Um dos principais incômodos que acometem liberais e conservadores, sejam eles jurássicos ou pós-modernos, é sem dúvida a dificuldade em lidar com o fato de que a maior hecatombe da História, a Segunda Guerra Mundial, especialmente marcada por episódios de extermínio sistemático de populações, se deveu por inteiro à ação de forças de direita. Fiz referência, em outras matérias, aos contorcionismos ideológicos, aliás antigos, cujo objetivo é deslocar o fascismo e o nazismo para o campo oposto por meio de artifícios de retórica. Neste revisionismo tosco, alguns candidatos a formadores de opinião alegam que o enquadramento dos autoritarismos de inspiração mussoliniana entre os regimes capitalistas resultou de uma hábil propaganda esquerdista, difundida pelo mundo inteiro.
Entre muitos exemplos possíveis, apresento trecho de uma matéria publicada no blog Candango Conservador, cujos editores insinuam que a esquerda logrou ocultar a existência de uma natureza comum ao nazifascismo e aos socialismos.
http://candangoconservador.blogspot.com.br/2011/11/nazismo-e-comunismo-sistemas-rivais-ou.html
Finalmente, após uma rápida análise do nazi-fascismo e socialismo, resta-nos algumas indagações: será que há uma substancial diferença entre os sistemas supracitados ou será que aquele tão procurado ponto de divergência não passa de um envolto ilusório criado pelos espíritos revolucionários e esquerdistas das várias épocas?
Apontei, em postagens feitas no ano passado, o empenho dos capitalistas urbanos e rurais na emergência e na consolidação dos fascismos. Hoje devo colocar em evidência uma consideração ainda mais irrefutável: muito antes das anexações hitlerianas na Europa Central, da invasão brutal da Etiópia a mando de Mussolini, dos genocídios praticados pelos nazistas contra judeus, eslavos e ciganos, as correntes políticas ultranacionalistas e beligerantes do continente europeu já eram correntemente identificadas como pró-capitalistas e direitistas.
Para ratificar esta afirmativa, podemos nos valer da simples consulta aos periódicos brasileiros do período Entreguerras.
O jornal carioca A Manhã, ao reproduzir notícias sobre um suposto plano de restauração do Império Alemão, em 12 de maio de 1926, descreve "Von" Hitler como um líder reacionário, além de monarquista. Longe de qualquer pendor esquerdista, sobre o movimento do qual era acusado de participar pairava a suspeita de pretender extinguir o direito de greve, com pena de morte para os transgressores.
O periódico paulista Diário Nacional, em matéria sobre os partidos políticos alemães publicada em 8 de junho de 1928, também define o nacional-socialismo como uma força "radical" de direita. Hitler é mencionado como uma personalidade que exercia grande influência sobre os conservadores germânicos.
Sebastião Pagano, no artigo Hitler e o fascismo allemão, que consta da edição de janeiro de 1932 da revista Hierarchia, declara que os "partidos nacionalistas" liderados por Hitler e Hugenberg contavam com o apoio da "grande burguesia" e da "aristocracia". O autor não hesita em equiparar os nazistas às demais forças parlamentares de direita, com as quais se articulavam dentro do jogo político convencional. Pagano menciona ainda as negociações entre os extremistas de direita e o aristocrático presidente Hindenburg.
Em 14 de setembro de 1930, o jornal Correio Paulistano informava que as bases conservadoras e monárquicas da Alemanha, descontentes com o partido que tradicionalmente as representava, tinham migrando maciçamente para o nazismo. Além disto, o periódico destacou o uso demagógico do termo "socialista" pelos adeptos de Hitler, cujas atividades contavam com financiamento empresarial. Segundo o Correio, os nazistas eram anti-socialistas.
O Diário Carioca, na edição de 3 de fevereiro de 1931, em notas sobre a crise de governabilidade que atingia a Alemanha, empregou a expressão extrema-direita ao se referir aos nazistas, então em desacordo com os "centristas" liberais.
Muitos leitores, nisto incluídos os direitistas dotados de senso de realidade, podem dizer que fui óbvio demais, e não lhes negarei razão. Entretanto, diante do vulto que assumem na Internet as redes de manipulação ideológica da direita, em especial os sites fascistófilos que renegam cinicamente o fascismo no plano do discurso, penso que não é excessivo repetir e difundir certas obviedades, agradecendo a todos pela paciência que me for dispensada.
essa história de sociedade igualitária que parece ser o seu mote ideológico de vida já foi tentada algumas vezes meu caro..
ResponderExcluirVc sabe no que deu né?
Att
Mais do que isso, sei no que deram os esforços para manter tudo como sempre foi, ou seja, as desigualdades que os conservadores de mente preguiçosa adoram proclamar como parte da natureza. Como bem notou Brecht, todos dizem violento o rio que extravasa do leito e destrói, mas ninguém diz violentas as margens que o represam. Portanto, prefiro continuar "tentando", e penso que tenho até o direito de ser otimista. Afinal, apesar de alguns retrocessos, o mundo vem ficando mais igual desde pelo menos a Revolução Francesa.
