sábado, 28 de julho de 2012

Tréplica ao True Outspeak de 25 de julho III

     

        Tratei nas duas postagens anteriores de atos falhos e empulhações de Olavo de Carvalho.  Hoje concluo desconstruindo sua pregação etnocêntrica primária, que infelizmente vai de encontro ao que querem ouvir algumas centenas de indivíduos fanatizados, órfãos tardios da UDN, do Integralismo e similares.  Em 12:40, Olavo faz alusão a uma suposta superioridade moral dos sistemas escravistas da América sobre o cativeiro em terras muçulmanas:   
    
Enquanto para a América e para o Brasil, muito mais no Brasil do que na América do Norte, a maior parte dos escravos eram homens, que era para trabalhar na lavoura, no Islã eram mulheres para ser exploradas sexualmente pelos seus patrões.  Você vê o alto nível moral que era a escravidão islâmica.


        Diversos especialistas se referem à esterilidade das discussões sobre "escravidão melhor" e "escravidão pior".  Todo senhor de escravos, querendo dar vazão a tais impulsos, poderia agredir fisicamente, humilhar com palavras ou sodomizar a sua "propriedade", em qualquer época ou lugar, o que não impede os apologistas das diferentes civilizações de exaltarem exemplos particulares para ostentar a benignidade da escravidão entre os seus.  Mas façamos algumas considerações.  Sem negar que a introdução de mulheres africanas nas sociedades muçulmanas do Oriente Médio constituiu uma grande violência, mesmo nos casos em que se viram transformadas em esposas, exponho, através de um parágrafo de Jacques Jomier, algumas das regras deste cativeiro:

Do ponto de vista do estatuto jurídico das escravas mulheres, note-se que aquelas que tiverem dado um filho ao patrão são colocadas em uma categoria à parte.  São denominadas Omm walad (mãe de uma criança) e não podem mais ser vendidas.  Têm que ser alforriadas ao morrer seu patrão.  Compare-se com Deuteronômio 21, 10-14), onde a prisioneira de guerra é feita esposa; se não agradar mais e for repudiada, é tratada como uma mulher livre e não pode ser vendida (Islamismo, história e doutrina, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 157) 

         Não tenho a ingenuidade de crer que senhores muçulmanos jamais escravizaram seus próprios filhos.  Mas é certo que não havia nenhum dispositivo de teor semelhante nas legislações ocidentais.  Imagino o que um historiador egípcio ou turco diria sobre o "padrão moral superior" do Ocidente, sugerido por Olavo, ao ler este trecho de Ronaldo Vainfas:

Degradadas e desejadas ao mesmo tempo, as negras da terra seriam o mesmo que as soldadeiras de Lisboa no imaginário de nossos colonos: mulheres aptas à fornicação em troca de alguma paga.  E na falta de mulheres brancas, fossem para casar, fossem para fornicar- pois sempre escassearam as Nóbregas e as Baldayas do Reino- caberia mesmo às mulheres de cor o papel de meretrizes de ofício ou amantes solteiras em toda a história da colonização.  Nos séculos vindouros, à degradação das índias e à sua reificação como objeto sexual dos portugueses somar-se-iam as das mulatas, das africanas, das ladinas e das caboclas- todas elas inferiorizadas por sua condição feminina, racial e servil no imaginário colonial.  (Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 73)


        O mesmo autor demonstra objetivamente que na América Portuguesa, principal área escravista do continente, tanto a autoridade civil quanto a eclesiástica deixavam os senhores de mãos livres no que se refere à prole de suas escravas:

