A tese de que teria prevalecido no Brasil colonial e imperial um modelo de escravidão benevolente quase nunca é defendida de maneira direta por historiadores de ofício na atualidade. Isto não impede que o mito esteja bem vivo e seja alimentado em outras esferas. Encontro numa revista virtual de Economia Política, organizada em 2007, um texto de Flávio Rabelo Versiani, que resgata o tema a partir de Gilberto Freyre e de alguns relatos de viajantes estrangeiros do século XIX. O autor, em sua conclusão, declara que a o "tratamento dos escravos" no país não se caracterizou pelo "uso universal de força e violência física".
Podemos assinalar muitas incoerências e inconsistências no artigo, a começar pela afirmativa de que a aferição de uma maior ou menor "benignidade" depende de testemunhos subjetivos (e eventualmente mentirosos) de literatos oitocentistas. Versiani ignora, ou simula ignorar, as várias peças legislativas que regeram as punições aplicadas aos cativos por seus donos ou pelo Estado, as medidas publicadas e postas em prática pelas autoridades após rebeliões ou agitações nas senzalas e os processos na Justiça envolvendo escravos que se queixavam de torturas infligidas pelos senhores. Material bem mais concreto, certamente, ainda que não imune a distorções.
Versiani parte da premissa, de comprovação bastante duvidosa, de que senhores de poucos homens, numerosas vezes trabalhando ao lado destes, faziam um menor uso da violência corporal enquanto mecanismo de coerção. Entretanto, dentro de tal categoria caberiam tanto sitiantes e posseiros quanto arrendatários de terras e pequenos fazendeiros, ocasionando uma variação imensa nos graus de proximidade física (e no trato pessoal) com a escravaria. O autor cita para sustentar seu ponto de vista passagens de Saint-Hilaire e Rugendas, mas na prática não esclarece que razões levariam proprietários menos abonados economicamente a bater em cativos considerados desobedientes ou relapsos com frequência mais baixa do que os plantadores ricos. Sob outro ângulo, também não lhe passa pela mente que a intensificação forçada do ritmo de trabalho do escravo constrangido pela presença permanente do senhor poderia ser tão opressiva quanto passar alguns dias por ano no tronco.
A desconstrução da premissa de que "o escravo da grande lavoura era o escravo típico" também é fraca. Versiani valoriza seletivamente exemplos estatísticos de áreas e épocas nas quais predominaram plantéis reduzidos, passando ao largo da região em que o escravismo brasileiro atingiu seu maior desenvolvimento, o Vale do Paraíba fluminense a partir dos anos 1830. O autor exibe dados sobre a província de São Paulo antes da expansão da cafeicultura sem trazer como contraponto a situação vigente nos centros cafeeiros de ponta como Piraí, Vassouras e Valença, na província do Rio, cuja população escrava se agrupou preferencialmente nas grandes unidades territoriais. Voltando seu olhar para o Nordeste, Versiani aponta para a conhecida diminuição dos plantéis locais depois de 1850 sem relacionar o processo ao tráfico interno direcionado às plantations do Sudeste. Omite, igualmente, a existência de numerosos trabalhos que demonstram que a propriedade escrava se concentrou progressivamente após o fim do tráfico atlântico: as cidades perdiam escravos para o campo; os pequenos fazendeiros vendiam sua mão de obra, cujo preço tendia a subir, aos barões.
À suavidade do cativeiro urbano celebrada por Flávio Versiani poderiam ser opostas as estatísticas de Thomas Holloway sobre a ampla predominância dos escravos na célebre prisão carioca do Calabouço e a média de chicotadas que recebiam os negros sentenciados pela Justiça gaúcha segundo as pesquisas de Mário Maestri. Porém, nesta matéria não apresentarei um longo levantamento historiográfico, mesmo não descartando a possibilidade de fazê-lo a curto ou médio prazo. Prefiro expor ao leitor um punhado de amostras do cotidiano da sociedade escravista, a partir de dois periódicos da antiga Corte: o Correio Mercantil e o Diário do Rio de Janeiro.
Na edição de 10 de setembro de 1849, o Correio reproduziu um requerimento elaborado por cidadãos da localidade paulista de Ubatuba que protestavam contra a prisão arbitrária de alguns de seus correligionários políticos. Do texto emerge não só a naturalização do castigo físico como método disciplinar para os escravos como também o risco que traria para a ordem o fato de um senhor ser punido por chicotear seus negros.
Em 4 de novembro do mesmo ano, o Correio transcreveu a proposta de um vereador do Rio que prescrevia cinquenta chibatadas para o escravo apanhado no "delito" de jogar laranjas ou água nos transeuntes durante o entrudo.
Pela edição de 6 de fevereiro de 1850 do Correio verificamos que o vereador "Tavaves" não era exatamente o general Newton Cruz de seu tempo, pois na freguesia carioca do Sacramento os senhores cujos escravos fossem surpreendidos participando do entrudo escolheriam entre perder oito dias do trabalho destes últimos (encarcerados) ou mandar "corrigi-los" com cem açoites no Calabouço.
Ainda no Correio, desta vez na data de 12 de novembro de 1851, revelou-se que africanos que talvez jogassem búzios estavam sujeitos à prisão com acréscimo de vergastadas.
Quanto aos escravos suspeitos de planejar insurreições, os suplícios físicos poderiam chegar à mais extrema crueldade, conforme notamos nas notícias de Alagoas registradas no Correio Mercantil de 21 de dezembro de 1852.
