domingo, 20 de janeiro de 2013

Mais sobre a "escravidão benevolente": manipulação de fontes na construção do mito


      

       Retorno ao artigo de Flávio Versiani citado na última postagem com um propósito bem específico: demonstrar que no Brasil, quando se trata de temas relacionados à escravidão, o debate exclui forçosamente a inocência em qualquer dos seus graus.  A difusão da ideia de que as relações escravistas verificadas no país tiveram um caráter benevolente não se limita ao objetivo de reforçar um outro mito, o da democracia racial.  Este discurso também dá margem a uma legitimação das demais formas de exploração e sujeição do homem pelo homem, até os dias atuais, e à consequente valorização do status quo como única alternativa ao caos econômico. Podemos resumir a mensagem implícita nestes termos simples: "Se no Brasil até os escravos eram bem tratados, do que reclamam os trabalhadores assalariados, que não gostando das regras da casa podem sair quando quiserem"? 
      Em sua tentativa de reconstituir a genealogia da tese da "escravidão suave", Versiani recorre aos livros de memórias dos viajantes estrangeiros do século XIX:


No século XIX, a fonte mais conhecida do argumento são os depoimentos de viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil, especialmente depois da abertura dos portos, em 1808. Como se sabe, foram numerosos os relatos publicados, na Europa e nos Estados Unidos, por tais cronistas. Menções de um tratamento brando de escravos são frequentes nesses escritos, muitas vezes com mostras de surpresa. 

       É certo que o autor não afirma decididamente que a percepção de um "tratamento brando" foi unanimidade entre os viajantes; tampouco os limites espaciais impostos ao artigo permitiriam uma análise, ainda que superficial, de todos os trabalhos do gênero.  Porém, Versiani se limita à exposição de breves trechos de Saint-Hilaire e Burton que presumidamente reforçam o que deseja provar, sem examinar as versões em contrário, que estão longe de ser escassas.
         A inglesa Maria Graham (1785-1842), durante estadia na província de Pernambuco no início da década de 1820, elaborou o seguinte relato:

"Esta manhã, antes do café, olhando pela janela da casa do Sr. Stewart, vi uma mulher branca, ou antes um demônio, surrando uma pobre negra e torcendo seus braços cruelmente enquanto a pobre criatura gritava angustiadamente, até que nossos homens interferiram.  Bom Deus! Como pode existir este tráfico e estes hábitos de escravidão!  Perto da casa há dois ou três depósitos de escravos, todos moços.  Em um vi uma criança de cerca de dois anos à venda.  As provisões agora estão tão raras que nenhum bocado de alimentação animal tempera a massa de farinha de mandioca, que é o sustento dos escravos, e mesmo assim estas pobres crianças, com seus ossos salientes e faces cavadas, revelam que eles raramente recebem suficientemente".¹


          Poucos anos mais tarde, Robert Walsh (1772-1852) assim descreveu o cotidiano de uma parte dos escravos urbanos do Rio de Janeiro:

Passamos pelo Largo do Paço e subimos a Rua Direita, a maior rua de toda a cidade e o centro do comércio.  Ela é paralela à baía e a partir dela todas as outras correm em ângulo reto.  Nela está situada a Alfândega, e nesse local, pela primeira vez, pude observar a população negra em circunstâncias muito chocantes para um estrangeiro.  Todo o serviço de transportes de cargas era feito por eles, e o estado em que se apresentavam era revoltante para a Humanidade.  Havia ali vários seres quase inteiramente despidos, a não ser por um manto feito de trapos imundos, amarrado em volta da cintura.  A pele deles, devido à constante exposição ao ar, tinha se tornado dura, cheia de crostas e rachada, lembrando a pele negra e grossa de alguns animais, ou a de um elefante, enrugada e com pelos esparsos.  Ao contemplá-los, sua constituição física nos fazia pensar em seres inferiores ao homem: calcanhares compridos e salientes; pernas desprovidas de panturrilha; boca e queixo salientes; nariz achatado e frontes fugidias.  A cabeça e as pernas eram exatamente iguais à da tribo dos babuínos.  Alguns desses seres puxavam pesadas carroças de carga presas a eles por cangas.  Outros seguiam em fila, com enormes pesos nas cabeças, murmurando uma cadência de sons inarticulados e tristes enquanto caminhavam.  Alguns mastigavam cana ruidosamente, como bestas de carga comendo capim, e alguns eram vistos à beira d'água, deitados no chão em meio ao lixo, encolhidos como cães, como se não esperassem ou não quisessem mais conforto.  Seu estado e conformação eram tão pouco humanos que não pareciam, mas realmente eram, seres muito inferiores aos animais que os rodeavam.  Cavalos e mulas não eram usados dessa maneira; eram empregados apenas para o lazer e não para o trabalho.  Podiam ser vistos nas mesmas ruas, bem tratados, cheios de vida e enfeitados com ricos jaezes, gozando de um estado muito superior ao dos negros, parecendo olhar os infelizes acorrentados e carregados de pesos que passavam por eles como se fossem seres inferiores.²  


