quinta-feira, 21 de junho de 2012

O mito da decência perdida IV

         

        Os crimes associados à ditadura civil-militar iniciada em 1964 fazem parte da memória direta de numerosos brasileiros.  Ainda que seus agentes tenham se resguardado, através da Lei da Anistia, de uma posterior responsabilização pelos sequestros, espancamentos, torturas e assassinatos cometidos contra guerrilheiros, estudantes, operários, jornalistas, políticos, sacerdotes e mesmo familiares dos participantes da resistência, o regime era execrado pela opinião pública quando o último general-presidente se retirou do poder.  O país, assolado por uma inflação ascendente e por um nível monstruoso de concentração de renda, tinha uma dívida externa que aparentemente jamais seria quitada.
          Entretanto, é comum encontrarmos nas redes sociais ferrenhos apologistas da ditadura.  Seu discurso, em regra, amputa bem seletivamente partes da realidade: eles alegam que os excessos da repressão se deveram à ação da guerrilha, esquecendo-se de que o governo também se impusera pela força, derrubando o presidente Goulart e expurgando o Congresso; insultam as vítimas dos torturadores e dos esquadrões da morte, chamando-as genericamente de terroristas, quando sabem que muitos jamais portaram um revólver, exercendo seu direito de oposição somente pela palavra falada ou escrita; em casos extremos, pessoas morreram apenas por exigir esclarecimentos pelo desaparecimento de seus parentes, ou até por estar, como se diz vulgarmente, "na hora errada no lugar errado".  As viúvas de 1964 se gabam das imponentes obras de engenharia da década de 1970, sem recordar o processo de endividamento do Estado e as frequentes notícias que corriam sobre a corrupção no trato entre empreiteiros e autoridades.  Exaltam o surto de crescimento acelerado ocorrido na gestão de Médici sem considerar que o modelo econômico carecia de consistência e naufragou nos anos seguintes.  Mencionam as vitórias eleitorais da ARENA e suas maiorias parlamentares sem avaliar o quanto disto se deveu às cassações, à virtual interdição dos debates políticos, à intimidação de órgãos críticos da imprensa e a medidas aberrantes como a instituição dos senadores biônicos.     
             Nesta postagem, última da série, exponho uma pequena parcela da vasta imoralidade de um regime fundado sob a bandeira do restabelecimento da moralidade.  Ressalto, em primeiro lugar, a  grave contradição dos governos que, enquanto se declaravam em guerra contra terroristas, incentivavam ou no mínimo eram coniventes com o terrorismo de direita.  Já em 1968, extremistas da linha dura militar, encabeçados pelo brigadeiro João Paulo Burnier (1919-2000), planejaram atentados a bomba, que causariam enormes danos materiais e vítimas fatais, no intuito de lançar a culpa nos comunistas logo em seguida¹.      


       No mesmo ano, o "Grupo Secreto", formado por especialistas em explosivos a serviço da ditadura, atacava os locais em que, sob o ponto de vista dos reacionários, vendiam-se publicações inconvenientes².


       Na década seguinte, insatisfeitos com a tímida abertura promovida pelo governo Geisel, que julgavam um recuo inaceitável, os integrantes da linha dura ainda recorriam a explosões e sequestros³.


        Nesta nova vaga terrorista, sobressaem mais tentativas de intimidar a imprensa4.


           Durante o governo Figueiredo, a direita explosiva sofreu seu pior revés: com o incidente do Riocentro, ficou óbvio, para toda a população, o envolvimento de militares naquele tipo de atividade5. 


           As atrocidades do regime, todavia, não se deviam unicamente a homens de farda.  É conhecida a vinculação de empresários aos grupos de extermínio que atuaram em diversas partes do país6.


          A participação na guerra suja, para alguns, funcionava como um meio de enriquecimento.  A proteção do regime tornava possível até a ostentação dos bens adquiridos7.    


