sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Santo Domingo, 1965: crônica sobre uma derrota honrosa


         Estive a passeio, de 25 de dezembro a 1 de janeiro, na República Dominicana, nação de pequenas dimensões (pouco mais de 48 mil km², ligeiramente maior do que o estado do Espírito Santo), que divide o espaço territorial da ilha de São Domingos com o Haiti.  País de gente bastante hospitaleira, dotado de um patrimônio histórico único, resultante do fato de ter sido a primeira região das Américas a cair sob domínio europeu.  Fiquei hospedado na Zona Colonial de Santo Domingo, um bairro turístico no qual podemos visitar e fotografar, ao longo de poucas horas de caminhada, dezenas de construções, em regra bem cuidadas, erguidas no século XVI. São fortificações, igrejas, casas de antigos nobres e das autoridades metropolitanas, por vezes transformadas em hotéis que conservam muito das características originais.
        Esperava encontrar uma terra castigada por cinco séculos de economia de plantation. Felizmente, estava enganado por completo: ao cruzar as estradas dominicanas em várias direções, observei uma natureza exuberante, bosques por toda parte, parques nacionais exibidos com orgulho pelos taxistas e guias turísticos.  Há muito tempo a renda do turismo e as remessas de dinheiro feitas pelos dominicanos que vivem no exterior superam as divisas geradas pela produção de charutos e de derivados da cana. Não realizei, contudo, o desejo relativamente simples de comprar sementes de plantas típicas do Caribe e levá-las para meu quintal de Maricá (RJ). Pelo contrário: ali predominam as mesmas árvores que vejo aos milhares na Região dos Lagos fluminense, como mangueiras, cajazeiras e amendoeiras, estas últimas com a denominação local de almendras de la playa.  Para beber suco de acerola, é preciso pedir cereza, e o maracujá costuma atender por chinola, mas julguei tais particularidades insuficientes para colocar em prática uma operação de "contrabando". 
       A população, em sua maior parte, é visivelmente pobre e suporta graves problemas de infraestrutura; nos locais afastados dos circuitos turísticos, tive a sensação de andar pelos bairros da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense mais abandonados pelo poder público.  A música nacional desfruta de um prestígio admirável: das casas e lojas, os CDs de salsa, merengue e bachata promovem uma ambientação ininterrupta dos visitantes aos sons caribenhos. Pelas ruas de Santo Domingo, ouve-se de alguns carros tunados funk no volume máximo; mesmo assim, canta-se em espanhol, e as temáticas são locais. 
            O dominicano típico, em sua aparência física, é indistinguível do brasileiro, e do carioca em especial. Declarei com sinceridade ao taxista Ramón, e a outras pessoas que me prestaram bons serviços, que "no me siento extranjero en tu país".  Ouvi também, mais de uma vez, que somente o acento portugués denuncia aos dominicanos a presença de um brasileiro. Um sorveteiro chegou a me perguntar se minha mulher, que estava a uns quinze metros de distância, era sua patrícia.
             Diversões à parte, o historiador participou da viagem.  Visitei, perto da virada do ano, a Fortaleza Ozama, imponente castelo espanhol que o tirano Rafael Leónidas Trujillo Molina (1891-1961) utilizou como cárcere de presos políticos e criminosos comuns.  Ainda se mantém a haste metálica em que os torturadores trujillistas, como se fossem agentes da Inquisição ressuscitados, encaixavam o garrote vil empregado para estrangular suas vítimas.  Hoje ela sustenta apenas uma bandeira nacional. 

  

Fortaleza Ozama


         Um veterano guia, Antonio Mejías, narrava com segurança e muitos detalhes histórias relacionadas a cada cômodo da fortaleza.  Ao término da exposição, confidenciei a ele que apenas uma coisa não havia me agradado em Santo Domingo: a virtual ausência de livrarias e bancas de jornal, que me impedira, até aquele momento, de investigar a História dominicana. Mejías, então, afirmou que eu estava no lugar certo, e me convidou a comparecer à recepção, onde guardava meio escondidas diversas publicações, cobrindo temas que se estendiam desde as eras pré-colombianas até a contemporaneidade.  Tudo era muito interessante, mas como as verbas reservadas para a excursão já se aproximavam do fim, optei por um livro editado em 2009: La guerra de locutores, de José Antonio Núñez Fernández. 