ExcluirAlguém que chama Hitler de "von Hitler" e define-o como monarquista, com certeza não sabia do que estava falando, o que é compreensível naqueles idos, quando a informação chegava muito mais penosamente via telégrafo e cabo submarino, e os jornais cometiam muito mais erros do que hoje em dia. De resto, é perfeitamente sabido que Hitler veio da plebe e nunca escondeu seu ódio e desprezo pela antiga aristocracia do império alemão, a quem ele culpava pela rendição em 1918 (embora tenha sido posteriormente forçado a manter em altos postos do exército alguns von-não-sei-o-quê, já que eles é que entendiam do assunto).
ResponderExcluirHitler assumiu a liderança de um partideco de esquerda chamado Partido Nacional-SOCIALISTA dos Trabalhadores Alemães, e nunca eliminou a palavra socialista do nome do partido. Sempre definiu sua ideologia como socialista, com a ressalva de que socializava pessoas, e não bens (isso ele fez mesmo, obrigando as classes sociais a conviverem juntas nos acampamentos da juventude Hitlerista). A velha burguesia apoiou o nazismo porque considerava-o uma alternativa preferível ao comunismo soviético (e com certeza Hitler deliciou-se ao ver aqueles aristocratas a quem tanto desprezava virem lamber suas botas).
Mussolini também veio da plebe, e na juventude chegou a mendigar e ser preso por vadiagem. O fascismo surgiu na História como uma alternativa ao socialismo, ou antes, como um pastiche deste: de resto, ambos eram regimes de massa, de fanfarra, de operários e estudantes desfilando uniformizados, etc. etc. O fascismo não elimina a burguesia, mas inverte a relação que normalmente existe entre a burguesia e o governo nos regimes liberais e conservadores: se nesses, como dizia Marx, o governo era não mais que o comitê onde a burguesia realizava seus negócios, no fascismo a burguesia está submetida ao governo. Hitler permitiu que os burgueses continuassem usufruindo do conforto proporcionado por suas riquezas, mas na prática era o governo que comandava os meios de produção (há aqui uma simetria de espelho com o que acontecia na mesma época na ex-União Soviética, onde os comissários do partido viviam como burgueses, embora não fossem formalemente proprietários das fábricas que administravam). Na verdade, os regimes fascistas criam uma burguesia para seu uso, ao favorecer os burgueses aliados e os membros do partido, ao mesmo tempo em que perseguem e expropriam os burgueses inimigos (quem conhece a dita boliburguesia da Venezuela sabe do que eu estou falando).
Concordo que soa estranho eu aqui referir-me à Venezuela como exemplo de fascismo na época atual. É que o senso comum definiu o fascismo como o mero antônimo do socialismo. É falso. O verdadeiro antônimo do socialismo é o liberalismo (ou neoliberalismo, como queiram). Mas o regime de Chávez tem todas as caracterísitcas do antigo fascismo dos anos 30: organizações de massa, nacionalismo exacerbado, culto ao líder, militarismo, fabricação de um inimigo externo para desviar a atenção dos problemas internos, manutenção do capitalismo, porém sob a égide do estado; criação de uma burguesia fiel e dependente do governo. Quem conhece a História sabe o que é isso.
Pela extensão do comentário, responderei em tópicos independentes.
ResponderExcluirMeu caro Gustavo: Importa-se se eu adiantar algumas considerações? Primeiro, o seu comentarista deseja emitir um julgamento sobre o sentido de fatos históricos apoiando-se nas declarações dos seus protagonistas tomadas pelo valor de face; ora, como lembrava Marx, se a essência e aparência coincidissem, a análise científica seria desnecessária.Segundo: mesmo partindo das aparências, "Nacional Socialismo", em alemão, é um substantivo composto, onde as partes estão subordinadas ao todo: "geladeira" em alemão, é "Kühlschrank", de "frio" + "armário", e nem por isso a geladeira é um armário. Em "Nacional-socialismo", a ideia de "Socialismo" está subordinada a de "Nacional": a comunidade social está subordinada à Nação - à maneira hegeliana _de Direita_, aliás; só que a "Nação" nazista não é uma noção jurídica como em Hegel, e sim RACIAL (Völkisch). Fora da raça, não existe nada; e, dentro do contexto histórico da época, pouca coisa poderia responder melhor aos interesses da Burguesia alemã dos anos 1920 e 1930 do que a fusão (forçada) dos interesses de todas as classes a um interesse "nacional" - i.e., a guerra de conquista como revanche da Ia. Guerra Mundial. Quanto ao mais, juntar "alhos com bugalhos" , nazismo com populismo chavista, aí nem julgando por aparências...
ExcluirUm abraço_ Carlos
Sinto informar mas Fascismo é esquerda. Direita preza direitos individuais, incompatíveis com totalitarismos.
ResponderExcluirAcabo de constatar, então, que Franco, Salazar, Pinochet, Garrastazu, Videla e muitos outros foram expulsos post-mortem da direita. Ou alguma literatura revisionista já os transformou em campeões da liberdade individual?
