Estive a passeio, de 25 de dezembro a 1 de janeiro, na República Dominicana, nação de pequenas dimensões (pouco mais de 48 mil km², ligeiramente maior do que o estado do Espírito Santo), que divide o espaço territorial da ilha de São Domingos com o Haiti. País de gente bastante hospitaleira, dotado de um patrimônio histórico único, resultante do fato de ter sido a primeira região das Américas a cair sob domínio europeu. Fiquei hospedado na Zona Colonial de Santo Domingo, um bairro turístico no qual podemos visitar e fotografar, ao longo de poucas horas de caminhada, dezenas de construções, em regra bem cuidadas, erguidas no século XVI. São fortificações, igrejas, casas de antigos nobres e das autoridades metropolitanas, por vezes transformadas em hotéis que conservam muito das características originais.
Esperava encontrar uma terra castigada por cinco séculos de economia de plantation. Felizmente, estava enganado por completo: ao cruzar as estradas dominicanas em várias direções, observei uma natureza exuberante, bosques por toda parte, parques nacionais exibidos com orgulho pelos taxistas e guias turísticos. Há muito tempo a renda do turismo e as remessas de dinheiro feitas pelos dominicanos que vivem no exterior superam as divisas geradas pela produção de charutos e de derivados da cana. Não realizei, contudo, o desejo relativamente simples de comprar sementes de plantas típicas do Caribe e levá-las para meu quintal de Maricá (RJ). Pelo contrário: ali predominam as mesmas árvores que vejo aos milhares na Região dos Lagos fluminense, como mangueiras, cajazeiras e amendoeiras, estas últimas com a denominação local de almendras de la playa. Para beber suco de acerola, é preciso pedir cereza, e o maracujá costuma atender por chinola, mas julguei tais particularidades insuficientes para colocar em prática uma operação de "contrabando".
A população, em sua maior parte, é visivelmente pobre e suporta graves problemas de infraestrutura; nos locais afastados dos circuitos turísticos, tive a sensação de andar pelos bairros da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense mais abandonados pelo poder público. A música nacional desfruta de um prestígio admirável: das casas e lojas, os CDs de salsa, merengue e bachata promovem uma ambientação ininterrupta dos visitantes aos sons caribenhos. Pelas ruas de Santo Domingo, ouve-se de alguns carros tunados funk no volume máximo; mesmo assim, canta-se em espanhol, e as temáticas são locais.
O dominicano típico, em sua aparência física, é indistinguível do brasileiro, e do carioca em especial. Declarei com sinceridade ao taxista Ramón, e a outras pessoas que me prestaram bons serviços, que "no me siento extranjero en tu país". Ouvi também, mais de uma vez, que somente o acento portugués denuncia aos dominicanos a presença de um brasileiro. Um sorveteiro chegou a me perguntar se minha mulher, que estava a uns quinze metros de distância, era sua patrícia.
Diversões à parte, o historiador participou da viagem. Visitei, perto da virada do ano, a Fortaleza Ozama, imponente castelo espanhol que o tirano Rafael Leónidas Trujillo Molina (1891-1961) utilizou como cárcere de presos políticos e criminosos comuns. Ainda se mantém a haste metálica em que os torturadores trujillistas, como se fossem agentes da Inquisição ressuscitados, encaixavam o garrote vil empregado para estrangular suas vítimas. Hoje ela sustenta apenas uma bandeira nacional.
Fortaleza Ozama
Um veterano guia, Antonio Mejías, narrava com segurança e muitos detalhes histórias relacionadas a cada cômodo da fortaleza. Ao término da exposição, confidenciei a ele que apenas uma coisa não havia me agradado em Santo Domingo: a virtual ausência de livrarias e bancas de jornal, que me impedira, até aquele momento, de investigar a História dominicana. Mejías, então, afirmou que eu estava no lugar certo, e me convidou a comparecer à recepção, onde guardava meio escondidas diversas publicações, cobrindo temas que se estendiam desde as eras pré-colombianas até a contemporaneidade. Tudo era muito interessante, mas como as verbas reservadas para a excursão já se aproximavam do fim, optei por um livro editado em 2009: La guerra de locutores, de José Antonio Núñez Fernández.
Não é uma obra acadêmica. O octogenário Núñez, nascido em 1928 e retratado em primeiro plano na capa, se destacou entre dezenas de locutores das rádios dominicanas, principal instrumento de formação de opinião no país, que conclamaram a população civil e os militares nacionalistas à resistência contra a invasão ordenada por Lyndon Johnson em 1965. Entre numerosas experiências pessoais, ele se reporta a elementos de um contexto histórico que não é de todo estranho aos nossos manuais de Ensino Médio, onde por vezes figura brevemente como ilustração do período da Guerra Fria.