       Não é uma obra acadêmica.  O octogenário Núñez, nascido em 1928 e retratado em primeiro plano na capa, se destacou entre dezenas de locutores das rádios dominicanas, principal instrumento de formação de opinião no país, que conclamaram a população civil e os militares nacionalistas à resistência contra a invasão ordenada por Lyndon Johnson em 1965. Entre numerosas experiências pessoais, ele se reporta a elementos de um contexto histórico que não é de todo estranho aos nossos manuais de Ensino Médio, onde por vezes figura brevemente como ilustração do período da Guerra Fria. 
         As eleições que se seguiram à morte do ditador Trujillo foram vencidas pelo intelectual reformista Juan Bosch, cuja posse na presidência, em 27 de fevereiro de 1963, contou com a presença do próprio Lyndon Johnson, vice de John Kennedy.  Classificado pela CIA como aliado dos Estados Unidos, Bosch tomou, porém, iniciativas que desagradaram trujillistas e representantes das multinacionais: nacionalizou terras da família Trujillo (nas quais promoveu assentamentos de camponeses), estatizou parte dos lucros da produção açucareira, cancelou um contrato com a Standard Oil e tentou combater a corrupção existente nas Forças Armadas. 
       Antes de completar sete meses de governo, precisamente em 25 de setembro de 1963, Juan Bosch foi derrubado por um golpe de Estado a que Núñez se refere depreciativamente como Madrugonazo, empreendido por oficiais militares que contavam com o apoio das forças políticas derrotadas no pleito do ano anterior e de algumas empresas norte-americanas.  O Triunvirato golpista (outra expressão do autor), entretanto, não conseguiu se legitimar no poder, e sua crescente impopularidade desembocou, no mês de abril de 1965, em uma Revolução cuja proposta era promover a volta de Bosch, a quem caberia concluir o mandato obtido nas urnas. Os autoproclamados constitucionalistas bateram o Exército regular em três dias. Logo em seguida, após convocação extraordinária da Organização dos Estados Americanos (OEA), 42 mil soldados, em sua maioria infantes da Marinha dos Estados Unidos, mas também brasileiros, hondurenhos e paraguaios, invadiram a República Dominicana e esmagaram o constitucionalismo.    
         Podemos dizer, com margem integral de acerto, que uma ampla maioria dos brasileiros ignora por inteiro a memória deste desastre.  Para grande parte dos demais, os que dele tomaram conhecimento pelos livros didáticos, o processo que desembocou na invasão de 1965 talvez pareça um episódio monótono, parte indiferenciada de um esquema geral:

1- O eleitorado de um país latino-americano conduz à presidência um político de tendências reformistas, acusado demagogicamente por seus inimigos de ser pró-soviético.
2- Militares de direita, estimulados por conspiradores civis, depõem o presidente, com apoio tácito ou aberto do governo norte-americano e dos dirigentes das multinacionais ali instaladas.
3- O povo se submete, em parte por estar habituado ao domínio oligárquico, em parte por saber que os generais conservadores não pouparão sangue na defesa do status quo.
4- As eventuais resistências são sufocadas "no berço", com o auxílio de assessores norte-americanos ou, no limite, com o apelo aos marines.

          Certa vez, um professor de Sociologia afirmou, ao me orientar para uma prova, que "todo esquema é empobrecedor", mesmo que útil em ocasiões específicas. Uma descrição factual da crise dominicana de 1965, ainda que tecnicamente exata, constitui exemplo perfeito desta regra.  Implica, entre outros males, no esquecimento de que muitos dos militares da República Dominicana, ao invés de cumprirem o papel de reprimir seu próprio povo, a ele se juntaram numa resistência cujas chances de sucesso eram inversamente proporcionais à sua coragem. Núñez Fernández cita em trechos do livro um bom número de constitucionalistas fardados, entre eles dois de seus parentes, o coronel Emilio Ludovino Fernández e o tenente-coronel José Mauricio Fernández.  O líder mais destacado do movimento, coronel  Francisco Alberto Caamaño Denó (1932-1973), chegou a ser eleito presidente constitucional pelos revolucionários. Atualmente é reverenciado como herói pelos segmentos populares de seu país e homenageado com uma estátua metálica de mais de três metros de altura na cidade de Santo Domingo.  




