quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O que realmente enfurece a direita

Curso pré-vestibular gratuito em Montes Claros (MG) 

                    
       A oposição de direita ao governo Dilma, do mais refinado liberal ao mais truculento saudosista de 1964, é relativamente coesa no teor das críticas que seus integrantes fazem à coalizão no poder.  A ampliação dos programas de distribuição de renda é apontada como estímulo ao parasitismo dos mais pobres.  A concessão de zonas aráveis a agricultores sem terra, índios e/ou quilombolas torna-se o prenúncio demagógico da falência da lavoura de exportação e do alastramento, a médio prazo, da fome pelo território brasileiro.  As mais tímidas iniciativas de defesa dos Direitos Humanos das classes C, D e E e da população encarcerada, ou contra práticas de tortura e extermínio por parte do aparato repressivo oficial, são associadas ao aumento da criminalidade e à desproteção dos segmentos proprietários, sempre com o auxílio das estatísticas estaduais mais favoráveis à tese.  O esboço de uma política externa independente é classificado como aliança com nações párias, quando não com o terrorismo.  Sobretudo, identifica-se vulgarmente os anos a partir de 2003 como o período mais corrupto da história do Brasil, sem que haja a preocupação de se estabelecer os critérios utilizados na comparação.
           Não é preciso refletir muito para encontrar as hipocrisias e incoerências do discurso.  Os conservadores que apedrejam o Bolsa-Família lamentavam, em passado relativamente próximo, a "invasão" maciça de retirantes em suas cidades e estados.  A "vanguarda do agronegócio", enquanto apregoa a modernidade econômica e o domínio de tecnologias avançadas, mantém o mesmo projeto dos antigos senhores de engenho e cafeicultores escravistas de expansão da produção pela incorporação constante de novas terras; o argumento pueril de que faltará comida no futuro se suas reivindicações não forem atendidas desmorona pela mera constatação de que a população brasileira está parando de crescer. Os adeptos da Solução Carandiru e da Gratificação Faroeste preferem ignorar que consecutivas políticas de matança tiveram como resultados essenciais a desconfiança generalizada do povo em relação aos órgãos de segurança e a construção da imagem externa de um país incivilizado. A "defesa da democracia" empreendida pelos direitistas não raro se faz acompanhar pela apologia da última ditadura (ou pela minimização de suas mazelas), passando ao largo do julgamento dos laços do governo autoritário brasileiro com aliados como Pinochet e Videla e com os agentes extra-oficiais das guerras sujas contrarrevolucionárias.  São desprezados no quesito corrupção, como atos amadores de delinquência, as numerosas privatarias dos mandatos de FHC e os eventos sempre impunes e mal investigados do regime civil-militar: Globo- Time Life, superfaturamento da Transamazônica, Lutfalla, Polonetas, Capemi, Escândalo da Mandioca, Coroa Brastel...   
            Sou levado a crer, portanto, que a direita detesta o governo atual e a herança lulista menos por seus defeitos do que pelo que pode apresentar como realização: a redução das desigualdades.  Nisto, aliás, alguns extremistas raivosos não hesitam em estender seu ódio ao próprio Fernando Henrique, visto como introdutor de projetos "socialistas".  Nesta semana, tivemos notícias [ver link abaixo] que, se ainda não estimulam comemorações, pelo menos nos permitem conceber que dentro de algumas décadas se instale no Brasil um nível "português" ou "uruguaio" de (des)equilíbrio social.  Finalmente, o país aparenta estar deixando para trás os tempos em que disputava com Honduras, Serra Leoa e Botswana a copa da pior distribuição de renda do planeta.                  


http://ne10.uol.com.br/canal/cotidiano/economia/noticia/2012/11/28/pais-atinge-em-2011-menor-desigualdade-em-30-anos-383723.php

 
         Presumo com boa dose de convicção que a indignação conservadora, em especial quando vinda da pequena burguesia, se relaciona à impressão de perda de status e da influência que esta última tradicionalmente exercia, até em termos eleitorais, sobre as classes populares.  A direita brasileira ainda parece sonhar com mão de obra semigratuita e submissa, com um mundo em que cada gerente de banco, chefe de repartição pública ou dono de mercearia se sinta como um nobre medieval pronto a distribuir ou negar dádivas aos miseráveis que o rodeiam, conforme o grau de resignação. Aos governos reformistas, que entre diversas contradições permitem pequenos aumentos, porém constantes, da massa salarial dos trabalhadores de escolaridade média e fundamental (ou menor), fica reservado um bizarro rótulo: engenheiros sociais!!!              


















