quarta-feira, 13 de junho de 2012

História do Brasil Império (I): A vila de Itaguaí

A vila de Itaguaí na visão da viajante inglesa Maria Graham

          Esta postagem se dirige aos leitores mais interessados na vida acadêmica.  Participei nos últimos anos,  com uma frequência menor do que deveria, é verdade, de diversos congressos de História Econômica e Política.  Transcrevo hoje um artigo que apresentei em um destes eventos, mais precisamente o Encontro Regional da Anpuh-Rio de 2010.  Pretendo com isto, em primeiro lugar, atender à possível curiosidade dos visitantes sobre "quem é Gustavo Moreira", visto que uma busca simples no Google levaria a milhões de resultados correspondentes a homônimos.  Em segundo, chamar a atenção para a necessidade, imposta       não somente aos historiadores como também aos demais profissionais das Ciências Humanas, de considerar, na análise de qualquer aspecto de uma determinada sociedade, sua organização econômica.  Como exemplo concreto, ofereço algumas notas sobre o município de Itaguaí (RJ), cuja trajetória pesquiso desde 2000.         

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH-RIO
XIV ENCONTRO REGIONAL- MEMÓRIA E PATRIMÔNIO
SIMPÓSIO TEMÁTICO: TEMAS E PERSPECTIVAS EM HISTÓRIA ECONÔMICO-SOCIAL
OS NEGÓCIOS NO PODER: O MUNICÍPIO DE ITAGUAÍ NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX
AUTOR: GUSTAVO ALVES CARDOSO MOREIRA

            As terras que formariam o município fluminense de Itaguaí, originalmente pertencentes à Fazenda de Santa Cruz, abrigaram, durante boa parte dos séculos XVII e XVIII, um aldeamento estabelecido pelo governador Martim de Sá em 1615 e posto sob a administração dos jesuítas. Inicialmente localizada na ilha de Itacuruçá, esta povoação foi transferida para o continente em 1688. Após a expulsão dos padres inacianos, passou por décadas de certo abandono, apesar deter sido transformada em paróquia encomendada pela provisão de 15 de novembro de 1759 (ARAÚJO, 1946).
        Entretanto, a conjuntura favorável à agricultura de exportação experimentada pela América Portuguesa em fins do século XVIII fez com que o vice-rei conde de Resende ordenasse, em 1791, a construção do Engenho de Itaguaí, uma propriedade canavieira tecnologicamente moderna, que chegou a ser considerada “a mais bela e rica peça do Brasil no gênero”. Apesar da importância deste patrimônio, as dificuldades financeiras da Coroa levaram o regente D. João a determinar sua venda, conforme Carta Régia de 7 de novembro de 1803. O engenho foi adquirido, em 1806, por Antônio Gomes Barroso, negociante de grosso trato da praça carioca (VIANA, 1974, 21-32).
Situada na rota entre o Rio de Janeiro e São Paulo, Itaguaí, elevada a freguesia desde 1795, teve um papel relevante no processo de expansão da lavoura cafeeira por duas províncias. Como registrou Taunay,

“Foi em fins do século XVIII que se estabeleceu picada através da mataria do oeste fluminense, que nesta época era paulista até o rio Piraí, a vereda de Santa Cruz a Itaguaí, que vencia a serra, demandava S. João do Príncipe e ia ter a Bananal, Areias e Lorena. O cafezal propagou-se pelo vale do Paraíba, à montante de Lorena e à jusante de Resende, e novas veredas se abriram de Bananal para Jurumirim, de Barra Mansa a Angra dos Reis, de Taubaté a Ubatuba, de S. José a São Sebastião (TAUNAY, 1945: 99)”.