                                                                    Caamaño Denó
                

                 
                     
          Não encontraremos, nas fontes tradicionais, qualquer menção à intrepidez dos locutores dominicanos, alguns dos quais chegaram a ser presos pelos golpistas em 24 de abril, tiveram como certo, por algumas horas, que enfrentariam o pelotão de fuzilamento, mas, recuperando a liberdade no dia seguinte, mantiveram seu apoio ativo ao constitucionalismo. A narrativa tradicional oculta a adesão de uma imensa parcela da população, desprovida de qualquer treinamento militar, à luta pela soberania.  Revelá-la, com riqueza de imagens e depoimentos, é o maior mérito da obra de Núñez Fernández.  Mais de quatro mil dominicanos morreram na guerra.  Eu havia caminhado, antes da leitura, por um cenário de intensos tiroteios, a charmosa calle El Conde, sem imaginar por um segundo o que ali acontecera cinquenta anos atrás.  La guerra de locutores, se bem traduzida e disponibilizada ao chamado grande público, seria ótima opção, numa quadra em que Veja, O Globo e veículos menos votados pregam, como solução para as mazelas do Brasil, um salto no colo do Tio Sam.   


  
                                              
                         

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Notas sobre a velha falácia da legitimidade da "Redentora" e seus novos papagaios de pirata




          Ontem à noite, durante uma breve investigação a respeito do que se discutia em algumas comunidades políticas das redes sociais, tive minha atenção despertada por mais um dos memes “históricos” cretinos que poluem a Internet.  À primeira vista, tratava-se de uma apologia nada original, e de um primarismo gritante, à ditadura civil-militar de 1964.  Antecipo desculpas aos donos de olhos mais sensíveis por reproduzi-la logo abaixo.



       Muito mais do que o tosco conteúdo, o que me surpreendeu foi o tom triunfalista das pessoas que se empenhavam em difundir a peça de propaganda, dando a impressão de que se julgavam portadoras de um segredo de Estado maliciosamente escondido de 99,99% da população. Ficava evidente, para qualquer observador, que todos acreditavam cegamente no que diziam, tendo sua crença reforçada por várias manifestações, em geral quase imediatas, de solidariedade.  
           Mantenho, em casos desta natureza, a convicção de que nenhum formador de opinião deve ser subestimado.  A atitude contrária, de soberba diante da manipulação grosseira e do discurso inconsistente, conduz facilmente à elevação de figuras como Leandro Narloch à categoria de especialistas em História e ao descrédito da pesquisa acadêmica.
            Não é suficiente atribuir à besteira popularizada o rótulo de besteira, ou qualificar como idiota quem a produziu, sendo, aliás, bastante significativo o fato de que quase sempre as pérolas de tal gênero emergem do anonimato. É necessário mostrar pacientemente onde está a idiotice. Poderíamos, em primeiro lugar, sugerir aos interessados a consulta aos anais eletrônicos da Câmara  dos Deputados (http://imagem.camara.gov.br/diarios.asp) e do Senado (http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/asp/AP_Apresentacao.asp), para que se constate que, apesar do conservadorismo que predominava no Congresso Nacional nos primeiros meses de 1964, jamais ocorreu a suposta invocação oficial da quartelada.  Isto não impede, é claro, que sejam localizadas naquelas páginas falas golpistas, em geral vindas da minoria udenista, coisa que aponta mais para a vocação antidemocrática da maior parte da direita brasileira do que para a legitimidade do processo que levou à derrubada do presidente Goulart.
           Para quem não pode ou não pretende gastar muito tempo na busca, vale a descrição sucinta e precisa do brasilianista Thomas Skidmore, que não deixa dúvida de que os parlamentares golpistas formavam uma minoria:          
               