E assim como Alexandre VI tolerara a criada-concubina que fosse indispensável ao serviço do seu amo, também as Constituições [Sinodais da Bahia] de 1707 curvar-se-iam aos hábitos coloniais, reconhecendo tacitamente o direito dos senhores de se amancebarem com suas escravas.  Reconheceram-no ao fixarem como prova de concubinato o fato de um homem manter em casa alguma mulher que ali engravidasse, não sendo com ela casado, fosse criada ou qualquer outra, desde que livre.  Ao isentar os senhores, a decisão eclesiástica admitia, também veladamente, que outros homens poderiam engravidar as escravas, mulheres reduzidas a objeto sexual na Colônia, vulneráveis a quaisquer "tratos ilícitos".  Mas a Igreja era perfeitamente sabedora de que os senhores eram igualmente suspeitos de tal paternidade, e ainda assim os não incriminou na lei, ciente de como seria inócua tal decisão.  (Trópico dos pecados, p. 85)


          Embora saiba disto, sem dúvida, Olavo se reporta (13:56) às passagens do Corão que naturalizam ou regulam aspectos da escravidão, como mais uma prova da desvantagem moral, ou ideológica, dos muçulmanos perante o Ocidente:

E lá nunca teve nada [movimento abolicionista].  Lá nunca ninguém pregou a abolição e por quê?  Porque no Islão o Corão assegura o direito de ter escravos, então ninguém vai abrir a boca contra o Corão.


          Vejamos o que afirma Jacques Jomier, que casualmente era um padre dominicano, residente durante muitos anos no Egito:


O Islã admitiu a escravidão como um fato social contra o qual ninguém sentia a necessidade de reagir imediatamente.  Também o Cristianismo, desde a sua aparição, não reagiu contra a escravidão.  Em determinado momento o Corão toma como exemplo de realidades evidentes a desigualdade que existe entre o escravo e o homem livre (Corão 16, 73/71).  Mas a questão foi envenenada por uma apologética antimuçulmana que quis descarregar sobre o Islã toda a vergonha dessa prática hoje em dia abolida.  (Islamismo: história e doutrina, p. 155)


          Nota-se, décadas após a elaboração da obra de Jomier, que a mesma propaganda facciosa continua a pleno vapor, e Olavo de Carvalho é um de seus modestos agentes.
          Encontramos em Charles R. Boxer provas mais contundentes de que a religião, no mundo ocidental, também serviu para legitimar não só a escravidão, como também o tráfico:

A posição da Igreja em face da escravidão foi, para usar uma linguagem amena, altamente permissiva durante quase quatro séculos.  A série de bulas papais editadas a pedido da Coroa portuguesa, entre 1452 e 1456, autorizando e incentivando a expansão ultramarina de Portugal, deu ao país ampla liberdade para subjugar e escravizar os povos pagãos que encontravam pelo caminho, caso fossem "hostis ao nome de Cristo".
(...)
As bulas pontifícias do período entre 1452 e 1456, que autorizaram expressamente a escravidão de negros da África Ocidental, foram citadas como canonicamente válidas pelo "esclarecido" bispo de Pernambuco, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, no documento que ele redigiu em defesa do tráfico de escravos na América portuguesa. (A Igreja militante e a expansão ibérica: 1440-1770.  São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 45/46)


           Boxer nos informa, também, que o clero regular chegou a se associar ostensivamente aos traficantes nas áreas sob influência portuguesa:

A irrupção das hordas canibais jagas da África Central no reino do Congo em 1568-1573 devastou, durante anos sem fim, várias regiões, antes de estes selvagens serem expulsos por uma força expedicionária portuguesa.  Mas a razão fundamental do falhanço definitivo do começo prometedor da civilização ocidental no Congo foi, sem sombra de dúvida, a estreita ligação que rapidamente se desenvolveu entre os missionários e os traficantes de escravos.  Esta ligação estava firmemente estabelecida antes da invasão jaga.  (O império marítimo português, 1415-1825.  Lisboa: Edições 70, 2001, p. 108)

         Para ratificar a vocação escravagista do Islã, Olavo assinala (14:52) que além dos africanos numerosos europeus sofreram o cativeiro mouro ou turco:


Escravos africanos foram dezessete milhões.  Tem mais um milhão de brancos.