O Correio de 5 de janeiro de 1855 publicou as posturas municipais, já aprovadas pela autoridade superior, da vila fluminense de Barra Mansa. Os cativos que descarregassem barris com urina e fezes fora dos horários permitidos, obviamente por ordem de seus donos, tomariam cinquenta chibatadas caso os mesmos senhores não se dispusessem a pagar a multa prevista de dez mil-réis.
O Diário do Rio de Janeiro de 7 de dezembro de 1858 apresenta as posturas da freguesia de São Cristóvão, na Corte. O dono de um escravo que cortasse árvores ilegalmente, não desejando vê-lo na prisão ou pagar multa, também teria a opção, só para variar, do chicote.
O escravo baloeiro, na freguesia carioca de São José, estava igualmente exposto às alternativas da prisão e do açoite, de acordo com o Diário de 27 de junho de 1860.
Esta nota publicada no Correio de 27 de dezembro de 1858, cujo autor se valeu do pseudônimo de Um estrangeiro, desautoriza radicalmente as versões literárias adocicadas da escravidão brasileira. Assinalemos que foi composta muito antes do fortalecimento do movimento abolicionista nacional.
Neste anúncio sobre a fuga de um escravo do comendador José Breves, como em outros do mesmo gênero, percebemos que as marcas dos castigos impostos aos escravos do eito poderiam, na hipótese de fuga, servir como sinais particulares para facilitar a sua recaptura.
Retornarei ao assunto em novas ocasiões. Por fim, registro mais uma vez meu estarrecimento diante daqueles que continuam a construir idealizações dignas de contos de fadas a respeito da sociedade imperial.
Obs: Perdi a referência do último recorte, mas vou recuperá-la em breve.
Saúdo a presença, até aqui pouco comum, de leitores da Venezuela e da Arábia Saudita.
ResponderExcluirSimplesmente afirmar que os escravos eram bem tratados, ou que os escravos eram brutalizados, não acrescenta nada à discussão, pois há exemplos avulsos de ambos os casos. Mais proveitoso é tentar estabelecer um modelo que identifique em quais casos, e em quais escalas os maus tratos ocorriam. Eu penso que havia três tipos de tratamento, conforme o número do plantel de escravos:
ResponderExcluir1) O parente de segunda classe. Era aquele escravo doméstico que pertencia a uma família que possuía um ou dois escravos. Compartilhava o espaço doméstico, e às vezes a intimidade de seu senhor, e era tratado com certa consideração, embora não fosse igual a um membro efetivo da família. Sua situação era mais ou menos semelhante à dos primos pobres agregados da Casa Grande;
2) O animal doméstico. Era aquele escravo cujo dono era um pequeno fazendeiro com um plantel reduzido de cativos. Já não compartilhava o espaço doméstico de seus senhores, sendo confinado nas senzalas, mas seu alto valor agregado ainda preservava-o de ser maltratado em excesso. Era tratado como um valioso animal doméstico;
3) A máquina. Era o escravo da grande plantação. Já não tinha qualquer humanidade nem tampouco grande valor para seu dono, daí ser tratado como mera peça descartável, tal como uma máquina da qual se procura tirar o máximo antes de substituí-la. Os maus tratos decorriam mais do trabalho exaustivo do que dos castigos.
Provavelmente o escravo (1) sofria menos que o escravo (2), que sofria menos que o escravo (3), mas isso é muito relativo. Por exemplo, assim como a intimidade pode despertar a afeição, também pode despertar instintos sádicos e depravados, de modo que podia haver escravos (1) que sofriam mais que escravos (3). Uma boa análise sobre os mútuos efeitos que a convivência entre senhores e escravos acarretava aparece em um livrinho quase desconhecido hoje em dia, As Vítimas Algozes, de Joaquim Manoel de Macedo, o autor de A Moreninha. Mas nessa obra, ao invés do romantismo ingênuo, ele penetra fundo na psicologia dos senhores e escravos da época, e defende uma tese que me parece muito correta: a vingança do escravo é corromper o seu dono, tornando-o indolente, autoritário, supersticioso, e dessa forma a vítima torna-se algoz.
Você acerta ao dizer que o fundamental é identificar padrões. Note que por isto mesmo, entre muitos recortes que poderiam ilustrar o texto, preferi os que expõem aspectos da legislação punitiva aplicável aos escravos.
ExcluirQuanto aos seus arquétipos, poderíamos incluir vários outros, mas sem uma base documental caímos no plano da literatura. Eu não apostaria sequer um churrasquinho grego na sua tese de que o escravo único do senhor pouco abastado recebia em regra o tratamento do "mucamo" da Iaiá Garcia de Machado de Assis.
Quanto à outra tese, a de que a vítima se fazia algoz, penso que o escravo permanecia como vítima até ao usar a foice contra o senhor ou o feitor, visto que na quase totalidade dos casos seu destino seria o patíbulo ou a condição de galé
Peço desculpas pela demora na atualização.
Boa tarde.
ResponderExcluirEscravidão alguma é benevolente. O fato de você tirar a liberdade de alguém e privá-la de sua liberdade é algo atroz.
Já discuti religião pela web e sempre aparece um cristão ou um muçulmano tentando "relativizar" as declarações estúpidas da Bíblia e do Corão que legitimam a escravidão. Repito: não existe escravidão benevolente.