             Não tripudio sobre o cadáver do adversário: os projetos direitistas de sociedade ainda se aproximam, muito mais do que o "meu", da realidade brasileira, como verificamos por outras estatísticas publicadas na matéria:     



            Mesmo diante da exposição destas verdadeiras vergonhas nacionais, a direita, como de costume, clama por mais desigualdade.  Clama por um Brasil em que as mulheres nunca recebam mais do que três quartos dos salários masculinos.  Por um Brasil em que os não brancos nunca ganhem mais do que três quintos dos rendimentos dos brancos.  Por um Brasil em que o arquiteto receba trinta vezes mais do que o mestre de obras.  Afastemo-la do poder, por no mínimo quinhentos anos!
                   




segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O Estado imperial contra negros, índios e ciganos


                     
                  Uma certa mitologia, ainda popular entre os conservadores brasileiros, alinha entre as "realizações" do regime monárquico a abolição da escravatura, não obstante o fato de que, durante 65 anos e 8 meses, o braço escravo tenha sustentado a produção econômica fundamental do país.  Nesta versão, o suave cativeiro dos africanos e seus descendentes no Brasil prolongou-se até 1888 pela extrema necessidade da maioria dos fazendeiros, aliás generosos, salvo poucas exceções, para com seus dependentes.  A vontade de todos deixava de se concretizar para evitar que a economia nacional quebrasse. Não é impossível, até, encontrar quem glorifique a lentidão das medidas emancipacionistas, amortecendo prováveis conflitos, em contraste com o que ocorreu nos Estados Unidos entre 1861 e 1865.  Coloca-se no centro da lenda imperial a dinastia reinante, capaz de arriscar o próprio trono contra os interesses do setor mais reacionário dos plantadores escravistas.
              Recorro ao relatório do Ministério da Justiça do ano de 1887, assinado por Antônio Ferreira Vianna (1833-1903), não somente para mais uma vez desconstruir a mitologia bragantina da Lei Áurea, como para comprovar o caráter intrinsecamente racista de uma sociedade estruturada sobre hierarquias de classe, gênero e também de etnia.  Os leitores mais interessados na História do Brasil provavelmente têm ciência das fugas coletivas do ano de 1887, nas quais escravos, libertos e livres abolicionistas uniram esforços no sentido de desorganizar o sistema escravista.  Boa parte deste movimento se concentrou na província de São Paulo, onde um grande quilombo, o Jabaquara, nas imediações de Santos, abrigou milhares de cativos auto-emancipados.
                Pelo relato de Ferreira Vianna, um membro do mesmo Partido Conservador que seria levado pela marcha dos acontecimentos a promover o 13 de maio, percebemos que o aparato repressivo pró-escravidão estava intacto na segunda metade de 1887.  O grupo de fugitivos que cruzou Itu em outubro daquele ano, combatido inicialmente pela polícia do município, foi perseguido sem sucesso por forças provinciais.  Em seguida, o governo central prestou solidariedade aos proprietários, mobilizando tropas regulares e um navio de guerra.  A retórica do ministro deixa claro que, para o Estado imperial, a propriedade sobre homens continuava a constituir um direito reconhecido.                            


                                        http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1881/000037.html
                                        http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1881/000038.html

       Diriam os adeptos do mito da democracia racial, com sua dose de razão, que há diferença entre atacar escravos fugidos e discriminar os negros em geral.  Prossigamos, então, na leitura do documento.  Relatando ocorrências policiais da província de Goiás, Ferreira Vianna deixa transparecer o preconceito, difundido na sociedade, porém aberrante como discurso oficial, contra os ciganos.  O termo "malta", sinônimo de associação de malfeitores, serve de rótulo para um grupo étnico que por seus costumes nômades tinha reputação de criminoso.    