      O território de Itaguaí não possuía as melhores condições de clima e relevo para o cultivo do café. Todavia, a proximidade da Corte, tanto por via terrestre quanto pelo litoral vizinho à baía de Sepetiba, e a existência de velhos caminhos que davam acesso ao interior favoreciam bastante a atividade comercial. John Luccock, que elaborou quadros sobre o comércio fluminense no período de 1813 a 1817, relacionou Itaguaí como um dos portos do “Distrito da Ilha Grande”, por onde chegavam gêneros alimentícios, materiais de construção, combustíveis, ferro e peles ao Rio de Janeiro (apud LOBO, 1978, 83-84).
O crescimento econômico iniciado em fins do século XVIII fez com que a acanhada Itaguaí, que possuía apenas 370 habitantes em 1788, chegasse a 2.662 em 1821, dos quais 1.505 eram escravos (BROWN, 1986: 171-172). Alguns anos antes desta última data, mais exatamente em 5 de julho de 1818, ocorreu sua ascensão à categoria de vila, com o estabelecimento definitivo da municipalidade em 1820. Sua área, bem maior do que o atual, foi delimitada pelo desmembramento de terras pertencentes à cidade do Rio de Janeiro e à vila de Angra dos Reis (ARAÚJO, 1946).
         Viajantes europeus testemunharam, nos tempos que se seguiram à emancipação administrativa de Itaguaí, o florescimento do comércio no município. Saint-Hilaire percebeu, em 1822, que enquanto algumas famílias dos antigos ocupantes indígenas da região permaneciam nos arredores da colina onde outrora existira o aldeamento, os habitantes brancos, residentes “à beira da estrada”, tinham se dedicado à abertura de “vendas e lojas” (SAINT-HILAIRE, 1974:111). Na década seguinte, Carl Seidler registrou que o embarque de café rumo à capital do Império, bem como os negócios realizados por habitantes de Minas Gerais, que ali se abasteciam de mercadorias variadas, inclusive os artigos do “sistema sul-americano de contrabando”, haviam transformado Itaguaí, antes localidade desconhecida, numa “cidade famosa e rica” (SEIDLER,1976: 60).
         Diversas fontes apontam para a posição estratégica de Itaguaí no que se refere ao tráfico de escravos. Consultamos o Registro das Licenças das Vendas, livro pertencente ao acervo da Casa de Cultura de Itaguaí, que contém as autorizações emitidas pela câmara local para o funcionamento de múltiplos negócios, nos exercícios de 1829 a 1837. Embora não exista em suas 150 páginas escrituração de estabelecimentos destinados estritamente à venda de cativos, o confronto com a “listagem dos traficantes de escravos entre a África e o porto do Rio de Janeiro, atuantes entre 1811 e 1830” (FLORENTINO, 1997, 254-256), apesar da datação diferenciada, revela um número de semelhanças que não pode ser creditado unicamente ao acaso. Não é difícil supor, por exemplo, que Estevão Antônio Velho da Silva, dono de uma casa de secos e molhados na freguesia de Mangaratiba em 1829/30 (época em que esta localidade ainda estava subordinada a Itaguaí), seria um parente próximo de Amaro e Leonarda Maria Velho da Silva; Domingos José Cardoso Guimarães e Manuel Francisco da Costa Guimarães, proprietários de armazéns e vendas, poderiam, sem excesso de imaginação, estar ligados pelo sangue, respectivamente, aos traficantes Joaquim José Cardoso Guimarães e Francisco Luiz da Costa Guimarães; o mesmo talvez ocorresse entre Vitorino Dias Moreira, também proprietário de loja de secos e molhados, e Joaquim Dias Moreira, estabelecido no Rio. Encontramos coincidência integral, embora falte comprovação documental de que sejam de fato as mesmas pessoas, nos nomes de Francisco José Rodrigues e Manuel Ferreira. Não causaria espanto saber que José Francisco da Rocha, que explorava uma “morada de casas” na Itaguaí de 1829, era o traficante José Francisco Ferreira da Rocha, catalogado por Florentino.
