terça-feira, 7 de agosto de 2012

Para não perder o foco: escravidão, tráfico e True Outspeak

Representação de uma família de guanches, habitantes originais das ilhas Canárias

               Os leitores assíduos deste blog, assim como os ocasionais, certamente perceberam que a quase totalidade das últimas postagens girou em torno da polêmica com Olavo de Carvalho, o qual, no papel que gosta de representar, se refere à questão como um corretivo aplicado por um experimentado mestre a uma criança teimosa.  Relembremos, então, o foco da discussão original, para desfazer a possível impressão, sobretudo para quem toma conhecimento agora, de que tudo não passa de uma ridícula disputa de egos entre um quarentão e um sessentão.
         Quando me brindou com nove minutos de malcriações no True Outspeak de 25 de julho, Olavo basicamente reagiu às minhas críticas à sua afirmação de que "O Islã era a cultura mais escravagista de todos os tempos".  Continuo a sustentar que a sentença não passa de propaganda ideológica rasteira, não obstante os livros cuja leitura me foi recomendada como se eu ignorasse inteiramente a existência da escravidão nos países muçulmanos. 
             Ofereço alguns números, disponíveis em obras de fácil acesso:          

           Com cerca de 465 000 escravos, São Domingos era a maior colônia escravista e a mais produtiva do Caribe em 1789; servira de base para corsários durante todo o século sem jamais ter sofrido uma invasão.  Os 300 000 brancos da colônia e os 28 000 ou mais indivíduos livres de cor estavam organizados e armados para defender a escravidão. Guadalupe e Martinica estavam entre as colônias mais produtivas e estáveis das Pequenas Antilhas.  Em Guadalupe, juntamente com as ilhotas que dela dependiam, havia 90000 escravos, quase 14 000 brancos e 3000 affranchis de cor; na Martinica havia 83 000 escravos, 10 600 brancos e 5 000 affranchis.

(Robin Blackburn.  A queda do escravismo colonial: 1776-1848.  Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 181)

            Uma estatística oficial da década de 1830, numa zona residencial da cidade de Havana (intramuros), revela um grau significativo de 6 a 27 escravos por casa de branco recenseada.  Os romancistas da época e os escritores de costumes falam de casos extremos: por exemplo, a condessa de Merlin cita seu tio, o conde de Casa Montalvo com "...dez filhos, outros tantos netos, e mais de cem negros para seu serviço".  Independentemente do exagero ou não desta cifra, parece real a existência de uma excessiva escravidão doméstica que encheu os lares dos senhores do açúcar (e também dos setores médios criollos) num processo de ostentação de riqueza que por um lado reforçava o crédito e por outro dava margem a sérios problemas sociais.

(Manuel Moreno Fraginals.  Cuba.Espanha.Cuba.  Bauru: Edusc, 2005, p. 225) 

         Em 1840, somente dois municípios da província do Rio de Janeiro- Parati e São João da Barra- tinham contingentes escravos inferiores a 40% de sua população, ainda que superiores a 35%.  Dezesseis em 23 tinham mais que 50%.  Em Piraí, Valença e Vassouras, na zona cafeeira mais importante, eles ultrapassavam os 60%, sendo que, nestes últimos dois municípios, estavam na casa dos 70%.  Também em Iguaçu e Macaé, eles representavam mais de 60% da população e em Campos, área açucareira tradicional, chegavam a 59,47%.  No geral, os escravos eram 53,69% da população de toda a província.

(Ricardo Salles.  E o Vale era o escravo.  Vassouras, século XIX.  Senhores e escravos no coração do Império.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 184)   

        A composição de Salvador, especificamente, era diferente.  Um censo de 1775 encontrou 12720 brancos (36%), 4207 mulatos livres (12%), 3630 negros livres (10,4%) e 14696 escravos negros e mulatos (41,7%).  Um total de 35253 pessoas.  Um censo de 1807, que infelizmente não distingue entre livres e escravos, contou 25502 negros (50%), 11350 mulatos (22%) e 14260 brancos (28%).  Eram 51112 habitantes ao todo.  Entre 1775 e 1807, um período de 32 anos, a cidade teria crescido 31%.  A população africana e afro-baiana, incluindo escravos e livres, aumentou 39%, e sua proporção em relação ao total de habitantes pulou de 64% para 72%.

(João José Reis.  Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835.  São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 22)  

       Vejamos: se a posição dos muçulmanos como "os mais escravagistas" depender da relevância econômica  e do peso demográfico da população escrava, eles perderão feio para as sociedades das plantations coloniais da América.  Ainda que tenham existido concentrações respeitáveis de cativos no Islã, como no caso dos agricultores de origem africana na Baixa Mesopotâmia, não consta que hajam se formado, no espaço que vai do Marrocos à Indonésia, maiorias escravas nos moldes das que existiram nas ilhas caribenhas, em boa parte do litoral brasileiro e em algumas regiões do sul dos atuais Estados Unidos.  Tampouco que os escravos respondessem, em terras muçulmanas, pela totalidade da produção econômica fundamental, a exemplo da colônia francesa de Saint-Domingue.  É muito significativo que o livro de Albert Hourani, Uma história dos povos árabes (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002), tenha somente três referências aos escravos em seu índice remissivo, com mais uma sobre eunucos. 
             Retorno a informações de Paul Lovejoy que exibi em outra postagem: o tráfico atlântico do século XVIII resultou, segundo estimativas de larga aceitação, na exportação de 6.090.000 escravos africanos; no século XIX, foram mais 3.466.000 (A escravidão na África, p. 51).  Nem as estatísticas mais elevadas sobre o movimento de cativos para o Oriente Médio apontam para tamanha intensidade, em qualquer época.
            Resta uma outra observação: a panfletagem antiislâmica, cuja finalidade óbvia é ampliar o apoio da opinião pública entre americanos e europeus para as ações diplomáticas e militares destinadas a consolidar um controle ocidental sobre o Oriente Médio, destaca que, enquanto os portugueses ingressaram no tráfico africano no século XV, muçulmanos já recebiam escravos do norte do atual Sudão desde meados do século VII.  Exata no aspecto cronológico, esta linha de argumentação passa ao largo de outro processo de farta comprovação: a escravidão jamais se resumiu ao negro enquanto objeto do cativeiro; se muçulmanos compraram e apresaram africanos, europeus e asiáticos, a escravidão na Europa Ocidental, que já existia  muitos séculos antes do nascimento de Maomé, nunca desapareceu por completo nos anos que se estenderam do fim do Império Romano do Ocidente ao início da colonização da América.  Consultemos mais algumas fontes, entre inúmeras possibilidades:        