João Goulart foi deposto por uma revolta militar.  Sua fuga não tinha sido o resultado de ação da elite política civil.  Ao contrário, os oponentes de Goulart no Congresso sequer haviam tentado procedimentos de impeachment, pois sabiam não contar com os votos necessários para vencer um tal teste, exatamente como os antigetulistas não tinham votos suficientes em 1954.  Embora a maioria dos congressistas nutrisse profundas suspeitas sobre as intenções de Goulart, não se decidiam a embargá-lo segundo os fundamentos previstos na Constituição.  Tal relutância nada tinha de estranhável.  Como políticos profissionais, receavam o que poderia vir na esteira de um impeachment.  Em consequência, não havia um só líder congressista do centro disposto a encabeçar um movimento para impedir o presidente.  E os militantes da UDN favoráveis a tal movimento, como Bilac Pinto, eram figuras suspeitas para a liderança da maioria, constituída de próceres do PSD, temerosos de que o afastamento de Goulart pudesse resultar num expurgo geral da "camarilha" do partido¹.


         Outra prova cabal de que o golpe nunca poderia ter sido desfechado por iniciativa (ou com a conivência) do Poder Legislativo é o fato de que a ação militar apresentou aspectos de improviso, visto que teve início antes do momento planejado pelo principal líder dos conspiradores.  Também é afrontosa à inteligência de qualquer indivíduo com mais de dois pares de neurônios ativos a hipótese de que um governo sustentado por dois partidos grandes, e seu aparato militar, possam ser apanhados sem qualquer capacidade de reação por um movimento deflagrado a partir dos ritos previstos pela Constituição.  
                                                  

No dia 28 de março de 1964, o governador José Magalhães Pinto, acompanhado pelo coronel José Geraldo de Oliveira, comandante da Polícia Militar de Minas Gerais, dirigiu-se a Juiz de Fora e lá se encontrou com o marechal Odylio Denys e os generais Olympio Mourão Filho e Carlos Luiz Guedes, decidindo marcar a data da sedição, à revelia de Castelo Branco, para o dia 30².


            O autor do meme, ou algum de seus cúmplices, até poderia alegar que não se referiu exatamente ao ato da deposição em si, mas ao reconhecimento dos governos que se seguiram. Mas isto seria comparável a achar legitimidade, ou espontaneidade, na ação da vítima de uma "saidinha" de banco que entrega sua senha aos assaltantes sob a mira de uma arma.  Não existia, em abril de 1964, nada que pudéssemos chamar de "margem de independência", à disposição dos congressistas:   

O presidente interino, Ranieri Mazzilli, estava de fato subordinado a uma junta militar que se proclamara Alto Comando da Revolução, constituída pelo general Artur da Costa e Silva, pelo almirante Augusto Rademaker e pelo brigadeiro Correia de Mello.  Propondo-se a "restaurar a legalidade" e "eliminar o perigo da subversão", os novos detentores do poder baixaram a 9 de abril o ato institucional, que passaria mais tarde a ser conhecido por AI-1, em virtude da decretação de outros atos institucionais.  O ato instituiu a eleição indireta para a Presidência da República, transformando o Congresso já castrado pelas primeiras cassações de mandatos e subordinado aos novos mecanismos de exceção em dócil colégio eleitoral³.
             
             
          Não obstante a notória simpatia do presidente do Senado pelos golpistas, com os quais há muito se alinhara, foi preciso colocar em execução uma manobra absurdamente anticonstitucional para dar capa de legalidade à ditadura que começava a se instalar:


Do ponto de vista político-institucional, o golpe se consumou na madrugada de 2 de abril: violando todas as normas constitucionais (uma vez que o presidente da República estava no território nacional e não renunciara), o presidente do Senado Federal, Auro de Moura Andrade, declarou a vacância da Presidência da República e o lugar de Jango foi usurpado por Ranieri Mazzilli (a mesma figura que, em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, os golpistas militares quiseram fazer "presidente4").