          O ministro da Justiça, em relação às populações indígenas não integradas, se revela ainda mais preconceituoso, além de fazer coro a numerosos relatórios similares que apontam o índio sempre como agressor dos "civilizados" e jamais como vítima, mesmo que seu número declinasse progressivamente na maior parte do Império.  O índio, segundo Ferreira Vianna, é o "bugre", o "selvagem", a reclamar, alternadamente, a presença do monge, do policial e do soldado.     









            Antônio Ferreira Vianna foi um homem de seu tempo, me diriam liberais, conservadores, monarquistas de todas as tintas.  Um fascista anônimo talvez acrescentasse: que pena não ter mandado matar mais negros, índios e ciganos!  Não é minha intenção promover o julgamento da ossada de Ferreira Vianna, até porque outros, bem mais perversos em seu racismo, exigiriam prioridade.  Desejo apenas relembrar que há muito a se fazer pelas igualdades de fato no Brasil, quase tanto quanto em 1887, e que a mera igualdade jurídica do constitucionalismo liberal, desde a Carta de 1824, já provou que nunca atenderá à demanda.   

domingo, 25 de novembro de 2012

Um grande avô para os privatistas do ensino



        O Dr. Manoel de Queiroz Mattoso Ribeiro (1840-1914), morador da Corte, foi deputado provincial (cargo equivalente ao contemporâneo deputado estadual) pela província do Rio de Janeiro no biênio 1870/1871.  Representava o distrito eleitoral de Campos¹, que abrangia, a grosso modo, as municipalidades do norte fluminense.  Embora fosse filho de uma das maiores notabilidades do Segundo Reinado, o conselheiro Eusébio de Queiroz (1812-1868), aparentemente não ocupou postos muito relevantes durante o período monárquico.  Não o encontro na obra Parlamentares do Império, de Octaciano Nogueira e João Sereno Firmo (Brasília: Senado Federal, 1973), que salvo rara omissão contém as listagens dos mandatos de todos os integrantes da Câmara e do Senado de 1823 a 1889, incluindo ainda suas eventuais designações para as presidências de província.  Mattoso Ribeiro chegaria, entretanto, ao Senado na República, como suplente de Carlos Castrioto, que faleceu em 1894.  No auge da carreira política, entre os anos de 1896 e 1901, foi o vice-presidente daquela Casa². 
         Não avaliarei nesta matéria a projeção do parlamentar citado enquanto membro do Poder Legislativo regional, sua mais do que provável vinculação ao Partido Conservador (do qual seu pai foi um dos principais chefes), suas alianças ou rusgas com os demais deputados.  O que me despertou a atenção para este personagem algo obscuro foram as posições que adotou na sessão da Assembleia Provincial em 14 de outubro de 1870, na qual foi discutido um projeto sobre a implantação do ensino obrigatório no território fluminense.
       Reproduzir no espaço do blog todo o extenso debate daquela sessão excederia os limites do razoável.  Os que desejarem ler o texto integral podem acessar o programa de digitalização de periódicos da Biblioteca Nacional, a partir da seguinte página:  

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=218740&pasta=ano%20187&pesq=

       Enquanto o mesmo Carlos Castrioto que um dia lhe cederia involuntariamente uma vaga no Senado discursava com eloquência em prol da obrigatoriedade do aprendizado escolar, que julgava vital para um país dotado de sistema constitucional representativo, Mattoso Ribeiro se mostrava o mais enérgico entre os críticos do projeto.   


      A princípio, Mattoso Ribeiro combateu a proposta apresentando objeções de caráter econômico.  Segundo ele, os escassos recursos do Tesouro provincial seriam insuficientes para sustentar a universalização do ensino.  


      Porém, no calor da discussão, o deputado pelo distrito de Campos acabaria expondo convicções mais profundas.  Era francamente contrário à convivência entre crianças de origens sociais diferentes.  Emergem da fala breve, mas bastante instrutiva, a reprovação moral da pobreza, típica do liberalismo do século XIX, e o conceito positivo a respeito dos que "não têm de trabalhar", característico da classe senhorial do Império do Brasil.     