                  Foi somente Totila, o último líder ostrogodo, confrontado com os vitoriosos exércitos bizantinos, que recorreu in extremis à emancipação de escravos na Itália- por si só um testemunho da importância deles- para revigorar o apoio popular num desesperado lance final antes de sua destruição.  À parte esta instância solitária, os vândalos, burgúndios, ostrogodos e visigodos conservaram da mesma forma grupos de escravos nas grandes propriedades onde os encontrassem.  No Mediterrâneo ocidental, a escravidão continuou a ser um fenômeno econômico maior.  A Espanha visigótica em particular parece ter contido um número excepcionalmente grande de tais escravos, a julgar pelas providências legais punitivas preocupadas com seu controle e pelo fato de que eles parecem ter suprido a maior parte dos destacamentos forçados para o exército permanente.

(Perry Anderson.  Passagens da Antiguidade ao Feudalismo.  São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 115)

         Pela metade do século XI [na Inglaterra], o governo escandinavo havia sido derrubado e um reino anglo-saxão recentemente unificado fora restaurado.  O campesinato por esta época consistia geralmente de rendeiros semidependentes, exceto nas regiões de antiga colonização dinamarquesa mais a nordeste, onde havia muitos lotes alodiais de proprietários jurisdicionais.  Os escravos ainda existiam, compreendendo uns 10 por cento da força de trabalho; eram mais importantes economicamente nas regiões ocidentais mais remotas, onde a resistência céltica à conquista anglo-saxônica fora mais demorada, e os escravos compreendiam um quinto ou mais da população.

(Anderson, p. 155) 

        Sabe-se que, em Veneza, alguns negros foram utilizados, no século XIV, como gondoleiros, e que, nos seus mercados, se venderam, entre 1414 e 1423, mais de dez mil escravos, das mais diversas origens.  Não sabemos quantos guanches, caçados nas Canárias, foram oferecidos em Portugal e em Castela, mas num único ano, o de 1402, tiraram-se, só da ilha do Ferro, uns 400 cativos.  Em certas regiões, como Sicília, Maiorca, Aragão e Catalunha, a escravaria era tão numerosa, tanto nos burgos quanto no campo, que Charles Verlinden não hesita em qualificá-las como sociedades escravistas.  Segundo ele, já por volta de 1328, os escravos compunham 36% da população de Maiorca.  E não seria de estranhar-se que entre eles figurassem negros, adquiridos nos portos do Magrebe e da Líbia por italianos, portugueses, castelhanos, catalães e granadinos.

(Alberto da Costa e Silva.  A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002)

                 Fica claro, mais uma vez, que o julgamento de Olavo é superficial e tendencioso.  Mais tarde comentarei as outras "refutações".  

              

   
   

  













5 comentários:

  1. você ainda vai fazer uma continuação do texto desconstruindo uma ''celebridade''?

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  2. vá fazer algo útil rapaz, vai trabalhar. Eta funcionário público... É tudo igualzinho. Não fosse nós profissionais liberais, da iniciativa privada... É que com o dinheiro dos outros é mais gostoso né? Eta funcionário público. É o Estado que banca mesmo né? A que horas você prepara as tuas aulas, se é que as prepara? Você deve ser um péssimo professor, coitados dos teus alunos. Você deveria ser exonerado à bem do serviço público. Mas que espécie de "historiador" você é? Fica ai fazendo debatizinho, haja tempo hem o professor!Cadê o teu trabalho, a tua obra, os teus estudos, as tuas pesquisas? Eta funcionário público!

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    1. Se fosse minimamente atento, veria em outras postagens que operei o quadril. Não posso pisar com o pé direito por dois meses e, evidentemente, estou de licença. Quanto à "minha obra", pesquise no Dr. Google. Não gosta tanto de trabalho?! Finalmente, por falar em ensino público, em que série você fugiu da escola, sem ter aprendido que "à bem" e "debatizinho" são erros grotescos de português? Profissional liberal? Hahahaha! Deve escrever "petissões".

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  3. Mais uma discussão onde Beato de Carvalho será desmoralizado, apelará para uma meia dúzia de xingamentos entremados por recortes eruditos em latim e sairá se gabando de ter "humilhado" mais um. Sempre achei que dar corda para doentes mentais é uma atividade contraproducente. De alguma forma, o Astrólogo se sente importante sempre que alguém dedica um monte de palavras a ele.

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