ResponderExcluirFalando de alhos com bugalhos, temos aqui uma boa misturada. Primeiro o comentarista anônimo acima me acusa de misturar alhos com bugalhos ao comparar Chávez com Hitler. Eu estava me referindo ao caráter do regime, não ao caráter pessoal de Chávez e Hitler. O regime chavista usa e abusa de organizações de massa, nacionalismo, militarismo, culto à personalidade do líder, ódio ao inimigo externo. Todas essas características são encontradas também no regime nacional-socialista. Negar essa analogia é como negar que um gato seja parente de um tigre sob o argumento de que o tigre é muito maior e mais feroz que um gato. Como todo estudante de zoologia sabe, gatos e tigres pertencem à mesma ordem.
ResponderExcluirAgora vem a comparação entre Franco, Salazar, Pinochet, Garrastazu e Videla. Só há uma leve analogia entre Franco e Salazar, ambos pertencentes ao fascismo europeu, ainda que ocupando uma posição periférica e peculiar. Já Pinochet, Garrastazu e Videla não eram líderes políticos, eram simplesmente militares e nunca deixaram de agir como militares, mesmo quando ocuparam a chefia do Estado. Os regimes militares sul-americanos, rigorosamente falando, não eram regimes políticos, e sim uma espécie de estado de sítio prolongado. Não tinham nenhum conteúdo ideológico além do anti-comunismo, nem organizações de massa, nem partidos (a ARENA era um simulacro), nem simbologia própria, nem rituais próprios, enfim, não tinham nada que os identificasse como um regime político.
Sobre o comentário do Carlos Rebello, que não é tão anônimo assim, note que não há referência ao caráter pessoal de ninguém, o que torna a tréplica ainda mais absurda.
ExcluirSobre Franco e Salazar, segundo a maioria dos especialistas eles não foram fascistas. Pertenciam a um outro modelo de autoritários de direita, ainda que sejam continuamente "xingados" de fascistas, assim como, numa perspectiva invertida, qualquer elemento que falasse de justiça social no Brasil de 1970 seria um comunista.
Sobre os ditadores do Cone Sul não terem ideologia, haja trollagem e pobre da ESG! Até minha paciência de ex-professor da Vila Cruzeiro quase torrou de vez!!
O Carlos Rebello (é assim que ele se chama?) limitou-se a descartar minha argumentação sem apontar onde estavam as falhas, como se estas fosse auto-evidentes (aquela conhecida encenação de indignação ante supostas tolices). Na falta de maiores informações, eu assumi que as restrições do comentarista ao paralelo Hitler X Chávez referia-se ao caráter pessoal de ambos.
ExcluirQuanto a afirmar que os militares que governaram o país de 1964 a 1984 possuíam uma ideologia, a da ESG, esse ao menos é um contra-argumento pertinente, mas é preciso lembrar que nem todos os militares da época pertenciam à "turma da sourbonne", como eram chamados os formados pela ESG (talvez os castelistas correspondessem mais a esse estereótipo) nem tampouco a turma da ESG tinha uma unidade ideológica - de modo geral, tanto a teoria da ESG quanto a prática dos generais-presidentes limitou-se a repetir o nacional-estatismo vigente no país desde a revolução de 30, oscilando entre sua vertente "nacionalista" (Vargas) e sua vertente "entreguista" (Kubitschek). De resto, o próprio Vargas já havia se encarregado de demonstrar que o nacional-estatismo era praticável tanto por um regime ditatorial quanto por um regime constitucional.
Já esgarçando um pouco os argumentos, se insistirmos em afirmar que os militares de 1964 tinham uma ideologia, eu diria que eles implementaram uma espécie de positivismo tardio. O positivismo de Comte fora muito popular entre os militares brasileiros no final do século 19, já se encontrava esquecido em 1964, mas é fato que marcou mais de uma geração de militares. Como se sabe, o positivismo de Comte pregava um governo autoritário, exercido por indivíduos iluminados e neutros, obedecendo a ditames racionais e científicos, a que chamou "ditadura republicana". Note bem: os protocolos republicanos foram preservados no regime de 1964; os generais-presidentes tinham plenos poderes mas não eram caudilhos, eles saíam ao final do mandato. Desta forma, pode-se afirmar que o regime de 1964 encarnava uma "ditadura republicana" nos moldes comteanos. O personagem mais emblemático desse regime era o chamado tecnocrata, estirpe que teve Delfim Neto e Mário Simonsen entre seus maiores expoentes. Os tecnocratas eram especialistas em diversas áreas, profissionais que normalmente seriam apenas funcionários do governo, mas os militares colocaram-nos em funções de comando e concederam-lhes amplos poderes, ao mesmo tempo em que reduziam os políticos a funções protocolares. Dessa forma os militares esperavam que a economia e os negócios do Estado fosse conduzidos de forma isenta, guiada pelo racionalismo, em substituição ao toma-lá-dá-cá dos políticos profissionais. Pode-se afirmar também aqui que o regime emulava o caráter "racional e científico" pregado por Comte.