      Tal como um neoliberal de linha thatcherista, Mattoso Ribeiro pouco se importava com a penalização adicional imposta ao jovem pobre que, incapaz até de se vestir  adequadamente sem o auxílio do poder público, ficaria excluído da rede escolar em decorrência da pobreza.  Sua preocupação estava direcionada para as prováveis ofensas que sofreriam os que podiam pagar diante da presença de indesejáveis. 
         Considerando inadequada e financeiramente inviável a intervenção do Estado no sentido de estender a instrução a todas as classes, o deputado defendia uma solução certamente utópica, senão cínica: a escolarização dos pobres deveria depender das famílias que, por generosidade e sentimentos religiosos, se dispusessem a sustentá-los na qualidade de agregados. 


    

       O Dr. Manoel de Queiroz Mattoso Ribeiro, como vimos, desceu à sepultura há quase um século.  Suas ideias, contudo, alcançaram notável longevidade.  Sobrevivem nas palestras e livros de alguns publicistas que postulam a prioridade de um "ensino para as elites"; nas falas cotidianas dos cidadãos comuns que protestam contra a concessão de material escolar, merenda e transporte gratuitos "à turma que faz filho todos os anos", ainda que saibam que as taxas de natalidade no Brasil despencam há várias décadas; nas propostas dos políticos e lobistas que pretendem suprimir o ensino superior público, limitando as vagas universitárias aos capazes de "pagar bem", como diria Mattoso Ribeiro, com algumas exceções oferecidas aos bolsistas mais convenientes ao setor privado, numa atualização do programa de "caridade" sugerido pelo velho conservador. 
         A luta contra a concentração do saber, para as esquerdas, jamais pode sair da ordem do dia.         


1- Ver Almanak Laemmert, 1871, seção província, p. 3.
2- Ver Dados biográficos dos senadores do Rio de Janeiro, 1826-1997.  Brasília: Senado Federal, Secretaria de Informação e Documentação, 1997, p. 121.       

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Confederados no Imperio do Brazil: uma história de solidariedade entre escravocratas

Cemitério do Campo, em Santa Bárbara d'Oeste (SP), onde foram sepultados muitos confederados radicados no Brasil 


        Retorno ao livro de Gerald Horne, O Sul mais distante: o Brasil, os Estados Unidos e o tráfico de escravos africanos (São Paulo: Companhia das Letras, 2010), que adquiri há alguns meses.  Sob uma perspectiva bastante crítica, e fundamentado em vasta documentação, o autor percorre diversos temas no campo das relações entre Brasil e Estados Unidos no século XIX.  Entre eles, sobressaem pouco mais de sessenta páginas sobre um processo que, embora não seja estranho ao público mais letrado, certamente é ignorado pela maioria dos brasileiros: a presença  no país de milhares de confederados norte-americanos após a derrota na Guerra de Secessão (1861-1865). 

      Ainda antes da destruição militar completa, fazendeiros do Sul dos Estados Unidos faziam preparativos para se estabelecer no único país que viam, desde a formação dos Estados Confederados da América, como um parceiro solidário no escravismo.  Em outubro de 1864, o jornal The New York Times anunciou que proprietários da Carolina do Sul pretendiam rumar para o Brasil.  Semanas mais tarde, o periódico noticiava que os fazendeiros sulistas, já operacionalizando a mudança, tinham o objetivo de "ficar com seus escravos num lugar onde não serão molestados".   

       O número dos confederados que vieram para o Brasil é incerto.  Sem deixar de assinalar que há cálculos que apontam para um total de vinte mil, Horne opina que a metade disso talvez seja uma cifra mais aceitável.  Dos seis assentamentos que surgiram na "maior migração planejada ocorrida nos Estados Unidos", apenas um vingou, dando origem à cidade de Americana, na antiga província e atual estado de São Paulo.  