     Ocupando degraus mais baixos na escala da criminalidade, os responsáveis pelas prisões com motivação políticas por vezes furtavam os bens dos cidadãos sob sua custódia8.


           A desonestidade do regime não deixou de se estender ao campo eleitoral.  Além dos mecanismos casuísticos criados para favorecer a ARENA (e depois o PDS), houve, em 1982, a iniciativa de transformar  em derrota a confortável vitória do oposicionista Leonel Brizola (1922-2004) na disputa pelo governo do estado do Rio, por meio de fraude na contabilização dos votos9.    


          Enquanto censurava a criação artística e literária de seus adversários, a ditadura construiu para sua defesa um sólido aparato midiático.  Neste processo, as leis sobre comunicações então em vigor também puderam ser desconsideradas 10.  


        Tampouco o fisiologismo, energicamente criticado pelos golpistas de direita desde pelo menos a década de 1950, esteve ausente do regime ditatorial.  Empresas estatais funcionavam como cabides de empregos para os simpatizantes do governo11.


        Um ex-integrante do "Grupo Secreto", o coronel Alberto Fortunato, revelou que durante a presidência de Geisel a FUNAI era palco de golpes algo primários, porém lesivos aos cofres públicos12.


         A ampliação da abertura sob Figueiredo encorajou as denúncias de corrupção.  Desta maneira, ainda que os culpados tenham escapado da cadeia, a desmoralização do governo foi progressiva13.    


              Finalmente, por ocasião da sucessão de Figueiredo, as forças governistas se viram obrigadas a optar entre Paulo Maluf e Mário Andreazza, ambos personagens de diversos escândalos14. 

           Uma rápida busca no Google nos mostraria inúmeros outros fatos desabonadores da ditadura.  Um inventário das falcatruas e arbitrariedades de autoria dos governadores arenistas e dos prefeitos biônicos talvez rendesse uma enciclopédia.
             O filósofo liberal conservador Burke, horrorizado com a Revolução Francesa, pensava que os habitantes do outro lado do Canal da Mancha, ao invés de abater violentamente o Absolutismo, deveriam ter reformado o Estado inspirando-se em ancestrais mais virtuosos.  Quanto à França, guardo muitas dúvidas.  Quanto ao Brasil, estou convencido de que toda nostalgia é equivocada.      

Referências:

1- Sonia Regina de Mendonça e Virginia Maria Fontes.  História do Brasil recente, 1964-1992.  São Paulo: Ática, 1996, p. 39. 
2- José A. Argolo, Kátia Ribeiro e Luiz Alberto M. Fortunato.  A direita explosiva no Brasil.  Rio de Janeiro: Mauad, 1996, p. 250.
3- Lincoln de Abreu Penna.  República brasileira.  Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 302.
4- Thomas Skidmore.  Brasil: de Castelo a Tancredo.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 371.
5- Idem, p. 443.
6- Ibidem, p. 392.
7- Ibidem, p. 265.
8- Arquidiocese de São Paulo.  Brasil: Nunca Mais.  Petrópolis: Vozes, 1985, pp. 81/82.
9- Boris Fausto.  História do Brasil.  São Paulo: Edusp, 1998., p. 508.
10-República Brasileira, p. 281.
11- Adriana López e Carlos Guilherme Mota.  História do Brasil: uma interpretação.  São Paulo: Editora Senac, 2008, p. 853. 
12- A direita explosiva no Brasil, pp. 296/297.
13- Rubim de Aquino, Fernando Vieira, Gilberto Agostino e Hiran Roedel.  Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais.  Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 781.
14- Brasil: de Castelo a Tancredo, p. 475.




Um comentário:

  1. GUSTAVO MOREIRA muito bom este TÓPICO: "O mito da decência perdida" mostra a realidade do Regime Militar de 1964; infelizmente temos "muitos" que por falta de conhecimentos ou por maldade pura e simples NEGAM o INEVITÁVEL são os que participaram ou familiares destes que tentam "apagarem" o passado.....

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