     Fazendo alusão aos conflitos ocorridos no Primeiro Reinado entre escravos e mercenários irlandeses, Walsh estabeleceu um quadro mais geral do escravismo como se apresentava na Corte:

No Rio, os pobres escravos , utilizados apenas como bestas de carga são, de longe, entre todas as classes humanas, os mais desamparados e humilhados.  Empregados somente como animais inferiores, sem o menor respeito à sua condição de seres dotados de raciocínio, eles trabalham o dia todo e só à noite são liberados, quando, por uma grande incongruência, têm permissão de praticar os atos mais licenciosos e irrefreados.  Percorrem as ruas geralmente bêbados, gritando e brigando.  Quando se imagina que existem de 50.000 a 60.000 escravos nessa grande e licenciosa cidade, e que eles constituem a grande maioria da população, é assustador pensar nas consequências que podem surgir, de uma hora para outra, devido ao seu estado de grande agitação.  Mesmo assim eles eram os instrumentos usados para provocar e irritar os estrangeiros.³  


      Johann Moritz Rugendas (1802-1858), convicto defensor da inferioridade dos negros, e que acreditava de fato na menor brutalidade de portugueses e espanhóis no trato com seus escravos, em comparação com os anglo-saxônicos, não deixaria de testemunhar, no Brasil, o caráter corriqueiro dos castigos físicos:

Quando um escravo comete um crime, as autoridades se encarregam de puni-lo, como veremos mais adiante; mas, quando ele se limita a descontentar o senhor pela sua embriaguez, preguiça, imprudência ou pequeninos roubos, este o pode punir como bem entende.  Em verdade, existem leis que impõem certos limites ao arbítrio e à cólera dos senhores, como por exemplo a que fixa o número de chicotadas que é permitido infligir, de uma só vez, ao escravo, sem a intervenção da autoridade; entretanto, como já dissemos acima, essas leis não têm força e talvez mesmo sejam desconhecidas da maioria dos escravos e senhores; por outro lado, as autoridades se encontram tão afastadas que, na realidade, o castigo do escravo por uma falta verdadeira ou imaginária ou os maus tratos resultantes do capricho e da crueldade do senhor só encontram limites no medo de perder o escravo, pela morte ou pela fuga, ou no respeito à opinião pública4.     


        Uma passagem de Rugendas sobre a rotina das plantations deveria ser o suficiente para desfazer por inteiro qualquer romantização do cativeiro:

O que mais importa é o caráter do feitor.  De chicote na mão, ele conduz os escravos ao trabalho e os fiscaliza de perto durante todo o dia.  O que mais nos revolta, neste infeliz sistema, é o horrível pensamento de submeter o homem, como um animal, à ação do chicote.  Embora, em regra geral, seja verdadeiro, como pretendem os defensores da escravidão, que o chicote na mão do feitor é apenas um símbolo do poder de que não se serve nem para obrigar o negro a trabalhar, nem para puni-lo arbitrariamente, não é menos verdade que só a presença ou a vontade do senhor pode impedir o feitor de fazer uso do chicote e não é possível que um homem grosseiro, cruel, rancoroso, não abuse de seu poder; os exemplos de abuso verificados são, aliás, mais do que frequentes.5  

       O pintor alemão, em conclusão desconcertante para os neofreyrianos, vira pelo avesso uma das premissas fundamentais do mito, dando a entender que não visualizou no Brasil um escravismo ameno, mas apenas menos violência do que em outras partes do continente: 

Infelizmente, os europeus do norte são ainda piores do que os portugueses.6           

        A denúncia do revisionismo que tende a reabilitar a escravidão permanece na ordem do dia, sobretudo por sabermos, sem exceção, que em várias atividades econômicas e em diversas partes do país continuam a prevalecer condições de trabalho e relações hierárquicas análogas às do século XIX.     
        

Referências:
1-Maria Graham.  Diário de uma viagem ao Brasil.  Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1990, p. 136)
2- Robert Walsh.  Notícias do BrasilBelo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1985, vol. I, p. 70/71. 
3- Idem, p. 127.
4-Johann Moritz Rugendas.  Viagem pitoresca através do Brasil.  São Paulo: Círculo do Livro, p. 241-242.
5- Idem, p. 239.
6- Ibidem, p. 240













           

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