Ahmed Ben Bella (1916-2012)
"Sim, a minha vida é uma vida de combate; posso dizer que isso nunca parou um só instante. Um combate que comecei com a idade de 16 anos. Tenho 90 anos e a minha motivação ainda não mudou: é o mesmo fervor que me anima".
A citação que abre esta postagem me desperta entusiasmo, sobretudo se confrontada com o conformismo que prevalece em largas faixas das sociedades do século XXI, sem poupar boa parte dos jovens e certos setores que se pretendem de esquerda, contagiando inclusive alguns homens que pegaram em armas contra ditaduras militares pró-oligárquicas e/ou exércitos coloniais. Não gratuitamente, as três frases simples e curtas partiram de uma das principais lideranças dos movimentos de descolonização que, mesmo fracassando em várias de suas metas, resultaram nas independências formais da maioria dos países africanos e asiáticos: Ahmed Ben Bella.
Nascido na Argélia sob ocupação francesa, Ben Bella aderiu ainda na juventude às ideias nacionalistas, o que não o impediu de se engajar, ao lado das tropas francesas, na luta contra o nazismo, recebendo condecoração por seu desempenho nos campos de batalha da Itália. Ainda que cerca de 60 mil argelinos tivessem morrido em combate durante a Segunda Guerra Mundial, as forças da metrópole não hesitariam em atirar contra os manifestantes que foram às ruas da localidade de Sétif, em 8 de maio de 1945, clamar pela libertação, o que demonstrou em definitivo que, em seu próprio país, eram súditos de terceira categoria e não cidadãos.
Estruturando-se de maneira mais nítida, na década seguinte, as organizações empenhadas na luta pela autonomia, Ben Bella participou em 1954 da fundação do CRUA (Comitê Revolucionário de Unidade e Ação), cuja sede funcionou inicialmente no Cairo. Lamentavelmente, além dos soldados metropolitanos e dos colonos reacionários, os nacionalistas enfrentavam igualmente a oposição de uma parcela da esquerda francesa que compartilhava com François Mitterrand, ministro do Interior, a opinião de que "A Argélia é a França e a França não se negocia". Adotando a posição inversa, o grupo da revista Les Temps Modernes", no qual sobressaía Jean-Paul Sartre, incentivava os autonomistas e denunciava sem cessar as atrocidades dos colonialistas e a omissão da grande imprensa francesa.
Como dirigente da Frente de Libertação Nacional, Ben Bella, em outubro de 1956, quando a guerra pela independência já se alastrava pela Argélia, esteve entre os passageiros de um avião comercial marroquino que foi sequestrado por agentes da repressão no percurso entre Rabat e Túnis, permanecendo no cárcere até o término do conflito militar. Em agosto de 1962, chegou à presidência da nação recém-independente, eleito por uma Assembleia Nacional Constituinte comandada por outro líder nacionalista, Ferhat Abbas.
A gestão Ben Bella se caracterizou por diretrizes socializantes: as empresas rurais deixadas pelo colonos franceses em fuga foram postas sob a administração dos próprios trabalhadores; ao contrário do que presumiriam, de pronto, os neoliberais de plantão, já em 1963 se verificou uma colheita acima do esperado. Naquele mesmo ano, o governo nacionalizou as propriedades agrícolas. Na política externa, havia um decidido compromisso anticolonial: Ben Bella apoiou os movimentos que iniciavam a luta de guerrilha pela emancipação de Angola (inclusive oferecendo-lhes voluntários) e os nacionalistas sul-africanos inimigos do apartheid. O empenho em expandir a revolução pelo restante do continente africano rendeu-lhe críticas dos setores políticos argelinos interessados somente nas questões internas. Em julho de 1965, o presidente foi derrubado por um ex-aliado, o coronel Houari Boumedienne, que agora o acusava de personalismo no exercício do poder¹.
Leio hoje uma entrevista concedida por Ben Bella à jornalista Silvia Cattori, em Genebra, a 16 de abril de 2006:
http://misosoafricapt.wordpress.com/ahmed-ben-bella-argelia/
Pela diversidade dos temas, pela agudeza de análise, pela extensão do tempo histórico observado por Ben Bella, poderíamos passar um mês debatendo sobre a reportagem com proveito. Como minhas demais ocupações tornam a tarefa praticamente inviável, limito-me a destacar algumas das passagens mais significativas.
