Excetuando-se uns poucos neonazistas raivosos, possivelmente ninguém fora da África do Sul ousa proferir ou redigir, nos dias atuais, uma apologia ao apartheid. Este fato é bastante compreensível, se recordarmos que o sistema caído em 1994, com a ascensão de Nelson Mandela à presidência, obteve níveis de reprovação perante a opinião pública mundial que talvez tenham se igualado aos do hitlerismo na década de 1940.
Embora o tema esteja hoje relegado a um segundo plano, os políticos e diplomatas de todos os continentes, se confrontados com a memória do apartheid, sem dúvida colocariam em relevo a condenação formal de seus respectivos países, passando inclusive pelo terreno das sanções econômicas, às práticas de segregação racial adotadas na África do Sul ao longo de grande parte do século XX.
Caiu em conveniente esquecimento uma obviedade: o apartheid jamais teria alcançado tamanha longevidade se não contasse com suportes de peso nos campos diplomático, econômico e militar, por vezes velados, mas nem por isto menos decisivos. Podemos confirmar esta tese, entre inúmeras possibilidades, pela observação do posicionamento dos governos da época frente aos documentos produzidos pela ONU no sentido de censurar ou pressionar o regime sul-africano. Transcrevo abaixo um deles:
Resolução nº 3.207 de 30 de setembro de 1974 da Assembleia Geral da ONU (XXIX)
A Assembleia Geral,
Considerando suas resoluções nºs 2.636 A (XXV), de 13 de novembro de 1970, 2.862 (XXVI), de 20 de dezembro de 1971 e 2.948 (XXVII), de 8 de dezembro de 1972 e sua decisão de 5 de outubro de 1973, pela qual decidiu rejeitar as credenciais sul-africanas,
Recordando que a África do Sul não acatou nenhuma das decisões anteriormente mencionadas e continua a praticar a sua política de "apartheid" e discriminação racial contra a maioria da população da África do Sul,
Reafirmando, uma vez mais, que a política do "apartheid" e discriminação racial do Governo da África do Sul é uma flagrante violação dos princípios da Carta das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
Observando a persistente recusa por parte da África do Sul, de abandonar sua política de "apartheid" e discriminação racial, em obediência às relevantes resoluções e decisões da Assembleia Geral,
Apela ao Conselho de Segurança para rever o relacionamento entre as Nações Unidas e a África do Sul, à luz da constante violação dos princípios da Carta e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, por parte da África do Sul.
Sim
Afeganistão, Albânia, Argélia, Argentina, Austrália, Bahamas, Bahrein, Bangladesh, Barbados, Bélgica, Butão, Bolívia, Botswana, Brasil, Bulgária, Burma, Burundi, Bielorrússia, Canadá, República Centro-Africana, Chade, Chile, China, Colômbia, Congo, Costa Rica, Cuba, Chipre, Checoslováquia, Daomé, Iêmen Democrático, Dinamarca, República Dominicana, Equador, Egito, El Salvador, Etiópia, Fiji, Finlândia, Gabão, Gâmbia, República Democrática Alemã, República Federal Alemã, Gana, Grécia, Granada, Guatemala, Guiné Bissau, Guiana, Haiti, Honduras, Hungria, Islândia, Índia, Indonésia, Iraque, Irlanda, Itália, Costa do Marfim, Jamaica, Japão, Quênia, República Khmer, Kuwait, Laos, Líbano, Lesoto, Libéria, República Árabe, Líbia, Luxemburgo, Madagascar, Malásia, Mali, Malta, Mauritânia, Ilhas Maurício, México, Mongólia, Marrocos, Nepal, Holanda, Nova Zelândia, Níger, Nigéria, Noruega, Omã, Paquistão, Panamá, Peru, Filipinas, Polônia, Portugal, Qatar, Romênia, Ruanda, Arábia Saudita, Senegal, Serra Leoa, Cingapura, Somália, Sri Lanka, Sudão, Suécia, República Síria Árabe, Tailândia, Togo, Trinidad Tobago, Tunísia, Turquia, Uganda, Ucrânia, União Soviética, Emirados Árabes, Camarões, Tanzânia, Alto Volta, Uruguai, Venezuela, Iêmen, Iugoslávia, Zaire, Zâmbia.
Abstenções
França, Irã, Israel, Malawi, Nicarágua, Paraguai, Espanha, Reino Unido, Estados Unidos.
Não
África do Sul
Ninguém com um mínimo de senso de realidade esperaria que o governo sul-africano apoiasse sua própria condenação. Porém, podemos identificar através das poucas abstenções a solidariedade de importantes forças conservadoras a um governo com o qual compartilhavam a visão anticomunista e a intenção de barrar o avanço dos movimentos populares no chamado Terceiro Mundo:
.A França tinha como primeiro-ministro o direitista Giscard d'Estaing, notório defensor do imperialismo.
.O Irã permanecia sob a ditadura do xá Reza Pahlavi (1919-1980), que esmagava os opositores comunistas, islâmicos e mesmo os meros adeptos das eleições livres, contando com amplo respaldo anglo-americano.
.Israel figurava como um dos principais aliados da África do Sul, tema que merece texto à parte.
.O ditador do Malawi, Hastings Kamuzu Banda (1898-1997), simpatizava com o apartheid, chegando a receber, alguns anos antes, o primeiro-ministro sul-africano Balthazar Johannes Vorster (1915-1983) em visita oficial a seu país.
.A Nicarágua, sob Anastasio Somoza (1925-1980), se alinhava com a corrupção e com o reacionarismo, o que também pode ser dito do Paraguai de Alfredo Stroessner (1912-2006).
.A Espanha, no final do franquismo, ainda dispunha do duvidoso privilégio de possuir um dos governos mais direitistas do planeta, patrocinado em suas origens pelo nazifascismo.
.O premier Harold Wilson (1916-1995), apesar de eleito pelo Partido Trabalhista, estava inteiramente abandonado pela esquerda do Reino Unido, em consequência de suas posições a respeito da Guerra do Vietnã.
.Os Estados Unidos ingressavam na presidência de Gerald Ford (1913-2006), um membro do partido imperialista por excelência, o Republicano.
Retornarei ao assunto na próxima postagem.
Retornarei ao assunto na próxima postagem.
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