       Não me prenderei às circunstâncias relacionadas ao fracasso dos estabelecimentos criados por estes imigrantes, suas desilusões com a sociedade que muitos idealizavam como a Meca da escravidão, seu retorno em elevada proporção para os Estados Unidos.  Penso que, para os leitores deste blog, é mais interessante voltar o olhar para a forma com que os confederados foram recebidos no Império, sobre a qual Horne apresenta variadas informações.  Após examinar o fundo denominado Cartas recebidas da legação e do consulado do Brasil em 1865 de cidadãos americanos depois da Guerra Civil (Emigração, 1865-66, Washington, Ofícios, Arquivo Histórico do Itamaraty- Rio de Janeiro), o autor concluiu que

O império, que tentava atrair imigrantes da Europa, ao mesmo tempo que mandava embora os de ascendência africana, estava aberto para os euro-americanos, que eram hostis aos Estados Unidos.

     Um dos diplomatas que acompanharam a migração, James Monroe, atestou a "amistosa atenção" e a "distinção", com que os norte-americanos foram tratados pelas autoridades imperiais.  Sem qualquer embaraço, puderam comprar ou alugar terras e escravos.  A passagem de navio de Nova York para o Rio de Janeiro, em torno de 122 dólares, era cara para os padrões da época; porém, após o registro da entrada, o governo brasileiro restituía prontamente este valor, mais uma prova de que os imigrantes eram bem vindos.
         Para decepção dos escravocratas da vencida Confederação, a monarquia mais ao sul possuía outros objetivos além do adiamento da abolição da escravatura: pretendia embranquecer sua população. Quando o general confederado Wallace Wood apresentou seu plano de trazer sessenta mil pessoas para o Brasil, nisto incluídos ex-escravos dispostos a acompanhar seus ex-senhores, esbarrou na resistência à entrada de negros, livres ou cativos, no Império.  O diplomata britânico Edward Thornton, que teve ciência das negociações, registrou que "o maior desejo do governo e das autoridades brasileiras em geral era que não houvesse importação de negros".  Na mesma linha, e desdenhando da possibilidade de que cinquenta mil sulistas se transferissem para o Brasil, The New York Times, em dezembro de 1865, advertiu que "nem escravos nem pessoas de cor terão permissão para entrar". 
      Contudo, a simpatia da monarquia pelos confederados não se deteve nem perante o risco de prejudicar gravemente suas relações com o governo de Washington, principal comprador do café brasileiro.  O influente senador norte-americano Charles Sumner, que já criticara o Império, em fins da guerra civil, por ter reconhecido os sulistas como beligerantes legais no oceano, sugeriria a seus pares, diante da  posição brasileira de acolher confederados irredutíveis, o rompimento das "relações diplomáticas com potências que mantêm a escravidão".  Gerald Horne destaca que o Império permitiu aos ex-rebeldes trazer "algum equipamento militar", o que foi visto pelo governo da União Norte-Americana como um ato hostil.  O entusiasmo dos dirigentes imperiais confrontados com aquela imprevista corrente migratória levou Francisco de Paula Sousa, ministro da Agricultura em 1866, a comparar os confederados norte-americanos com os huguenotes expulsos da França no decorrer das perseguições religiosas da Idade Moderna, sonhando que o Brasil fosse beneficiado pela transferência de homens empreendedores, trabalhadores e ricos.   

                                                    Gerald Horne, professor da Universidade de Houston, no Texas
  
     As medidas de apoio do Estado brasileiro aos confederados encontravam, evidentemente, respaldo na classe senhorial do país.   Chegando ao Brasil em outubro de 1865, Wallace Wood se encaminhou a São Paulo, onde o grande comércio recebeu-o com pompa.  Mesmo discursando somente em inglês, não sendo compreendido por praticamente ninguém, recebeu os aplausos de uma multidão, enquanto prometia atrair cem mil famílias dos melhores cidadãos da América do Norte. 
         Mais uma vez, fica exposta a falácia da monarquia virtuosa, cujos estadistas, sob a batuta de uma espécie de santo protetor vivo, tentavam conciliar uma justa libertação dos escravos com os interesses econômicos fundamentais do país.  Não escrevo esta resenha para combater os punhados de visionários, espalhados pelo Brasil, que querem coroar um D. Pedro III em Brasília, mas sim para colocar em evidência o que a sociedade imperial legou de pior para a República:  conservadorismo social, elitismo, racismo.  Ainda temos que nos entender, e muito, com o século XIX.  
         