Aqui temos (mas não apenas isto!) uma desmistificação do lugar comum, bastante difundido, de que sendo a ânsia de poder generalizada entre os homens, o imperialismo se converte em algo natural e atemporal. Nesta visão, tornam-se similares, exceto no que diz respeito à tecnologia disponível em cada um destes eventos, o Império Persa atacando as pólis gregas, os vikings invadindo a Irlanda na Alta Idade Média, Pedro Álvares Cabral ordenando o bombardeio de Calicute para quebrar o monopólio muçulmano sobre o comércio das especiarias, oficiais subalternos dos Estados Unidos exterminando camponeses vietnamitas para salvá-los do comunismo (ou para salvar o capitalismo). Ignora-se, de forma muito conveniente para os "burgueses sem fronteiras", que o colonialismo moderno é um fenômeno datado, ideologicamente fundamentado, que atende às conveniências do modo de produção e aciona a solidariedade de comunidades específicas. Caso contrário, o mundo não teria visto, com notável frequência, Estados capitalistas com interesses distintos e até antagônicos se auxiliando mutuamente na defesa da ordem ultramarina. Ben Bella alude também à necessária cooperação entre os povos vitimizados pelo imperialismo e pelas dominações coloniais, não obstante suas diferenças doutrinárias, religiosas ou fenotípicas, o que ainda precisa ser compreendido por pessoas e grupos imbuídos de ótimas intenções, porém sectários.
Diante do individualismo pós-moderno, que com apelos retóricos à liberdade desmobiliza os homens e expõe quase todos a relações de poder desfavoráveis, o nonagenário Ben Bella reafirma seu coletivismo, que não exclui sacrifícios individuais extremos em benefício da emancipação dos povos. A exposição do estadista nos remete a uma verdade inconveniente, mas que deve ser dita em bom som: uma parcela enorme do que se entende como ordenamento jurídico internacional se produziu quando somente uma pequena minoria entre as sociedades se fazia representar na esfera diplomática, e mesmo assim em condições em tudo desiguais. De forma talvez mais explícita do que na atualidade, as relações internacionais eram pautadas maciçamente na primazia do mais forte e, muitas vezes, pela afirmação segundo as referências ideológicas do mais forte do que era justo, possível ou desejável e, portanto, deveria prevalecer.
A narrativa nos remete à figura da hidra de muitas cabeças, capaz de fazer brotar duas novas no lugar de cada uma que seja cortada. Para se livrar de seus adversários mais perigosos ou obstinados, o sistema capitalista nem sempre se vale de Francos e Pinochets, mesmo que alguns deles estejam permanentemente à mão. Nem sempre o substituto de um Lumumba será um Mobutu. Em determinadas ocasiões, políticos "progressistas", mas dispostos a moderar bastante suas agendas em troca do aval dos "países centrais" e da estabilidade no poder, são a melhor alternativa contra os que "se recusam a colaborar".
Vivendo em trânsito entre o Sul e o Norte, entre a África e a Europa, e do alto de pelo menos sete décadas de vida política, Ben Bella atesta, mesmo no que se refere a países tecnologicamente avançados, a incapacidade do capitalismo em produzir bem estar, em solucionar as mazelas sociais que, ao contrário, são "vendidas" como efeitos colaterais inevitáveis e eternos que devem ser naturalizados por quem deseja ter sua dose de sossego. Reafirma, numa conjuntura em que muitos conservadores rançosos se queixam dos "malefícios da geração Woodstock", a preponderância dos jovens nos processos de contestação e mudança.
Ben Bellas, Agostinhos Netos, Sandinos, Guevaras, nunca morrem. Tremei, imperialistas! Tremei, burgueses!
1-Os dados factuais apresentados sobre Ben Bella e o processo de independência da Argélia estão em Mustafa Yazbek. Argélia: a guerra e a independência. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Agradeço as visitas recentes dos leitores do Brasil, Estados Unidos, Portugal, França, Alemanha, Argentina, Cabo Verde, Reino Unido, Itália e Moçambique.
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