As eleições que se seguiram à morte do ditador Trujillo foram vencidas pelo intelectual reformista Juan Bosch, cuja posse na presidência, em 27 de fevereiro de 1963, contou com a presença do próprio Lyndon Johnson, vice de John Kennedy. Classificado pela CIA como aliado dos Estados Unidos, Bosch tomou, porém, iniciativas que desagradaram trujillistas e representantes das multinacionais: nacionalizou terras da família Trujillo (nas quais promoveu assentamentos de camponeses), estatizou parte dos lucros da produção açucareira, cancelou um contrato com a Standard Oil e tentou combater a corrupção existente nas Forças Armadas.
Antes de completar sete meses de governo, precisamente em 25 de setembro de 1963, Juan Bosch foi derrubado por um golpe de Estado a que Núñez se refere depreciativamente como Madrugonazo, empreendido por oficiais militares que contavam com o apoio das forças políticas derrotadas no pleito do ano anterior e de algumas empresas norte-americanas. O Triunvirato golpista (outra expressão do autor), entretanto, não conseguiu se legitimar no poder, e sua crescente impopularidade desembocou, no mês de abril de 1965, em uma Revolução cuja proposta era promover a volta de Bosch, a quem caberia concluir o mandato obtido nas urnas. Os autoproclamados constitucionalistas bateram o Exército regular em três dias. Logo em seguida, após convocação extraordinária da Organização dos Estados Americanos (OEA), 42 mil soldados, em sua maioria infantes da Marinha dos Estados Unidos, mas também brasileiros, hondurenhos e paraguaios, invadiram a República Dominicana e esmagaram o constitucionalismo.
Podemos dizer, com margem integral de acerto, que uma ampla maioria dos brasileiros ignora por inteiro a memória deste desastre. Para grande parte dos demais, os que dele tomaram conhecimento pelos livros didáticos, o processo que desembocou na invasão de 1965 talvez pareça um episódio monótono, parte indiferenciada de um esquema geral:
1- O eleitorado de um país latino-americano conduz à presidência um político de tendências reformistas, acusado demagogicamente por seus inimigos de ser pró-soviético.
2- Militares de direita, estimulados por conspiradores civis, depõem o presidente, com apoio tácito ou aberto do governo norte-americano e dos dirigentes das multinacionais ali instaladas.
3- O povo se submete, em parte por estar habituado ao domínio oligárquico, em parte por saber que os generais conservadores não pouparão sangue na defesa do status quo.
4- As eventuais resistências são sufocadas "no berço", com o auxílio de assessores norte-americanos ou, no limite, com o apelo aos marines.
Certa vez, um professor de Sociologia afirmou, ao me orientar para uma prova, que "todo esquema é empobrecedor", mesmo que útil em ocasiões específicas. Uma descrição factual da crise dominicana de 1965, ainda que tecnicamente exata, constitui exemplo perfeito desta regra. Implica, entre outros males, no esquecimento de que muitos dos militares da República Dominicana, ao invés de cumprirem o papel de reprimir seu próprio povo, a ele se juntaram numa resistência cujas chances de sucesso eram inversamente proporcionais à sua coragem. Núñez Fernández cita em trechos do livro um bom número de constitucionalistas fardados, entre eles dois de seus parentes, o coronel Emilio Ludovino Fernández e o tenente-coronel José Mauricio Fernández. O líder mais destacado do movimento, coronel Francisco Alberto Caamaño Denó (1932-1973), chegou a ser eleito presidente constitucional pelos revolucionários. Atualmente é reverenciado como herói pelos segmentos populares de seu país e homenageado com uma estátua metálica de mais de três metros de altura na cidade de Santo Domingo.
Caamaño Denó
Não encontraremos, nas fontes tradicionais, qualquer menção à intrepidez dos locutores dominicanos, alguns dos quais chegaram a ser presos pelos golpistas em 24 de abril, tiveram como certo, por algumas horas, que enfrentariam o pelotão de fuzilamento, mas, recuperando a liberdade no dia seguinte, mantiveram seu apoio ativo ao constitucionalismo. A narrativa tradicional oculta a adesão de uma imensa parcela da população, desprovida de qualquer treinamento militar, à luta pela soberania. Revelá-la, com riqueza de imagens e depoimentos, é o maior mérito da obra de Núñez Fernández. Mais de quatro mil dominicanos morreram na guerra. Eu havia caminhado, antes da leitura, por um cenário de intensos tiroteios, a charmosa calle El Conde, sem imaginar por um segundo o que ali acontecera cinquenta anos atrás. La guerra de locutores, se bem traduzida e disponibilizada ao chamado grande público, seria ótima opção, numa quadra em que Veja, O Globo e veículos menos votados pregam, como solução para as mazelas do Brasil, um salto no colo do Tio Sam.