É significativo ressaltarmos, sobre o tráfico atlântico em particular, que Antônio Gomes Barroso, primeiro alcaide-mor da vila de Itaguaí e, como vimos, comprador do engenho de mesmo nome, era membro de uma das famílias mais ativas na vinda de escravos da África para o Brasil. Entre 1811 e 1830, os Gomes Barroso promoveram 39 expedições desta natureza, das quais 34 tiveram como alvo o porto de Cabinda (FLORENTINO, 1997: 243). É razoável conceber que tenham empregado um domínio vasto e mal vigiado na introdução clandestina de cativos, escapando dos impostos cobrados na Corte, ou, no mínimo, que Itaguaí servisse como uma das escalas para o abastecimento de mão-de-obra dos primeiros cafezais do vale do Paraíba.
           Colocando o Registro das Licenças das Vendas ao lado da “Listagem dos negociantes envolvidos nas grandes remessas (acima de 20 cativos) para Minas Gerais, 1809-1830” (PINHEIRO, 2007: 160-163), identificamos mais pontos de convergência. Voltamos a encontrar nomes idênticos: Antônio Ribeiro da Silva, Manuel Ferreira da Silva e Antônio José de Carvalho.  Os comerciantes Manuel José Ferreira, Joaquim Lopes, Vicente Ferreira, José Correa, Luís Antônio, Antônio José Fernandes Figueira, José Ferreira de Oliveira, Francisco Pereira de Lima e Antônio José Ferreira, alistados em Itaguaí, talvez fossem, com supressão ou acréscimo de um elemento onomástico, Manuel José Ferreira Pena, Joaquim Lopes Cansado, Vicente Ferreira da Silva, José Correa de Melo, Luís Antônio da Silva, Antônio José Fernandes, José Ferreira de Oliveira Penasco, Francisco Pereira Lima e Antônio José Ferreira Armond, indivíduos presentes no abastecimento de escravos em Minas. Além disto, surgem da confrontação outras hipóteses de conexões familiares: Manuel Pereira da Fonseca, dono de botica em Itaguaí, talvez fosse parente do comerciante “mineiro” José Pereira da Fonseca; o mesmo diríamos de Quirino Lourenço Castelo Branco, proprietário de venda e casa de secos e molhados (na primeira lista) e José Agostinho de Abreu Castelo Branco (na segunda); finalmente, o já citado Manuel Francisco da Costa Guimarães se aproxima pelo sobrenome de Jerônimo da Costa Guimarães, do circuito de Minas Gerais.
Um olhar atento para as três relações aponta para a possibilidade de que a família Costa Guimarães atuasse simultaneamente na África, na Corte e nas duas províncias observadas. Em referência a mais uma das combinações de sobrenomes acima apresentadas, podemos acrescentar que Marcelino José Ferreira Armond foi o sétimo entre os maiores mercadores na rota para Minas Gerais entre 1809 e 1830, tendo vendido 337 escravos neste período (PINHEIRO, 2009: 12).
Estas associações segundo prováveis parentescos se tornam mais plausíveis se recordarmos que o “padrão empresarial pré-capitalista” vigente no Brasil determinava, em muitas ocasiões, que as sociedades fossem compostas por pessoas de uma mesma família. No tráfico, em especial, há exemplos abundantes. Segundo João Fragoso, a “instabilidade das flutuações econômicas e as poucas opções de negócios” conduziriam à adoção de “estratégias extraeconômicas” por parte dos homens empenhados em enriquecer (FRAGOSO, 1998: 330- 331).
