1885
O início da legislatura foi agitado. Em dois meses Dantas percebia sua fraqueza, e um voto de desconfiança o derrubava do poder. Poderia ainda dissolver a Câmara, mas o imperador não o apoiou desta vez. Ao chamá-lo para organizar o Gabinete que sucedeu ao de Saraiva, D. Pedro perguntara ao chefe baiano o seu programa. Dantas não vacilara:
- A abolição, majestade.
E Pedro II, bonachão:
- Pois seja, senhor Dantas. Mas se o senhor correr eu o seguro pela aba
do casaco.
(Márcio Tavares D’Amaral (texto). Rodrigues Alves [coleção A vida dos grandes brasileiros]. São Paulo: Editora Três, 1974, p. 51.
Conforme
prometi, hoje me reporto a um segundo vídeo do “herdeiro do trono que não
há”. Prepare mais uma vez, caro leitor,
seu aparelho digestivo, pois a produção é tão ruim quanto a precedente, como
podemos presumir já pelo título, “Dom Bertrand responde sobre a raça negra e a
escravatura”:
É
impossível, e provavelmente indesejável, expulsar todos os mitos do imaginário da
humanidade, mas penso que crer em
Papai Noel depois dos seis anos de idade sempre traz seus
prejuízos. Bertrand incorre exatamente
nisto, ao iniciar a exposição (generosamente abro mão das aspas) com um dos
clichês mais simplórios, infelizmente
muito vulgarizado, de que se tem notícia:
“Perdeu o trono porque libertou os escravos”.
Sim:
o cardeal da TFP faz mesmo coro à matriarca de todas as balelas, sabidamente
produzida por um intransigente escravocrata, o barão de Cotegipe, de que ao
assinar a Lei Áurea a princesa Isabel, por extensão, renunciava à perspectiva
de um Terceiro Reinado. Devo, então, sem correr o risco de escrever quinze ou vinte cansativas páginas, trazer à tona
alguns dados inconvenientes para o Bragança:
1)A Lei Áurea foi uma peça
jurídica debatida no Parlamento e aprovada na Assembleia Geral com cerca de 90%
de votos favoráveis. As manifestações
contrárias partiram, na quase totalidade, dos representantes dos fazendeiros
das áreas mais antigas da cafeicultura fluminense, em acentuada decadência, que
tinham grande percentual do seu patrimônio expresso na propriedade dos escravos
que ainda conseguiam manter. Isabel
poderia ter se negado a sancionar a lei?
Teoricamente sim, mas por que o faria contra a esmagadora maioria da
opinião pública e contra a tendência dominante entre a própria classe política
do país?
2)A vontade política pró-abolição
de Isabel é um dado no mínimo discutível.
Ela não compareceu, por exemplo, ainda que fosse convidada por
lideranças do movimento, à reunião da Confederação Abolicionista do Rio de
Janeiro que foi marcada para o Teatro Polytheama, em agosto de 1887. Para piorar a situação, o gabinete Cotegipe,
que tentava sistematicamente impedir as reuniões públicas (na verdade
proibindo-as), mobilizou a polícia para atacar a plateia. Vencidos os guardas na luta corporal e
corridos a pedradas, o teatro foi invadido por soldados de cavalaria e
infantaria. Os organizadores do evento
desistiram dele para evitar um banho de sangue.
Isabel, que detinha as prerrogativas do Poder Moderador, nada fez contra
o governo arbitrário[1].
3)O propalado abolicionismo de
Pedro II também é muito discutível. Somente
pela Lei do Ventre Livre (28 de setembro de 1871) os escravos “pertencentes à
Nação”, bem como os “dados em usufruto à Coroa”, obtiveram liberdade
formal. Isto significa que, três décadas
depois de coroado, o imperador, tivesse ou não questões de consciência quanto
ao fato, ainda dispunha de mão de obra servil. A posição de Pedro II sobre o fim da
escravidão pode ser melhor compreendida por meio de uma declaração feita por
ele ao jornalista argentino Hector Varella:
“Alguns me atacam com tão clara injustiça, crendo que eu retarde a hora
mais feliz do meu reinado, aquela em que eu pudesse anunciar ao mundo que já
não existe um só escravo em minha pátria e que o último desses desgraçados é
tão livre como eu ... Mas a abolição imediata, hoje, agora, não se poderia
decretar senão consultando as nobres e generosas impressões do coração, de que
participamos todos. Há que prepará-la, para que a liberdade repentina concedida
aos escravos não fira profundamente grandes interesses, que devem ser
respeitados[2]".
