premissa de que a América Latina apresenta, numa comparação com a Europa e a América do Norte, mais diferenças do que semelhanças.  As experiências da servidão indígena e da escravidão africana, que em algumas sociedades se estenderam por mais de dez gerações, e as reconstruções singulares do pensamento europeu empreendidas pelos povos dominados foram, sem dúvida, marcantes no cenário regional.  É impossível ignorar, da mesma forma, todas as sobrevivências culturais de matriz ameríndia e africana, expressas desigualmente do Rio Bravo do Norte à Terra do Fogo, porém sempre atestadas e quantificadas em sua relevância por antropólogos, sociólogos e historiadores de múltiplas tendências ideológicas.  O homem europeu, muitas vezes integrado aos contextos coloniais em situação muito diversa da que ocupava no Velho Mundo, também se tornou outro.  Abundam os exemplos, na História do Brasil, de portugueses que passaram a viver como índios e de brancos de procedências variadas que, em circunstâncias desfavoráveis, se refugiaram em quilombos, como o francês que, depois de participar da Cabanagem, veio a morrer na Balaiada, lutando no exército do negro Cosme[2]; no pólo oposto, citaríamos também plebeus rapidamente convertidos em aristocratas. Penso que o próprio autoritarismo acusado por Huntington, em generosa parcela, se deve à percepção, por parte das oligarquias latino-americanas e de seus adeptos na classe média conservadora, de que comandam uma massa de colonizados, portadores de uma mentalidade completamente diversa da sua, cujos interesses são totalmente incompatíveis com os seus.
            Admitindo as diferenças entre Sul e Norte, Huntington desenvolve a partir delas considerações pessimistas.  Uma de suas principais preocupações quanto ao futuro dos Estados Unidos está justamente vinculada ao crescimento acelerado da população de origem hispânica, que ele, sem disfarce, opõe à branca (Huntington, 1997, 256).  O autor não oculta, com relação aos mexicanos, seu temor de que, ao contrário dos membros de outras correntes imigratórias, aqueles resistam à “assimilação”, consolidando, desde a península do Yucatán até o estado de Nevada, uma “sociedade mexicana ininterrupta” (Huntington, 1997, 256-257).  Quando critica as tendências multiculturalistas assumidas pela administração Clinton (1993-2001), Huntington se alinha com os estadistas norte-americanos que recearam, desde a fundação do Estado, a “diversidade racial, sectária, étnica, econômica e cultural”, não hesitando em exibir como exemplo da boa atitude contrária ao multiculturalismo o brutal imperialista Theodore Roosevelt (Huntington, 1997, 389).  Neste quesito, nem o governo do republicano George Herbert Bush (1989-1993) escapa à reprovação, visto que, assim como os rivais democratas, seus integrantes se empenharam no progresso do NAFTA, um “plano de integração econômica multicivilizacional” de resultados duvidosos (Huntington, 1997, 393).
Evidentemente, Huntington não aprecia o mundo de contornos culturais imprecisos em que vivem mexicanos, centro-americanos, andinos e outros, e levanta a bandeira da não-contaminação da América Anglo-Saxônica por estas sociedades algo (ou bastante) indianizadas.  Todavia, ele não deixa de sugerir incisivamente uma estratégia para as relações entre os Estados Unidos e as nações latino-americanas, dentro da agenda maior que visa à defesa da civilização ocidental em sua “posição de predomínio sem precedente”:

“estimular a ‘ocidentalização’ da América Latina e, no máximo que for possível, um estreito alinhamento dos países latino-americanos com o Ocidente” (Huntington, 1997, 397).

            Sob o ponto de vista do imperialismo e da preservação de uma hegemonia continental estadunidense, nada pode ser mais coerente, ainda que não exatamente original.  São propostas que também se afinam com os anseios de muitos dos conservadores hispano-americanos, caribenhos e brasileiros, interessados em sustentar e sempre que necessário invocar um poder externo que, em casos extremos, garantirá a segurança física e econômica de suas “elites” contra as multidões insubordinadas.
            Sob uma perspectiva progressista, contudo, o programa de Huntington deve ser visceralmente rejeitado.  Os latino-americanos precisam de governos voltados para as demandas das maiorias, que incentivem a variedade nas parcerias econômicas, adotem diretrizes de independência nas relações exteriores e manifestem sua oposição às sucessivas intervenções militares ocidentais na Ásia, na África e na própria América Latina, hipocritamente mascaradas por bandeiras civilizatórias.       
           
              
                       
             


[1] A edição original, de 1996, traz o título The clash of civilizations and the remaking of world order.
[2] Ver, a respeito, o livro de Décio Freitas, A miserável revolução das classes infames.  Rio de Janeiro: Record, 2005.

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