          A base para o abastecimento de escravos constituída em Itaguaí deveria movimentar recursos muito expressivos. Afinal, se a província de Minas Gerais importou um total de 320 mil cativos durante a primeira metade do século XIX, a maior parte do total veio do Rio de Janeiro, onde havia traficantes especializados nesta modalidade de transporte. Tal atividade era mais segura do que o tráfico atlântico, pois ficavam afastados os riscos de naufrágio e apresamento (MARTINS, 2002: 103-104). Apesar do enfraquecimento do extrativismo em Minas, os registros de Itaguaí e Paraibuna funcionavam como “portas de entrada” para a escravaria destinada àquela província. Em 1813, por exemplo, o negociante “mineiro” Manoel José Ribeiro conduziu através do registro de Itaguaí um total de 47 escravos, 23 em julho e 24 em setembro. Calcula-se que Minas Gerais absorveu, entre 1809 e 1830, 40% dos negros redistribuídos na praça do Rio de Janeiro, dos quais uma maioria esmagadora era formada por africanos recém-chegados (PINHEIRO, 2009: 1).
Recordemos, sobretudo, que a vila de Itaguaí foi efetivamente instalada pouco tempo antes do tratado de 1826, que exerceu forte impacto sobre os mercados de escravos de várias partes do Brasil, entre elas Minas Gerais. Como salienta Roberto Martins, a possibilidade real de que o tráfico caísse na ilegalidade provocou um rápido aumento na importação de africanos. O autor calcula que, no final da década de 1820, a entrada de cativos na província estudada girava em torno de 9 mil por ano (MARTINS, 2002: 106).
A legislação antitráfico implantada em 1831 deve ter aquecido ainda mais o comércio de escravos em Itaguaí. Impedidos de atracar em portos excessivamente visados, como Rio de Janeiro e Salvador, os navios negreiros passaram a buscar “pontos remotos do litoral”, especialmente onde um traçado caprichoso, com “bocas de rios, enseadas e pequenas baías”, oferecia esconderijos naturais (RODRIGUES, 2000: 143). As praias itaguaienses, protegidas ao sul pela restinga da Marambaia e vizinhas das ilhas da baía de Sepetiba, enquadravam-se exatamente neste perfil. É importante relembrar que alguns dos últimos desembarques de africanos no Brasil ocorreram exatamente na costa sul fluminense: o navio Trenton, também conhecido como Lembrança, incendiado em território paulista no ano de 1850 com o intuito de ocultar provas, antes tinha deixado mercadoria humana na Ilha Grande e em Mangaratiba. Ainda mais tarde, em 1853, num episódio escandaloso, seriam apreendidos africanos na localidade de Bracuí, em Angra dos Reis, sem que os indiciados viessem a sofrer qualquer punição (RODRIGUES, 2000: 153 e 190).
          A importância destes esquemas de suprimento de mão-de-obra escrava superava, em muito, a simples busca pelo lucro. Eles foram um fator de grande peso na manutenção da unidade territorial do Brasil após a independência. Sob a direção da Coroa, as diversas regiões, ligadas pelo mercado de cativos e pelos “interesses comerciais sediados no Rio de Janeiro”, puderam consolidar a separação diante de Portugal sem que as estruturas básicas da sociedade fossem modificadas. Já no Período Regencial, com a expansão da cafeicultura e a ampliação do poderio econômico e político do Sudeste, os proprietários de terras se reaproximaram de antigos aliados (como os negociantes). Os primeiros estruturaram, como força dominante, a aliança que sustentou o Segundo Reinado (PIÑEIRO, 2002: 3-6).
         Itaguaí ocupava na segunda metade da década de 1830 uma posição privilegiada, sem sombra de dúvida, no escoamento da produção agrícola da província do Rio de Janeiro. O presidente Paulino José Soares de Sousa, em seu relatório do ano de 1836, informou que aquela vila, cujos meios mercantis se limitavam, seis anos antes, a três sumacas e uma lancha, contava agora com 27 embarcações. A exportação de café, por sua vez, passara de 50.000 a 400.000 arrobas no mesmo intervalo de tempo. Pouco mais tarde, Pereira da Silva, em artigo publicado no Jornal do Commercio de 19 de maio de 1839, definiu Itaguaí como uma das povoações “mais comerciais da província”, apesar de deixar em evidência sérios problemas estruturais: as 500.000 arrobas de café exportadas anualmente através do município eram transportadas em navios pequenos, com capacidade variando entre 2.000 e 2.500 arrobas. Estes números se mostram muito significativos quando verificamos que o Brasil, primeiro produtor mundial, exportou 910 mil sacas na temporada 1836/1837 e 1.333 mil sacas em 1838/1839 (NOGUEIRA, 1988: 295-296).