Traduzindo
para uma linguagem mais vulgar: “sou intelectualmente a favor da abolição, mas
só a permitirei quando tiver a certeza de que meus ouvidos sensíveis não serão
feridos pelos impropérios de nenhum dos meus conselheiros”. Convinha posar de
esclarecido e progressista em cima do muro.
4)Não há nada de mais incoerente
do que afirmar que os ex-senhores de escravos contrariados derrubaram a
monarquia. O regime sofria com a erosão
de suas bases de apoio há duas décadas, mais precisamente desde que Pedro II, desastradamente,
impôs ao país o gabinete chefiado por Itaboraí, praticamente com respaldo zero
do Parlamento. O próprio Quinze de
Novembro, enquanto evento, foi promovido por setores urbanos.
Para
concluir o assunto, vale, sem desmerecer em nada a atuação dos militantes abolicionistas
incondicionais, aqueles que se expuseram às pauladas da polícia e à
discriminação social dos escravocratas, o parecer de um analista insuspeito de
qualquer radicalismo, Ruy Barbosa (1849-1923):
O escravo teve um papel autonômico na crise terminativa da escravidão.
Abaixo da propaganda multiforme, cuja luz lhe abriu os olhos ao senso íntimo da
iniqüidade, que o vitimava, ele constitui o fator determinante na obra de
redenção de si mesmo. O não quero dos cativos, esse êxodo glorioso da escravaria
paulista, solene, bíblico, divino como os mais belos episódios dos livros
sagrados, foi, para a propriedade servil, entre as dubiedades e tergiversações
do Império, o desengano definitivo[3].
Sigamos com as
bobagens de Bertrand. Ele volta a
biologizar questões que são étnicas e sociais ao comentar sobre o quanto é
“interessante” que Neguinho da Beija-Flor tenha mais “sangue europeu” do que
“sangue africano”. Imaginemos, então,
que no calor de um protesto de rua certo sargento do batalhão de choque aponte
para um homem de pele escura e cabelos encarapinhados e grite para seus
subordinados: “Pau naquele crioulo ali!”.
Sei que isto nunca aconteceu nem aconteceria na democracia racial
brasileira, mas pensem em Bertrand sugerindo à vítima que responda aos perseguidores
nos seguintes termos: “Senhores, eu não sou tão negro assim, meu bisavô era
português!”.
Mais
aberrante ainda é a “tese” sobre a formação do Brasil, tosca até pelos padrões
da República Velha. O “príncipe”
acredita, em 2012, que “raças humanas” têm qualidades psicológicas inatas, da
mesma forma que um pit bull tende a morder os estranhos enquanto um golden
retriever abana a cauda. Não à toa,
nesta categorização cabe ao negro entrar com a força física e a bondade para a
constituição do brasileiro, tal como nas velhas cartilhas que diziam que o
índio indomável fugira da escravidão para as florestas, enquanto o africano
dócil se submetia ao eito.
Quem
segue uma liderança como a de Bertrand de Orléans e Bragança não precisa de
adversários. O monarquismo brasileiro só
pode, com efeito, caber por inteiro em dois vagões de metrô.
[1]
Ver Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves e Humberto Fernandes Machado. O
Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 377/378.
[2]
Citado em Araken
Távora. D. Pedro II e o seu mundo através da
caricatura. Rio de Janeiro: Bloch, 1976.
[3]
Citado em Jacob Gorender. A escravidão
reabilitada. São Paulo: Ática, 1991,
p. 82.
É como se a miscigenação na verdade fosse boa porque, na realidade, o negro ficou "melhor" por tal motivo. Como se pode hoje falar algo desse tipo, e o pior de uma forma publica. Defendendo uma ideia racista como essa.
ResponderExcluirE a "fé dos portugueses" e a "força dos negros", como isso é possível?
O vídeo postado aqui realmente tem um conteúdo que nos leva a pensar até que ponto as pessoas não usam a história para justificar e pautar os próprios preconceitos?
Quem me garante que D. Pedro II disse isso ao conselheiro Dantas? Há algum documento, gravação?
ResponderExcluirGravação não há. Mas note que partiu de uma fonte bastante conservadora.
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