"Um funcionário do governo sai a passeio com a família", de Jean-Baptiste Debret
Jamais tive em boa conta a figura de Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951). Apesar de sua inteligência e erudição, da retórica límpida e instigante, é inevitável relacionar os escritos deste autor ao elitismo mais perverso e contraditório. Durante a graduação em História, por volta de 1990, li com atenção Populações meridionais do Brasil, livro cuja edição original remonta ao ano de 1920. Experimentei a indignação típica da juventude pela maneira como o autor tratava a maioria esmagadora da população brasileira, descrita como uma escória, em contraste com a adulação dirigida à entidade mítica intitulada "aristocracia rural ariana". Tive imenso prazer quando alguns anos mais tarde comprei A ideologia do colonialismo, de Nelson Werneck Sodré (1911-1999), e vi Oliveira Vianna ser dissecado sem piedade em milhares de linhas virulentas, que desqualificavam os ideais do acadêmico de Saquarema como um reles "delírio ariano".
Não vou minimizar o reacionarismo de Oliveira Vianna, mesmo que há muito tenha esquecido o impulso de lhe incinerar os ossos. Tenho a convicção de que o Brasil estaria bem pior caso seus projetos prevalecessem. Entretanto, ao percorrer as páginas de Instituições políticas brasileiras, obra publicada pela primeira vez em 1949, que adquiri por ser parte da bibliografia de algum dos muitos concursos públicos que já fiz, encontro reflexões das mais lúcidas, de alta precisão histórica, e não devo perder a oportunidade de comentá-las por preconceito ideológico.
(...) as câmaras- a única forma de governo de origem popular existente na Colônia- não eram expressões representativas do povo-massa e, sim, do povo-elite, da "nobreza da terra". O povo-massa nunca teve participação, nem direta, nem de direito, no governo destas comunas, no período colonial. Quando influía, era por intermédio dos procuradores do povo. Estes, porém, não pertenciam, pelo status, ao povo-massa, embora lhe fossem os representantes ou delegados: eram também gente da elite, da nobreza, homens de qualificação. (Instituições políticas brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP; Niterói: EdUFF, 1987, vol. I, p. 117-118)
(...) para que os elementos do povo-massa chegassem às Câmaras e aos cargos locais de qualificação- era preciso que eles adquirissem antes a condição de nobreza, mesmo que esta nobreza fosse simulada ou falsificada. Nas Câmaras, eles entravam, portanto, como representantes desta classe aristocrática de "homens bons" e não como representantes da classe "mecânica" das cidades ou do povo-massa dos campos. O exercício de cargo eletivo ou de nomeação, importando numa dignidade, despojava consequentemente o ocupante de sua condição de plebeu ou de elemento do povo-massa- o que prova que esta classe que governava era uma aristocracia. (Idem, p. 119)
Do eleitorado daquele tempo, como já acentuamos, estavam afastados os negociantes "de vara e côvado" e os taverneiros (os que mantinham "logea aberta"), bem como os seus empregados; os que praticavam "artes mecânicas" (que trabalhavam em "ofícios" manuais); e os pardos, e os mulatos, e os mestiços de todo gênero; e os trabalhadores do campo, massa enorme que forma hoje a quase totalidade do nosso eleitorado. Este grupo de "gente mecânica" e de "baixa mão", como então se dizia, não tinha direito a ser incluído nos pelouros. Ninguém nela votava; ninguém dela podia ser eleito para as câmaras ou quaisquer outros cargos públicos: - e seria escândalo enorme se o fosse. (Ibidem, p. 119-120)
Temos nestes três parágrafos uma síntese da verdadeira herança maldita do país, cuja origem alguns querem restringir à ditadura civil-militar de 1964, outros aos dois mandatos de FHC, e que a direita assanhada (na inesquecível expressão de Leonel de Moura Brizola) do século XXI tenta imputar a Lula, mas que na verdade tem raízes nas profundezas do período colonial. Falta ao Brasil um mínimo de vivência republicana, de reconhecimento dos homens e mulheres nascidos nas classes C, D e E como sujeitos de direitos básicos em pé de igualdade com os demais, que aliás constituem uma minoria pouco numerosa.
Localizamos nas linhas copiadas de Oliveira Vianna, sem contestação possível, o alto grau de hipocrisia que marca nossa sociedade desde a sua fundação. Há trezentos anos o neto bacharel do mercador de escravos "de sangue infecto" poderia se converter em ouvidor de uma capitania apagando com uma bolsa de patacas as manchas do passado, talvez na mesma vila em que o bisneto oculto da negra mina escravizada fizesse valer sua condição de dono de cem escravos para se afirmar como presidente da Câmara Municipal. Hoje, muitos netos dos mais notórios grileiros, ladrões de gado e contratadores de jagunços da primeira metade do século XX posam de membros da boa sociedade e invocam uma tradição inteiramente inventada (na genial expressão de Eric J. Hobsbawn e Terence Ranger) para legitimar a distância que supostamente deve separá-los da "nova classe média", para não falar dos pobres propriamente ditos. Mudaram, sem dúvida, as formas de obtenção e manutenção de status, mas muito das estruturas sociais da colônia sobrevive em sua essência.