A efêmera prosperidade econômica da vila de Itaguaí, assentada sobre o comércio de café e de homens, renderia dividendos políticos aos homens que controlavam esta atividade, mesmo que, como já vimos, os negociantes não detivessem as posições mais privilegiadas no cenário nacional. Segundo Théo Piñeiro, depois de apoiar D. Pedro I e participar de diversos ministérios do Primeiro Reinado, esta fração de classe passou para a oposição ao ter seus interesses diretamente atingidos, quando o imperador aceitou firmar uma convenção com a Inglaterra, a 23 de novembro de 1826, com o intuito de suprimir o tráfico negreiro. Ainda mais afastados do poder central durante o início do Período Regencial, só se aproximariam novamente dele durante o Regresso conservador; ainda assim, em posição nitidamente secundária diante dos proprietários de terras e escravos (PIÑEIRO, 2003: 77-80).
Apesar da incapacidade de impor ao Estado a direção que lhes convinha, os negociantes se organizaram, nos anos 1830, para salvaguardar seus interesses fundamentais. A Sociedade dos Assinantes da Praça do Rio de Janeiro (mais tarde Associação Comercial do Rio de Janeiro), criada em setembro de 1834, exerceu em boa parte este papel. Seu fundador, Felipe Néri de Carvalho, coronel da Guarda Nacional, foi eleito vereador na Corte naquele mesmo ano, atuando em seguida como opositor do governo liderado pelo regente Feijó (BARROS, 1959: 32-35). A firma de Felipe Néri estabeleceria uma filial em Itaguaí em 1837, quando obteve licença para o funcionamento de um armazém de café.
Numa municipalidade em que a produção cafeeira era inferior, por vastíssima margem, à exportação, sem que precisemos acrescentar a esta o volume das operações do tráfico, dado muito difícil de mensurar, por razões óbvias, os negociantes mantiveram presença destacada e constante no Legislativo. Examinando o Livro de Registros dos Ofícios da Câmara de Itaguaí, aberto em 1845, visualizamos, logo nas anotações relativas à primeira sessão, que o presidente da casa era Antônio Rodrigues de Azevedo, o futuro barão de Ivaí. Alguns meses mais tarde, defendendo Azevedo, natural de Portugal, da acusação de não ser cidadão brasileiro, os vereadores produziram um texto pelo qual informavam que seu líder iniciara sua atuação na economia local como “primeiro caixeiro da casa de Antônio José Tavares”. Retornando ao Registro das Licenças das Vendas, vemo-lo, em 1832, como proprietário de uma venda. Entre seus cinco colegas de Câmara na sessão de 30 de outubro de 1845, dois, João Antônio da Anunciação e Bento José Machado Braga, também recebem menção em vários assentamentos deste último livro. Ambos já possuíam casas de secos e molhados no ano de 1830.
        A partir de outubro de 1849 identificamos entre os vereadores de Itaguaí um novo representante do setor, Manoel José Cardoso, filho do comendador Francisco José Cardoso, proprietário do canal de São Pedro de Alcântara e detentor do monopólio sobre o embarque de café no município. Verificando a extensa sequencia de vitórias eleitorais da família Cardoso, ao longo de décadas, constatamos a existência de um esquema de poder oligárquico que se estendeu por grande parte do século XIX. Morrendo o comendador Cardoso, em 29 de junho de 1882, publicou-se no Jornal do Commercio do dia seguinte uma nota fúnebre segundo a qual o falecido