           
       Por fim, digo que basta um pouco de raciocínio lógico para concluir que a única opção disponível naquele momento para os políticos profissionais que ainda sobreviviam em um Parlamento sob intervenção, sobretudo os velhos pessedistas, seria o abaixar de orelhas.  Uma eventual postura de repulsa resultaria em cassações em série e no fechamento da Casa.            


No dia seguinte, 10 de abril, o "Supremo Comando Revolucionário" publicou a primeira lista de brasileiros que tinham mandatos cassados e/ou seus direitos políticos suspensos por dez anos.  Um dia depois (11 de abril), um Congresso Nacional mutilado e sob ameaça de novas cassações e baioneta, "elegeu" para a presidência da República o marechal Castelo Branco e, para a vice-presidência, José Maria Alkmim, velho político mineiro, um dos fundadores do PSD, ex-ministro da Fazenda de Kubitschek e que, na oposição a Jango, aliara-se à UDN5.


         A célebre onda conservadora que assola o universo virtual brasileiro, embora não se limite a este objetivo, se configura em boa parte como uma tentativa de conquista dos segmentos que foram denominados pela mídia, nos últimos anos, como "nova classe média".  São milhões de pessoas que, apesar de terem ampliado seu acesso a bens, serviços e informação, em alguns casos abrindo caminho rumo às universidades, ainda padecem de uma crônica escassez de escolaridade real, agravada pelo perfil oligárquico dos meios de comunicação.  Isto favorece, entre incontáveis expressões de reacionarismo, a proliferação dos memes "bolsonáricos", que nada mais são do que vulgarizações extremas de teses já superficiais e mal intencionadas em sua origem.
         A esquerda não pode se esquivar deste combate, sob pena de se ver, em futuro próximo, carente de qualquer projeto político viável.    


Notas:

1- Thomas Skidmore.  Brasil: de Getúlio a Castelo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 370.

2- Luiz Alberto Moniz Bandeira.  O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964.  Rio de Janeiro: Revan; Brasília: EdUnb, 2001, p. 171.

3- Lincoln de Abreu Penna.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 266.

4- José Paulo Netto.  Pequena história da ditadura brasileira.  São Paulo: Cortez, 2014, p. 69.

5- Idem, p. 72.






  

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A história de Matias


            

