sexta-feira, 1 de março de 2013

Um país que homenageia seus campeões escravagistas

      
                           Joaquim Octavio Nébias (1811-1872), parlamentar paulista contrário à Lei do Ventre Livre 

       O quantitativo da escravatura no Brasil, após a lei (de 1850) que impôs uma proibição efetiva ao tráfico negreiro, diminuiu continuamente.  Salvo raras municipalidades e mesmo assim em períodos específicos, os números somados das mortes e alforrias superaram, ano a ano, os nascimentos de crianças escravas.  Qualquer observador atento às estatísticas, no terceiro quartel do século XIX, seria capaz de prever o fim do cativeiro no país, ainda que a médio prazo.
     Entretanto, as cifras desfavoráveis não desanimaram os partidários do escravismo, que se mobilizaram, numa primeira etapa, para manter o debate sobre o processo de emancipação fora do Parlamento; quando isto se tornou inviável, lutaram para bloquear as medidas pró-abolição ou reduzir sua eficácia aprovando emendas favoráveis aos senhores de escravos.
       Durante os meses de julho, agosto e setembro de 1871, a Câmara dos Deputados e o Senado do Império assistiram ao que talvez tenha sido a maior batalha parlamentar ocorrida no Brasil, dela emergindo a chamada Lei do Ventre Livre.  Os filhos das mulheres escravas não mais acompanhariam a condição jurídica de suas mães, embora se vissem obrigados a prestar serviços aos proprietários delas até os 21 anos de idade.  Os senhores que abrissem mão desta prerrogativa poderiam, em troca de uma indenização de seiscentos mil-réis, determinar sua libertação formal aos oito anos. 
      O Parlamento brasileiro, naquela altura, era inteiramente dominado pelo Partido Conservador, ao qual pertencia o presidente do Conselho de Ministros (chefe de governo), o visconde do Rio Branco.  Mesmo assim, muitos membros das duas Casas parlamentares se rebelaram contra o que consideravam uma afronta à propriedade privada e, pelo menos no discurso,  uma irresponsabilidade política que resultaria no colapso da lavoura cafeeira, principal atividade econômica do país.  Não transcreverei aqui os longos debates de 1871.  Os que desejarem lê-los na íntegra podem facilmente iniciar uma busca com a expressão "Anais da Câmara", tendo acesso em poucos cliques aos velhos livros do Poder Legislativo.
     Conheço suficientemente a amplitude que a propriedade escrava alcançou no Brasil para  querer construir sobre o nome de cada homem que ao longo de sua vida herdou ou comprou um par de cativos a imagem de um vilão de novela como o Leôncio de A Escrava Isaura.  O que pretendo salientar é a existência, numa avançada altura do século XIX, de uma corrente política disposta a quase tudo para estender pelo maior tempo possível a existência da escravidão, agora restrita, no continente americano, ao Império bragantino e à colônia espanhola de Cuba.  Seus adeptos, na quase totalidade, pertenciam às províncias cafeicultoras do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo.  Não é difícil identificá-los nominalmente; os opositores do Ventre Livre, vencidos na Câmara por 61 a 35, constam de várias obras de referência.  Adotarei como fonte um parágrafo do historiador monarquista Brasil Gérson (1904-1981):

"Mas, dentre os votantes, quais os contrários de maior renome político? O Conde de Baependi, Belisário de Sousa, Ferreira Viana, Duque Estrada Teixeira, Paulino Soares de Sousa, Pereira da Silva, Diogo Pereira de Vasconcelos, Perdigão Malheiros, Andrade Figueira, Ferreira da Veiga (sucessor de Evaristo, também não abolicionista, na sua cadeira de deputado por Minas), Jerônimo Penido, Gama Cerqueira, Joaquim Nébias, Antônio Prado e Rodrigo Silva- e com a ressalva de que os dois últimos, conservadores paulistas, moderados, depois mudariam de atitude, e convertendo-se Rodrigo Silva, aliás, no próprio Ministro da Agricultura, em 88, do Gabinete João Alfredo, o da Lei Áurea, e Antônio Prado, futuro senador, no grande líder, com o jornalista Antônio Bento, do abolicionismo em São Paulo". (A escravidão no Império.  Rio de Janeiro: Pallas, 1975, p. 215) 

           
         Sublinhei os nomes de alguns daqueles deputados gerais para destacar que o Estado brasileiro foi pródigo em reconhecer seus presumidos serviços à nação, como notamos após uma breve busca de imagens, cujo resultado exponho abaixo:   

Rua Conselheiro Pereira da Silva, em Laranjeiras, cidade do Rio de Janeiro

                                                Rua Andrade Figueira, em Barra Mansa (RJ)


                                        Rua Conde de Baependi, no Flamengo, cidade do Rio de Janeiro

                                                                                
                                     
                                              Escola Técnica Ferreira Viana, no Rio de Janeiro


                                                                  Avenida Conselheiro Nébias, em Santos (SP) 

                                 
                                      
Rua Perdigão Malheiros, no bairro Coração de Jesus, em Belo Horizonte



                                                          


           O Império escravista, naturalmente, reconheceu o status de seus políticos escravagistas, mesmo que estes, em algumas circunstâncias, tivessem rejeitado certas razões de Estado.  Não existiam ainda as leis que impedem os poderosos de ser homenageados em vida, dando seus nomes a logradouros públicos ou a estabelecimentos sob gestão estatal.  Porém, a República que sucedeu à Monarquia decrépita reorganizando a ordem oligárquica não reparou tais distorções.  Os campeões do escravagismo permanecem nas placas de bairros nobres ou populares, cidades de variados tamanhos, ruas, avenidas e escolas públicas de todos os níveis.  O passado, como muitas vezes já foi dito, não conhece o seu lugar, e frequentemente se mostra incômodo.         





5 comentários:

  1. Só faltou explicitar a sua proposta, a qual, tendo-se em conta o chorume que derrama nessas páginas, deve ser algo do tipo: "troquemos todos os nomes de ruas por comissários do povo e secretários do Partido".

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  2. Como de hábito, vemos mais um conservador "refutando" o que nunca foi dito. Agradeço se a criatura me mostrar, e aos demais leitores, onde preguei o controle da sociedade por uma burocracia partidária. Mas, por falar em povo, não seria má ideia que os moradores de cada logradouro decidissem a quem querem homenagear, nisto incluídos os completos desconhecidos. Obviamente, para o esquema funcionar seria preciso afastar qualquer modelo de "poder paralelo".

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  3. O esquema proposto por você já existe, caso não saiba. Basta você procurar seu vereador e sugerir a ele que apresente à Câmara dos Vereadores uma proposta de alteração de nome de logradouro. Simples assim. Daqui a algum tempo as ruas serão trocadas e nomes como José Dirceu de Oliveira, Luís Inácio Lula da Silva e Aloisio Mercadante darão nomes à nossas ruas e avenidas. No que não é de todo ruim: pelo menos servem para lembrar a herança maldita que deixaram. Ao menos eu via os nomes das ruas de São Paulo e me dava o trabalho de pesquisar quem as homenageava: Quintino Bocaiuva, Marquês de Paranaguá, Marquês de São Vicente, Barão de Itu, etc. Alguns participaram da Guerra do Paraguai, outros foram Conselheiros, enfim. As ruas ensinam história.

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  4. Quanta acidez! Eu não enalteci o José Dirceu, mas alguém poderia dizer que você se irritou com minhas investigações inconvenientes e veio defender os escravagistas.

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  5. José de Alencar era escravista tbm. Vamos retirar ruas que ostentam seu nome...

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