             Irrefutável pela perspectiva factual, o argumento abre um telhado de vidro, pois temos  aqui um caso típico de "chumbo trocado".   Já constatamos em outra postagem, através de Perry Anderson, o expressivo volume do trabalho escravo de muçulmanos na Península Ibérica.  Com Alberto da Costa e Silva, podemos verificar que as incursões dos piratas mouros em busca de escravos brancos na Europa Mediterrânea tiveram contrapartida em ações do Estado português, ainda durante a Idade Média.  Percebe-se que a escravização de muçulmanos não era uma eventual e rara represália contra inimigos derrotados em combate, e sim um comportamento habitual, que atendia a necessidades econômicas regionais:

Como era abundante a oferta nos Bálcãs e no Cáucaso, só se julgava conveniente abastecer-se nos portos do Magrebe, quando isso não significava a renúncia  a recebimentos em ouro.  Não havia, contudo, objeção a se conseguirem escravos pelas armas.  Tanto assim que, em 1317, D. Diniz, o rei poeta de Portugal, não só autorizou um navegante genovês, Manuel Pesagno, a exercer, com esse objetivo, o corso, como se reservou o direito de adquirir os cativos que ele trouxesse, a cem libras por cabeça. (A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 142)

Enquanto isso, na outra ponta do Mediterrâneo, na península Ibérica, os êxitos da reconquista foram reduzindo o número de cativos que se obtinham nos cercos, razias e batalhas.  Já agora era necessário ir filhá-los nas Canárias e em ataques de pirataria a barcos que atravessavam o estreito de Gibraltar ou navegavam em suas proximidades, ou então em acometidas contra as praias mouras.  Essas investidas contra os mouros tinham-se tornado uma constante durante o século XV e se ampliaram ainda mais depois da conquista de Ceuta em 1415.  Daquela praça marroquina, da qual se afastaram as caravanas do Sudão, os portugueses saíam em guerra contra a vizinhança, a saquear as vilas e a prear escravos.  Destes e também dos capturados nas operações de corso, alguns seriam negros.  Gomes Eanes da Zurara conta-nos, no capítulo XVI do livro II da Crônica do Conde D. Pedro, que, de um barco que saía de Larache, se tomaram por presa 56 mouros negros, dos quais três mulheres.  (A manilha e o libambo, pp. 143/144)

            Para concluir uma série que já se alongou em demasia, retorno a Perry Anderson, que ironicamente é o único autor decididamente de esquerda que emprego para desmontar os disparates de Olavo.  O marxista inglês narra que populações eslavas, para se libertar da opressão escravagista dos mercadores italianos, tomaram a providência extrema de se atirar na direção do domínio turco.  A passagem mostra que não havia impedimento, jurídico ou moral, à escravização de cristãos por outros cristãos, o que aliás se repetiu em vastíssima escala nas Américas:  

Na Bósnia, onde o campesinato bogomil fora especialmente perseguido pela Igreja Católica como "patarene" heréticos e entregue às incursões de mercadores venezianos e ragusianos que vinham aí em busca de escravos, as massas rurais e setores da nobreza local deram as boas-vindas ao governo turco e foram amplamente convertidos ao Islã.  Braudel escreveu categoricamente: "A conquista turca dos Bálcãs só foi possível por se haver beneficiado de uma espantosa revolução social.  Uma sociedade senhorial que oprimia  duramente o campesinato foi tomada de surpresa e caiu por si mesma. (Passagens da Antiguidade ao Feudalismo.  São Paulo: Brasiliense, 1991, pp. 280/281)  


          Só me resta lamentar que pregações tão inconsistentes quanto as de Olavo de Carvalho encontrem ressonância.  Tudo poderia se resumir a humor involuntário, mas é fato que, após ouvirem o programa que já foi jocosamente apelidado de talkshit, centenas de pessoas irão repetir como papagaios de pirata que "90% dos escravos dos árabes eram capados", que "o Islã escravizou três (ou cinco!) vezes mais do que o Ocidente" ou baboseiras ainda piores.   


          


           


                

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