            O escravo "pardo" Matias, nascido em 1809 e batizado na freguesia carioca de São José, era filho da "crioula" Maria.  Ambos pertenciam originalmente a João Coelho Marinho, homem casado com D. Francisca das Chagas.  Quando mandou lavrar testamento, em 1824, Francisca determinou que a partir de sua morte Matias se tornaria liberto, sendo o valor do jovem descontado de seu quinhão na sociedade conjugal.  Antes disto, entretanto, o casal entrou em um período de brigas que resultou em ação de divórcio.  Tendo Matias na conta de "vadio", o senhor decidiu vendê-lo em 1826.  Após conhecer diversos donos, o escravo foi comprado pelo bispo Conde de Irajá, em 1840, mas este não seria seu último destino no cativeiro; em 1847, passou das mãos do bispo às de Francisco de Sales Torres Homem, na época um jornalista liberal que ostentava os diplomas de médico e advogado¹.
         Fugindo da casa de Torres Homem em maio de 1848, Matias obteve uma certidão da verba testamentária de sua antiga senhora Francisca das Chagas, documento que confirmava a promessa de alforria.  Logo depois, buscou a Justiça na intenção de ratificar a condição social pretendida, e recebeu um mandado de manutenção de sua liberdade. Alguns anos mais tarde, porém, Torres Homem tentou resgatar o que ainda entendia como sua propriedade, e deu início a uma batalha judicial, no princípio desfavorável a Matias.  O juiz de primeira instância encarregado do caso compreendeu que a venda efetuada por João Coelho Marinho revogava automaticamente a verba testamentária estabelecida pela esposa.  Matias escapou de uma apreensão imediata exibindo o mandado de manutenção aos oficiais de Justiça, mas tudo indicava que a vitória final caberia a Torres Homem.  Este, surpreendentemente, procurou o juiz desembargador do Tribunal da Relação, que julgaria o recurso à sentença inicial, e declarou, no dia 1º de setembro de 1852, que abria mão de seus direitos, de maneira que "o apelante ficasse livre e gozasse de sua plena liberdade, como se nascesse de ventre livre²".  
          Provavelmente, mais de um fator contribuiu para a desistência de Torres Homem.  Aos 43 anos, Matias se apresentava, segundo a lógica do mercado de escravos do Rio de Janeiro, como um trabalhador velho, com valor em queda constante, mesmo que se conservasse vigoroso. Devemos também considerar que seu último senhor, filho do padre Apolinário Torres Homem, tinha como mãe, conforme as palavras do também padre João Manuel de Carvalho, "uma preta quitandeira que estacionava no largo do Rosário para fazer o seu negócio³". Talvez Torres Homem, durante o longo tempo de que dispôs para refletir sobre a querela, houvesse concluído que existia desumanidade em atirar de volta à escravidão uma pessoa cujo histórico familiar continha semelhanças com o dele próprio.  Aliás, é igualmente possível que Matias, ao tomar a decisão radical de fugir e tentar viver como livre, tenha antes experimentado uma ampliação de seu sentimento de revolta, ao se notar sob o jugo de um senhor de cor semelhante à sua e filho de mãe nascida escrava.   
        Além de tudo, e principalmente, Matias era um homem que não reconhecia qualquer legitimidade em seu cativeiro.  Apegado à antiga promessa de liberdade, constituiria um risco permanente para qualquer proprietário, pela disposição de fugir, pela falta de ânimo para trabalhar, pela possibilidade concreta de um dia empregar a violência física no intuito de se afirmar como livre.  Nada disto escaparia da percepção de um intelectual do porte de Francisco de Sales Torres Homem. 
         A organização socioeconômica escravista foi extinta há bem mais de um século.  Todavia, não pode ser tratada como um "tecido morto", como quer parte da historiografia brasileira contemporânea. Muitos de seus elementos ideológicos foram incorporados pela ordem burguesa que a sucedeu, em particular uma hierarquia étnica que impõe, além da desvalorização da vida do negro, a expectativa quase generalizada de que, quanto mais a aparência de uma pessoa se aproxime dos fenótipos africanos, menores sejam sua compreensão do mundo real, sua capacidade de desempenhar tarefas intelectuais, e mesmo sua confiabilidade no terreno das relações pessoais.
          É tarefa essencial para todos os que pensam à esquerda desmistificar e esvaziar na maior medida possível, com todos os meios ao seu alcance, estes lugares comuns e seus desdobramentos no cotidiano, com a mesma intensidade que, consensualmente, atribuímos à necessidade de combater as hierarquias de classe e gênero.  Ainda vivenciamos, de forma muitas vezes escandalosa, o que Domenico Losurdo definiu precisamente como a "tríplice discriminação" que caracteriza as sociedades capitalistas.  Um capitalismo sem a aceitação tácita da maioria do poder do burguês-conservador-branco-heterossexual-proprietário, se não desmoronasse de imediato, pareceria uma mesa de jantar com as pernas serradas em quase todo o seu diâmetro, mantida de pé a duras penas pelas forças mais diretamente interessadas, mas sujeita à queda com um simples esbarrão.  
       Não importando as restrições que a grande mídia e os teóricos conformistas queiram aplicar às nossas reflexões contestatórias, a título de "limite civilizatório" ou algo ainda mais cínico, é preciso prosseguir.  É preciso negar, a todo momento, o caráter supostamente natural, ou espontâneo, de relações que foram construídas na História e nada tiveram, ou têm, de inevitáveis.  Uma esquerda que venha a se acomodar, no todo ou em parte, à "tríplice discriminação", não será esquerda de fato, a não ser no discurso dos anticomunistas histéricos; na melhor das hipóteses, uma aristocracia generosa, como o PSDB da Constituinte de 1988, transfigurado pelos fatos da década seguinte.                                                      
            
Notas:

1- Ver Sidney Chalhoub.  A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista.  São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 268-269. 
2- Idem, p. 268 a 270.
3- Cf. R. Magalhães Júnior.  Três panfletários do Segundo Reinado.  São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, p. 6-7.