A distinção entre os que podem ou não ocupar cargos, não mais vinculada aos artigos das Ordenações Filipinas, mas sim aos laços estabelecidos com os donos do capital, se desdobra na detestável "lógica da dádiva", dentro da qual os avanços sociais, por menores que sejam, são descaracterizados como conquistas populares e apresentados como concessões de uma elite esclarecida. Os promotores das "dádivas", por sua vez, continuam a assumir teatralmente a posição de aristocratas, por mais que conheçam seus laços culturais e consanguíneos com os sucessores diretos do "povo-massa" de Oliveira Vianna.
Cabe a todos nós, descendentes de cativos e de senhores de cativos, de índios apresados e de seus apresadores, de cristãos novos e de cristãos velhos, sepultar as práticas ancestrais de discriminação, autoritarismo e privilégio. Mandemos de volta para alguma caverna das Astúrias "nosso" simulacro de aristocracia e os servos que desejarem acompanhá-lo, com todos os seus atavismos medievais, para construir uma sociedade de iguais, de preferência mais radical em seu igualitarismo do que qualquer outra que já tenha existido.
Obs: Agradeço aos leitores assíduos e ocasionais, aos divulgadores do blog e a meus detratores o recorde de visualizações registrado em junho de 2013. Te cuida, Paulo Coelho!
Temos nestes três parágrafos uma síntese da verdadeira herança maldita do país, cuja origem alguns querem restringir à ditadura civil-militar de 1964, outros aos dois mandatos de FHC, e que a direita assanhada (na inesquecível expressão de Leonel de Moura Brizola) do século XXI tenta imputar a Lula, mas que na verdade tem raízes nas profundezas do período colonial. Falta ao Brasil um mínimo de vivência republicana, de reconhecimento dos homens e mulheres nascidos nas classes C, D e E como sujeitos de direitos básicos em pé de igualdade com os demais, que aliás constituem uma minoria pouco numerosa.
Localizamos nas linhas copiadas de Oliveira Vianna, sem contestação possível, o alto grau de hipocrisia que marca nossa sociedade desde a sua fundação. Há trezentos anos o neto bacharel do mercador de escravos "de sangue infecto" poderia se converter em ouvidor de uma capitania apagando com uma bolsa de patacas as manchas do passado, talvez na mesma vila em que o bisneto oculto da negra mina escravizada fizesse valer sua condição de dono de cem escravos para se afirmar como presidente da Câmara Municipal. Hoje, muitos netos dos mais notórios grileiros, ladrões de gado e contratadores de jagunços da primeira metade do século XX posam de membros da boa sociedade e invocam uma tradição inteiramente inventada (na genial expressão de Eric J. Hobsbawn e Terence Ranger) para legitimar a distância que supostamente deve separá-los da "nova classe média", para não falar dos pobres propriamente ditos. Mudaram, sem dúvida, as formas de obtenção e manutenção de status, mas muito das estruturas sociais da colônia sobrevive em sua essência.
A distinção entre os que podem ou não ocupar cargos, não mais vinculada aos artigos das Ordenações Filipinas, mas sim aos laços estabelecidos com os donos do capital, se desdobra na detestável "lógica da dádiva", dentro da qual os avanços sociais, por menores que sejam, são descaracterizados como conquistas populares e apresentados como concessões de uma elite esclarecida. Os promotores das "dádivas", por sua vez, continuam a assumir teatralmente a posição de aristocratas, por mais que conheçam seus laços culturais e consanguíneos com os sucessores diretos do "povo-massa" de Oliveira Vianna.
Cabe a todos nós, descendentes de cativos e de senhores de cativos, de índios apresados e de seus apresadores, de cristãos novos e de cristãos velhos, sepultar as práticas ancestrais de discriminação, autoritarismo e privilégio. Mandemos de volta para alguma caverna das Astúrias "nosso" simulacro de aristocracia e os servos que desejarem acompanhá-lo, com todos os seus atavismos medievais, para construir uma sociedade de iguais, de preferência mais radical em seu igualitarismo do que qualquer outra que já tenha existido.
Obs: Agradeço aos leitores assíduos e ocasionais, aos divulgadores do blog e a meus detratores o recorde de visualizações registrado em junho de 2013. Te cuida, Paulo Coelho!
mais claro, impossível
ResponderExcluirAinda existe bom sendo no Mundo. *.*
ResponderExcluirMuito bom texto. Que pena que a maioria dos livros didáticos e também de alguns professores de História que tive, pelo que me lembro, talvez não tenham conseguido abordar esta questão de forma tão lúcida e clara, para que eu pudesse entender melhor a verdadeira origem dos vícios que ainda permeiam os nossos atuais sistemas de representatividade política.
ResponderExcluirSe a árvore não está agora conseguindo dar bons frutos, o problema pode estar na condução da seiva através dos troncos e galhos, mas os nutrientes são absorvidos do solo pela raíz.