         






             

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Quase cem anos anos de coerência

Ahmed Ben Bella (1916-2012)

"Sim, a minha vida é uma vida de combate; posso dizer que isso nunca parou um só instante.  Um combate que comecei com a idade de 16 anos.  Tenho 90 anos e a minha motivação ainda não mudou: é o mesmo fervor que me anima".  

           
        A citação que abre esta postagem me desperta entusiasmo, sobretudo se confrontada com o conformismo que prevalece em largas faixas das sociedades do século XXI, sem poupar boa parte dos jovens e certos setores que se pretendem de esquerda, contagiando inclusive alguns homens que pegaram em armas contra ditaduras militares pró-oligárquicas e/ou exércitos coloniais.  Não gratuitamente, as três frases simples e curtas partiram de uma das principais lideranças dos movimentos de descolonização que, mesmo fracassando em várias de suas metas, resultaram nas independências formais da maioria dos países africanos e asiáticos: Ahmed Ben Bella.  
        Nascido na Argélia sob ocupação francesa, Ben Bella aderiu ainda na juventude às ideias nacionalistas, o que não o impediu de se engajar, ao lado das tropas francesas, na luta contra o nazismo, recebendo condecoração por seu desempenho nos campos de batalha da Itália.  Ainda que cerca de 60 mil argelinos tivessem morrido em combate durante a Segunda Guerra Mundial, as forças da metrópole não hesitariam em atirar contra os manifestantes que foram às ruas da localidade de Sétif, em 8 de maio de 1945, clamar pela libertação, o que demonstrou em definitivo que, em seu próprio país, eram súditos de terceira categoria e não cidadãos.
          Estruturando-se de maneira mais nítida, na década seguinte, as organizações empenhadas na luta pela autonomia, Ben Bella participou em 1954 da fundação do CRUA (Comitê Revolucionário de Unidade e Ação), cuja sede funcionou inicialmente no Cairo.  Lamentavelmente, além dos soldados metropolitanos e dos colonos reacionários, os nacionalistas enfrentavam igualmente a oposição de uma parcela da esquerda francesa que compartilhava com François Mitterrand, ministro do Interior, a opinião de que "A Argélia é a França e a França não se negocia".  Adotando a posição inversa, o grupo da revista Les Temps Modernes", no qual sobressaía Jean-Paul Sartre, incentivava os autonomistas e denunciava sem cessar as atrocidades dos colonialistas e a omissão da grande imprensa francesa. 
         Como dirigente da Frente de Libertação Nacional, Ben Bella, em outubro de 1956, quando a guerra pela independência já se alastrava pela Argélia, esteve entre os passageiros de um avião comercial marroquino que foi sequestrado por agentes da repressão no percurso entre Rabat e Túnis, permanecendo no cárcere até o término do conflito militar.  Em agosto de 1962, chegou à presidência da nação recém-independente, eleito por uma Assembleia Nacional Constituinte comandada por outro líder nacionalista, Ferhat Abbas.  
       A gestão Ben Bella se caracterizou por diretrizes socializantes: as empresas rurais deixadas pelo colonos franceses em fuga foram postas sob a administração dos próprios trabalhadores; ao contrário do que presumiriam, de pronto, os neoliberais de plantão, já em 1963 se verificou uma colheita acima do esperado.  Naquele mesmo ano, o governo nacionalizou as propriedades agrícolas.  Na política externa, havia um decidido compromisso anticolonial: Ben Bella apoiou os movimentos que iniciavam a luta de guerrilha pela emancipação de Angola (inclusive oferecendo-lhes voluntários) e os nacionalistas sul-africanos inimigos do apartheid.  O empenho em expandir a revolução pelo restante do continente africano rendeu-lhe críticas dos setores políticos argelinos interessados somente nas questões internas.  Em julho de 1965, o presidente foi derrubado por um ex-aliado, o coronel Houari Boumedienne, que agora o acusava de personalismo no exercício do poder¹. 
         Leio hoje uma entrevista concedida por Ben Bella à jornalista Silvia Cattori, em Genebra, a  16 de abril de 2006:

http://misosoafricapt.wordpress.com/ahmed-ben-bella-argelia/ 

       Pela diversidade dos temas, pela agudeza de análise, pela extensão do tempo histórico observado por Ben Bella, poderíamos passar um mês debatendo sobre a reportagem com proveito.  Como minhas demais ocupações tornam a tarefa praticamente inviável, limito-me a destacar algumas das passagens mais significativas.      