“[...] durante muitos anos foi negociante na vila de Itaguaí, onde exerceu todos os cargos de eleição popular e serviu na Guarda Nacional até o posto de coronel comandante superior, no qual se reformou. Foi também durante muitos anos membro da assembléia legislativa provincial do Rio de Janeiro e seu presidente: militando sempre nas fileiras do partido conservador (MOREIRA, 2005: p. 29)”.

Não nos estenderemos sobre a carreira parlamentar de Manoel Cardoso, que como o pai presidiu a Câmara Municipal e obteve vários mandatos de deputado provincial, para não excedermos em demasia os limites cronológicos deste trabalho. Preferimos indicar, ao invés disto, que o poder local dos negociantes não se restringia ao controle da Câmara. Recorrendo ao Almanak Laemmert de 1850, achamos o mencionado Antônio Rodrigues de Azevedo como tesoureiro de Órfãos do município de Itaguaí, cargo que lhe permitia manobrar vultosos recursos financeiros. Ele era, igualmente, o primeiro juiz de paz do quadriênio. O quarto, Francisco Xavier Teixeira, também pode ser localizado nos registros comerciais da década de 1830. Entre os substitutos do juiz municipal, estava o negociante Antônio Vicente Danemberg. Manoel Cardoso, subdelegado da freguesia de São Francisco Xavier, sede do município, se credenciava a exercer forte influência eleitoral, bastante conveniente para preservar seu posto eletivo e o de seu pai.
        Obviamente, não insinuamos a partir da exposição destes dados que os homens de negócios exerciam uma dominação absoluta na municipalidade observada. Ilmar de Mattos, ao expor seu conceito de classe senhorial, demonstra que esta, além dos plantadores escravistas, abrangia “os comerciantes que lhes viabilizavam e, por vezes, com eles se confundiam de maneira indiscernível”, e a burocracia que geria “as necessárias articulações entre política e negócios” (MATTOS, 1990: 57). O mesmo autor identifica, a partir da leitura de Holanda, que na origem das “dinastias canavieiras e cafeeiras” paulistas do século XIX encontram-se pessoas de extração social diversa, como negociantes, magistrados, advogados e militares, muitas vezes europeus ou brasileiros de primeira geração (MATTOS, 1990: 48). Segundo Júlio César Bentivoglio, os grandes comerciantes, na verdade, pretenderam, por meio de alianças econômicas e familiares, ingressar na “aristocracia agrária”. Isto lhes facilitaria não somente o “acesso ao governo imperial”, como também a possibilidade de entrar na disputa pelo comando político do país (apud NEVES, 2008: 42-43).
      O fenômeno da transformação de negociantes bem sucedidos em plantadores escravistas, intensificado à medida que este segmento ampliava sua força econômica e política, torna a questão ainda mais complexa. A título de ilustração, podemos apresentar, mais uma vez, o caso de Antônio Rodrigues de Azevedo, bem como o de Antônio Dias Pavão, conde de Itaguaí, proprietário de armazéns no município desde, pelo menos, 1830. Durante a década de 1850, na qual ambos foram nobilitados, passam a ser citados no Almanak Laemmert como fazendeiros de café.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Memórias Históricas do Rio de Janeiro, vol. V. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946.
BARROS, Eudes. A Associação Comercial no Império e na República (antecedentes históricos). Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1959.
BROWN, Larissa Virginia. Internal commerce in a colonial economy: Rio de Janeiro and its hinterland, 1790-1822. Washington: University of Virginia, 1986 (tese de doutorado).
FLORENTINO, Manolo Garcia. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Eio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
LOBO, Eulalia Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: IBMEC, 1978.
MARTINS, Roberto Borges. Minas e o tráfico de escravos no século XIX, outra vez. In: História Econômica da Independência e do Império/Tamás Szmrecsányi e José Roberto do Amaral Lapa (organizadores). São Paulo: Hucitec/ Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica/ Editora da Universidade de São Paulo/Imprensa Oficial, 2002.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. São Paulo: Hucitec, 1990.
MOREIRA, Gustavo Alves Cardoso. Uma família no Império do Brasil: os Cardoso de Itaguaí (um estudo sobre economia e poder). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2005 (dissertação de mestrado).
NEVES, Edson Alvisi. Magistrados e negociantes na corte do Império do Brasil: o Tribunal do Comércio. Rio de Janeiro: Jurídica do Rio de Janeiro: FAPERJ, 2008.
NOGUEIRA, Denio. Raízes de uma nação: um ensaio de história sócio-econômica comparada. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.
PIÑEIRO, Théo Lobarinhas. Negociantes, independência e o primeiro Banco do Brasil. In: Tempo- Revista do Departamento de História da UFF, vol. 8, nº 15, julho de 2003. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.
____________. Os simples comissários (negociantes e política no Brasil Império). Niterói:
UFF, 2002 (tese de doutorado).
PINHEIRO, Fábio Wilson Amaral. Senhores do mercado: concentração e negócios no tráfico de escravos para Minas Gerais, c.1809- c.1830 (artigo inédito, apresentado no III Encontro de Memória da Prefeitura Municipal de Itaguaí, maio de 2009).
____________. O tráfico de escravos na formação dos plantéis mineiros, c. 1809-c. 1830. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007 (dissertação de mestrado).
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp, Cecult, 2000.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e a São Paulo, 1822; tradução revista e prefácio de Vivaldi Moreira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1974.
SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil: tradução e notas do general Bertoldo Klinger, prefácio e notas do coronel F. de Paula Cidade. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1976.
TAUNAY, Affonso de E. Pequena história do café no Brasil (1727-1937). Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Café, 1945.
VIANA, Sônia Bayão Rodrigues. A Fazenda de Santa Cruz e as transformações da política real e imperial em relação ao desenvolvimento brasileiro. Niterói: UFF, 1974 (dissertação de mestrado).




Nenhum comentário:

Postar um comentário