         
          Aqui temos (mas não apenas isto!) uma desmistificação do lugar comum, bastante difundido, de que sendo a ânsia de poder generalizada entre os homens, o imperialismo se converte em  algo natural e atemporal.  Nesta visão, tornam-se similares, exceto no que diz respeito à tecnologia disponível em cada um destes eventos, o Império Persa atacando as pólis gregas, os vikings invadindo a Irlanda na Alta Idade Média, Pedro Álvares Cabral ordenando o bombardeio de Calicute para quebrar o monopólio muçulmano sobre o comércio das especiarias, oficiais subalternos dos Estados Unidos exterminando camponeses vietnamitas para salvá-los do comunismo (ou para salvar o capitalismo).  Ignora-se, de forma muito conveniente para os "burgueses sem fronteiras", que o colonialismo moderno é um fenômeno datado, ideologicamente fundamentado, que atende às conveniências do modo de produção e aciona a solidariedade de comunidades específicas.  Caso contrário, o mundo não teria visto, com notável frequência, Estados capitalistas com interesses distintos e até antagônicos se auxiliando mutuamente na defesa da ordem ultramarina. Ben Bella alude também à necessária cooperação entre os povos vitimizados pelo imperialismo e pelas dominações coloniais, não obstante suas diferenças doutrinárias, religiosas ou fenotípicas, o que ainda precisa ser compreendido por pessoas e grupos imbuídos de ótimas intenções, porém sectários.        

       
         Diante do individualismo pós-moderno, que com apelos retóricos à liberdade desmobiliza os homens e expõe quase todos a relações de poder desfavoráveis, o nonagenário Ben Bella reafirma seu coletivismo, que não exclui sacrifícios individuais extremos em benefício da emancipação dos povos.  A exposição do estadista nos remete a uma verdade inconveniente, mas que deve ser dita em bom som: uma parcela enorme do que se entende como ordenamento jurídico internacional se produziu quando somente uma pequena minoria entre as sociedades se fazia representar na esfera diplomática, e mesmo assim em condições em tudo desiguais.  De forma talvez mais explícita do que na atualidade, as relações internacionais eram pautadas maciçamente na primazia do mais forte e, muitas vezes, pela afirmação segundo as referências ideológicas do mais forte do que era justo, possível ou desejável e, portanto, deveria prevalecer.       

            
         A narrativa nos remete à figura da hidra de muitas cabeças, capaz de fazer brotar duas novas no lugar de cada uma que seja cortada.  Para se livrar de seus adversários mais perigosos ou obstinados, o sistema capitalista nem sempre se vale de Francos e Pinochets, mesmo que alguns deles estejam permanentemente à mão.  Nem sempre o substituto de um Lumumba será um Mobutu. Em determinadas ocasiões, políticos "progressistas", mas dispostos a moderar bastante suas agendas em troca do aval dos "países centrais" e da estabilidade no poder, são a melhor alternativa contra os que "se recusam a colaborar".     


        Vivendo em trânsito entre o Sul e o Norte, entre a África e a Europa, e do alto de pelo menos sete décadas de vida política, Ben Bella atesta, mesmo no que se refere a países tecnologicamente avançados, a incapacidade do capitalismo em produzir bem estar, em solucionar as mazelas sociais que, ao contrário, são "vendidas" como efeitos colaterais inevitáveis e eternos que devem ser naturalizados por quem deseja ter sua dose de sossego.   Reafirma, numa conjuntura em que muitos conservadores rançosos se queixam dos "malefícios da geração Woodstock", a preponderância dos jovens nos processos de contestação e mudança.
         Ben Bellas, Agostinhos Netos, Sandinos, Guevaras, nunca morrem.  Tremei, imperialistas!  Tremei, burgueses!      
          

1-Os dados factuais apresentados sobre Ben Bella e o processo de independência da Argélia estão em Mustafa Yazbek.  Argélia: a guerra e a independência.  São Paulo: Brasiliense, 1983.